Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A secura, a força e o lirismo

por Carolina Tiemi carolinathaga@gmail.com Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos (menino mais novo e menino mais velho), a cachorra Baleia e o papagaio da família estão de mudança. Fugindo de uma realidade árida de esperanças, buscam uma nova fazenda, tentando contornar as inclemências impostas por um sistema atroz, onde prevalece a força dos donos da …

A secura, a força e o lirismo Leia mais »

por Carolina Tiemi
carolinathaga@gmail.com

Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos (menino mais novo e menino mais velho), a cachorra Baleia e o papagaio da família estão de mudança. Fugindo de uma realidade árida de esperanças, buscam uma nova fazenda, tentando contornar as inclemências impostas por um sistema atroz, onde prevalece a força dos donos da terra, do Estado, da opressão linguística e da seca, que desafiam a sobrevivência humana. Assim começa e assim termina Vidas Secas (1963), drama cíclico de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos.

Nelson é um dos grandes nomes do Cinema Novo, movimento brasileiro que une a transgressão da Nouvelle Vague francesa com a busca do Neorrealismo italiano pela representação objetiva da realidade social como forma de comprometimento político. Foi o primeiro cineasta brasileiro a se tornar membro da Academia Brasileira de Letras.

Transpor palavras de um livro para fotogramas num filme não é uma tarefa fácil. Poucos conseguem fazer isso como ele, que combinou fidelidade ao texto original e apuro estético na concepção da obra final, durante quatro meses de gravações no ano de 1963, nos municípios de Minador do Negrão e Palmeira dos Índios, sertão de Alagoas.

Expressões de Sinhá Vitória e Fabiano

O livro

Em 1938, Graciliano Ramos publicou o romance, eleito como um dos maiores escritos modernistas regionalistas brasileiros. O autor, que levou ao limite a tensão das relações do homem para com o meio natural e social ao que está inserido, foi tido como grandioso e ímpar ao preferir a síntese ao expositivo, a exploração do psicológico humano à crítica rasa de um contexto social. Nas palavras do crítico Antônio Candido: “achou a condição humana intangível na criatura mais embrutecida”.

Na construção do livro, Graciliano usa de recursos formais para demonstrar a temática, por meio do discurso indireto livre e da narrativa não linear. Estas ferramentas, porém, mudam de configuração no cinema. Cá, não temos um narrador que eleve as indagações e pensamentos ao nosso plano – seja pela deficiência linguística das personagens, ocasionada pela situação que as afligem, seja pela escolha do diretor em dar este papel à interpretação dos atores.

A secura, a força e o lirismo

O conceito de “seco” é aplicável em diversos pontos do longa-metragem. A fotografia “crua”, em preto e branco, sem artifícios de luz ou jogos de foco, transmite o olhar seco do camponês que não vê saída e acaba por submeter-se às ordens socionaturais. E o silêncio, quase sem música, quase sem cor, com poucos diálogos, mostra a dureza do Sertão Nordestino e do sertão que se intricou em cada corpo da família de Fabiano e Sinhá Vitória, sujeitos a um sistema que os torna rudes os coisifica. As poucas falas demonstram esse universo no qual estão inseridos.

Vemos que o filme triunfa também em representar a força dos elementos da história de Graciliano. Por exemplo, o poder que as palavras carregam, seja na questão de vocabulário — como na passagem do menino mais velho, com o termo “inferno” — seja por problemas comunicacionais, como na detenção de Fabiano. A linguagem é uma arma a ser usada por quem souber manejá-la. Outro elemento é a força da natureza: de um lado, com a estiagem impiedosa, a paisagem torna-se cada vez mais chamuscada e severa, afrontando a sobrevivência; do outro, Fabiano parece dominar a natureza, respondendo e se mesclando com ela, com seu rosto queimado de sol e seus grunhidos — urros naturais — , como no embate com o Soldado Amarelo, que personifica a opressão do Estado.

Existe uma carga dramática intensa em cada semblante na adaptação. Para quem leu o romance, é possível lembrar, por exemplo, do fluxo de pensamento de Fabiano no começo da história, quando este cogita abandonar o menino mais velho mas, desiste, apiedado, e leva seu filho no colo. Já no vídeo, a aproximação da câmera para o rosto de Fabiano frente ao menino largado no chão e sua feição indecisa, pensativa, exposta lentamente, nos mostra sua reflexão, sem necessitar de fala alguma.

A escolha por um elenco desconhecido dando as caras às cenas pouco decupadas favorece similarmente a ideia central, contribuindo para a impressão de autenticidade do registro visual, como buscam os realistas como Nelson Pereira.

A cachorra Baleia

Menino mais novo e cachorra Baleia

Não podemos deixar de lembrar, entre os grandes atores dessa obra, da cachorra que interpretou Baleia. Quando o filme foi representante do Brasil no Festival de Cannes, na França, em 1964, os críticos (em especial a presidenta da Sociedade de Defesa dos Animais) ficaram abismados com as cenas muito realistas da cachorra e temiam pela vida do animal. No contexto político da época, início da ditadura militar, zelava-se religiosamente pela imagem brasileira frente à possíveis polêmicas. Assim, os cineastas tiveram que levá-la para o festival onde, com status de celebridade, a cadela aparecia em todas as apresentações dos integrantes do longa.

Desfeito o mal-entendido, o filme recebeu o Prêmio do OCIC e o prêmio dos cinemas de arte. A produção foi muito elogiada, chegando a ser indicada à Palma de Ouro. E foi considerado o melhor filme do ano pela Resenha de Cinema de Gênova de 1965, sendo o único representante brasileiro a ser indicado pelo British Film Institute como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca.

Vidas Secas transcende circunstâncias sociotemporais específicas. Como o próprio autor disse: “um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito a humanidade.” (Graciliano Ramos em carta citada por Dênis de Moraes na biografia do autor, O Velho Graça). A película consegue, assim, captar a proposta do escritor em mostrar a aridez do mundo e das suas relações, sem deixar de nos aproximar dos personagens, uma vez que a dedicação em mostrar a interioridade destas e o enfoque na expressão e interpretação dos atores nos remete à questão humana, universal e atemporal, sensibilizando a todos que a assistem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima