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O futebol que roça na língua

Daniel Miyazato Para o Brasil, o futebol não é apenas um esporte, é uma instituição, um dos umbrais da cultura nacional. Desde que chegou aqui, lá no final do século XIX, começou a conquistar o amor de um sem-número de brasileiros e, sem pedir licença, foi se esgueirando nas nuances do nosso português. É difícil, …

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Daniel Miyazato

Para o Brasil, o futebol não é apenas um esporte, é uma instituição, um dos umbrais da cultura nacional. Desde que chegou aqui, lá no final do século XIX, começou a conquistar o amor de um sem-número de brasileiros e, sem pedir licença, foi se esgueirando nas nuances do nosso português. É difícil, e até desanimador, pensar hoje num cotidiano sem “ficar de escanteio”, “gol de placa”, “tirar de letra”. Dentro das quatro linhas, então, os jargões rolam tão soltos quanto a bola.

"Futebol em Brodósqui" de Cândido Portinari, 1935.
“Futebol em Brodósqui” de Cândido Portinari, 1935.

É muito mais brasileiro, por exemplo, um jogador na “banheira” do que impedido ou off-side. O posicionamento é irregular, mas ele corre confiante em direção ao gol, tranquilo como se tomasse um banho de banheira. Ainda nesse meio domiciliar, o que é uma grande área perto da irreverência da “cozinha”? Silvio Luiz, ao criar esse termo, trouxe mais um toque culinário para o esporte que já contava com “fominha” de artilheiro e “frango” de goleiro.

O “vai dar zebra” é outra expressão muito querida nos papos de boleiro e que transcendeu o esporte. Gentil Cardoso foi quem, dirigindo a Portuguesa, declarou antes de uma partida contra o Vasco um “vai dar zebra”. Ele apostou na própria derrota, mas acabou vencendo. Pela ironia, o jargão aderiu à nossa fala.

Este entrelaçamento entre o esporte e linguagem tem uma explicação histórica, que concorre com a construção do Brasil como nação. Há 50 anos, quando o anafalbetismo proliferava e a desigualdade econômica se exibia, muito mais do que hoje, a poesia do futebol fazia estas dores se aquietarem, o pobre e o rico podiam declamá-la em uníssono. “A impulsão para a criação teria que tomar outros rumos que não o literário. A dança, a música, o futebol”. Segundo o psicólogo Franciscco Martins, no artigo Futebol e Psicanálise em Jogo. “Os humildes e trabalhadores poderiam ser ouvidos aí e ter vez, pelo menos nestas atividades altamente sublimatórias”.  Com tamanha vivacidade, não é de se surpreender que a plasticidade do esporte inspirasse metáforas, metonímias e gírias nos mais diversos contextos de fala.

A construção da língua acontece justamente nesta colisão entre o sistema linguístico estabelecido, simbólico, contra o pragmatismo de uma conversa de bar, ou de arquibancada. Num panorama nacional, em que a oralidade superava, gritantemente, a escrita, a passionalidade pelo futebol não encontrou dificuldades para moldar e tornar mais original nosso português.

Narradores e comentaristas, colaboraram muito com este fenômeno. O gramado, para eles, sempre fora fértil em neologismos e expressões. Neste quesito, é imprescindível não reverenciar o dramaturgo e torcedor incondicional do fluminense, Nelson Rodrigues. Suas crônicas futebolísticas marcam de tal maneira a paixão pelo esporte que, mesmo em quem não se importa com futebol, cresce uma vontade de ir ao estádio, sentir as dores e alegrias do torcedor nato. O famigerado “complexo de vira-de-lata” vem da literatura de Rodrigues. Nos prólogos da copa de 1958, o pernambucano batizou assim a baixa auto-estima do jogador brasileiro ante os europeus. Quiçá isto tenha motivado a Seleção a vencer sua primeira Jules Rimet.

Esta dinâmica pulsante de idioma e paixão nacional deixam traços indeléveis do passado e da cultura nas conversas que temos no presente. Neste país, portanto, o futebol é inevitável. Seja no pé, no coração ou na língua, trata-se de um fator inerente à formação de quem cresce no Brasil. De maneira que, mesmo que você não “dê bola” para o esporte, vai ser difícil conseguir “driblá-lo”.

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