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João Bosco: uma reflexão sobre a responsabilidade afetiva

Amor livre, bissexualidade, relacionamentos abusivos, responsabilidade afetiva. Esses são assuntos incrivelmente atuais, vindos a serem discutidos apenas a partir das décadas de 2000 e 2010. Para um artista em particular, esses termos já eram conhecidos desde muito antes do novo milênio. João Bosco, cantor e compositor mineiro e autor de sucessos como O bêbado e …

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Amor livre, bissexualidade, relacionamentos abusivos, responsabilidade afetiva. Esses são assuntos incrivelmente atuais, vindos a serem discutidos apenas a partir das décadas de 2000 e 2010. Para um artista em particular, esses termos já eram conhecidos desde muito antes do novo milênio. João Bosco, cantor e compositor mineiro e autor de sucessos como O bêbado e a equilibrista, já havia dialogado com todos esses temas em uma só canção três décadas antes.

A nível de… , escrita por João Bosco e Aldir Blanc, foi lançada em 1982, no álbum Comissão de frente. Nela, Bosco conta a história de dois casais que caíram na rotina e almejam algo novo, enquanto descreve traços naturais do amor e dos relacionamentos. Bosco fala dos amigos Vanderley e Odilon, que vão assistir o jogo de futebol todo domingo. Nas conversas dos amigos, críticas ao casamento. Tendo a visão do narrador, João afirma, com uma escolha ousada de vocabulário para a MPB do período, que “o papo mostra que o casamento anda uma bosta…”. O músico fala então de Yolanda e Adelina, esposas dos rapazes cantados anteriormente, que passam seu tempo juntas na ausência deles. Yolanda também critica o casamento e Adelina não discorda. Aqui o cantor dá atenção especial para a fala de Yolanda: esta é feita “a nível de proposta”.

Aldir Blanc, autor da letra da canção. [Imagem: Divulgação]
Basta um parágrafo e toda a genialidade de Bosco se mostra: a história já está montada, mas não se espera o que segue. Caindo na rotina e cansados do casamento, os casais organizam um “troca-troca”, como dito pelo próprio cantor. Aqui já se traz à discussão o tema do amor livre, conceito ainda incomum à época da música, mas muito conhecido atualmente. A surpresa vem quando Odilon, ao contrário do esperado, cede e agarra Vanderley. E Yolanda o faz a Adelina.

A partir desse ponto a história toma um rumo alegre, os dois novos casais são mais unidos. Vanderley e Odilon abrem um restaurante natural “cuja proposta é cada um come o que gosta”, sendo este um dos versos mais emblemáticos da canção, defendendo a liberdade afetiva, o direito de se relacionar com quem se quer, independente de seu gênero. A história continua em tom feliz com João dizendo que Yolanda e Adelina “acham viver um barato”, denotando a realização de deixar um relacionamento insatisfatório e iniciar uma nova história de amor. O músico continua, após dizer que Adelina, agora fazendo artesanato com sua parceira “pinta e borda com o que gosta”, afirmando que “é positiva essa proposta”. Isso já mostra a visão à frente de seu tempo de João Bosco, trazendo como positivas as atitudes que quebram com o padrão de relação amorosa.

A canção porém, torna a descrever a insatisfação, dando brecha para Bosco discutir em tom filosófico a questão da responsabilidade afetiva: Odilon se mostra ciumento demais, e Adelina se revela agressiva perante Yolanda, ao ponto de bater na parceira. O cantor então joga sua cartada final para criar esta letra incrivelmente inteligente: fecha a música com os versos “e o relacionamento continua a mesma bosta…”, criando um ciclo com a situação inicial da história. Aqui João reflete sobre como a mudança em um relacionamento afetivo não ocorre simplesmente com a troca de parceiro, mas sim com uma mudança pessoal, um crescimento do indivíduo. Sem isso, todo relacionamento continua sendo insatisfatório.

O desfecho da música se liga fortemente à questão da responsabilidade afetiva, o conceito de que, ao se relacionar com alguém, deve-se ser responsável para que suas atitudes não agridam a integridade emocional do outro, valorizar e tratar com seriedade os sentimentos alheios, assim como não criar expectativas sobre o parceiro, o que pode levar a insatisfações e carências extremas. Os versos finais da canção descrevem de forma rápida e concisa o pensamento de que todo indivíduo tem uma forma de amar diferente, e esta pode não corresponder à forma que desejamos. Porém, como afirmado anteriormente, se não há uma mudança em si próprio, o indivíduo vai continuar insatisfeito. Pode se trocar o parceiro, mas sem a responsabilidade de mudar suas atitudes, a forma de se relacionar e a visão sobre o que é e, também,  o que se quer em um relacionamento, todos vão continuar sendo “a mesma bosta”.

Capa de “Comissão de Frente”, de 1982, no qual a canção foi lançada. [Imagem: Divulgação]
Aí se mostra a genialidade dessa canção: Bosco não apenas discute temas que não viriam a ser falados até trinta anos à frente, mas o faz contando uma história simples, mas relacionável e compreensível, e usando dessa para gerar uma reflexão sobre nossas próprias atitudes, criando assim, uma das mais inteligentes letras da MPB.

 

3 comentários em “João Bosco: uma reflexão sobre a responsabilidade afetiva”

  1. Que texto espetacular. Praticamente uma sessão de terapia. Simplesmente coroou, como uma cereja no topo do bolo, esta crônica sobre a espetacular canção dos gênios João e Aldir.

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