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O pixo além das paredes: um diálogo com os muros que falam

Eu sei por que as pessoas não gostam de pixação. Você também sabe. Na verdade, é difícil não saber. O discurso do “vandalismo” e da “sujeira” beira uma hegemonia no imaginário popular. Nelson Rodrigues, por mais que não tenha sido entrevistado durante a produção desse texto, provavelmente também sabia. E sabia, ainda, que toda unanimidade …

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Eu sei por que as pessoas não gostam de pixação. Você também sabe. Na verdade, é difícil não saber. O discurso do “vandalismo” e da “sujeira” beira uma hegemonia no imaginário popular.

Nelson Rodrigues, por mais que não tenha sido entrevistado durante a produção desse texto, provavelmente também sabia. E sabia, ainda, que toda unanimidade é burra foi o que ele disse, pelo menos.

Não entenda mal: o objetivo aqui não é o de fazer você passar a ver o pixo como algo belo. Não é. Seria uma injustiça relegar toda a dimensão de elementos e as nuances que caracterizam essa complexa prática a um parâmetro tão simplista quanto a estética. Não. 

A pixação está diante da sua cara. No alto dos prédios, nos muros das casas, na fachada das lojas; ela está ali. Não dá para ignorá-la. O que se dá é a possibilidade de uma escolha: se resignar à unanimidade ou tentar entender. A escolha que deu origem a esse texto é clara.

Pois bem.

 

O que é a pixação?

A pergunta acima é um dos questionamentos mais básicos a serem feitos em qualquer discussão e, quando se trata do pixo, é frequentemente mal respondida — ou simplesmente ignorada. Será ela o pilar fundamental desta reportagem.

Antes de tudo, porém, por que a escrita de “pixação” com ‘x’? Outro ponto comumente colocado à margem da discussão, a diferenciação da pichação com “ch” para com a pixação com ‘x’ é extremamente importante. Sabendo disso, fiz esses e outros questionamentos ao Cripta.

Djan Ivson ou Cripta Djan, nome pelo qual ficou conhecido em função de sua tag — sua “assinatura” —, é um reconhecido pixador que atua há mais de 20 anos no cenário. Conquistou espaço nas ruas ainda adolescente por conta de sua numerosa realização de pixos de alta dificuldade. Foi um dos pioneiros na modalidade da escalada, chegando a escalar prédios com mais de 20 andares sem nenhum equipamento de segurança.

Cripta deixando sua tag no alto de prédio no centro [Imagem: Reprodução]
Já na idade adulta, Cripta fez parte de bienais de arte dentro e fora do Brasil como pixador, além de ter participado da elaboração de uma vasta quantidade de obras que tratam do tema. Se caracteriza de forma tríplice, correspondente às suas várias áreas de atuação: pixador, artista e ativista.

Embora destaque em seu manifesto do pixo que não há liderança única dentro do movimento, suas ações nessas três áreas deram a Cripta um certo status de líder e espelho para outros pixadores. Uma potente voz do pixo. O tipo de voz apropriada para responder a diversas questões que permeiam a prática, e que precisa ser ouvida. Cá estamos.

A pixação normalmente escrita com “x” por pixadores não é apenas uma grafia estilizada de palavras nos espaços públicos da cidade. “Trata-se de um desenvolvimento expressivo realizado em sua maior parte por jovens das periferias, e funciona como a voz dos sem voz, o grito mudo dos invisíveis, brado pintado, corre existencial, identidade.”

O trecho acima, que abre o já citado manifesto escrito por Cripta é a resposta direta aos questionamentos levantados anteriormente. Mas, como pude observar durante nossa entrevista, o caminho até essa conclusão é longo — e importante para que se possa compreendê-la.

Identidade. Embora seja a última palavra da frase, é por onde Cripta — e milhares de outros pixadores, a bem dizer — começam. Segundo ele, o pixo é fortemente ligado a uma questão de sociabilidade e visibilidade, muito relacionada ao meio social em que vive o jovem da periferia. 

Ele analisa que o pixo veio como forma a trazer nome para grupos já existentes. “Isso virou uma coisa que quase que não tinha como ficar de fora. Era uma onda que tava rolando na quebrada. Era uma forma de você se tornar popular naquele determinado meio social que você vive.”

Outra das coisas que Nelson Rodrigues, você e eu sabemos é que os pixadores são, no geral, adolescentes e jovens adultos — e que começam, muitas vezes, ainda na pré-adolescência. Qualquer um que tenha passado por essa fase sabe como é normal – e necessário ao desenvolvimento pessoal – o processo de socialização que ocorre durante esse período por meio da identificação com grupos, com pessoas com as quais se tem alguma afinidade. Esses grupos podem ser formados na escola, no clube em que o jovem pratica algum esporte, em espaços nos quais se exerça alguma atividade — teatro, pintura, música — e em vários outros locais. Entretanto, quem de fato tem acesso a esses espaços?

Foto de pixação em muro de cemitério da Vila Madalena [Imagem: Reprodução]
“Se analisarmos os locais de onde os pixadores vêm, têm pouca infraestrutura e poucos espaços de cultura, de lazer. Então, a pixação acaba sendo um atrativo cultural das periferias.” E comenta: “É tudo um reflexo do Estado”.

Já dizia o ditado: “Quem não tem cão, caça com gato”. 

A pixação proporciona a esses jovens uma gama de oportunidades às quais eles, de outra forma, não teriam acesso. Mais do que “só rabiscar”, o ato de pixar representa uma importante parte da formação da identidade de quem participa do movimento. Em um âmbito mais pessoal, outra fala de Cripta é relevante para a compreensão da importância dessa “corrente” no sentido da sociabilidade.

Nesse ponto, ele destaca o tamanho de sua rede de amigos que, se não fosse pelo pixo, seria muito reduzida. “Trabalho, escola e bairro. Essa é a rede de pessoas normais. É difícil você conhecer um cara em cada canto da cidade, em cada zona, periferia. Às vezes a gente nem se conhece pessoalmente, mas já sabem quem você é.”

Para além da esfera individual, também há uma influência desse processo de construção identitária na própria forma de dar-se do pixo. Não são necessários olhos tão atentos para notar que, apesar da generalização reducionista que se tenta ligar ao movimento, existe uma vasta diversidade estilística entre as tantas inscrições que preenchem o espaço urbano, resultado de todo esse desenvolvimento.

Diferentes cores (apesar da predominância do preto), caligrafias, símbolos — as chamadas “grifes” — que acompanham as letras, o uso de variadas técnicas para o aperfeiçoamento do resultado final, a forma de disposição dos elementos e vários outros fatores refletem escolhas e estilos próprios de cada pessoa e/ou grupo, trabalhados ao longo de todo o período de prática. A diversidade dentro do movimento é tão expressiva que existem até mesmo variações regionais entre os estados do país, sendo as duas “escolas” mais famosas a paulista e a carioca.

Pixações na Zona Oeste de São Paulo. Nota-se o uso de traços mais retos e, de certa forma, padronizados [Imagem: Reprodução]
Pixações no Rio de Janeiro. Aqui se destaca a personalização das tags, que não seguem padrões. Num geral, usam símbolos mais arredondados, embora não seja uma regra [Imagem: Reprodução]
Pixações na região central de Belo Horizonte. O estilo, nesse caso, beira um meio-termo. Apesar de traços mais arredondados, observa-se um pouco mais de uniformidade entre as tags, embora sejam visíveis expressivas variações [Imagem: Reprodução]
O que tudo isso nos permite dizer é que, independentemente dos julgamentos feitos por quem vê, existe, sim, uma preocupação estética entre os pixadores. Outra prova disso está nos encontros organizados por eles, os rolês.

Nessas reuniões, é muito comum a troca dos cadernos em que é treinada — por repetida execução, reflexo da busca pelo aperfeiçoamento — a tag do pixador. Essa troca permite ao sujeito tornar sua marca reconhecida no meio, atendendo a um dos grandes propósitos da pixação — o reconhecimento social. Levando em consideração a quantidade de pixadores e inscrições que preenchem a cidade, obter esse reconhecimento não é fácil, e para conquistá-lo uma tag legível e bem executada é um fator importante. As mais populares podem até mesmo ser eternizadas, por meio de outra troca: a das agendas.

Para explicar com mais propriedade o que são as “agendas” a que me refiro, evoco agora a voz de Sandro Cajé, Doutor e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-pixador. Em sua dissertação de mestrado, “O meio é a paisagem: pixação e grafite como intervenções em São Paulo”, Sandro faz diversas análises a respeito da simbologia do pixo na sociedade.

Ele apresenta uma definição objetiva: “são agendas e cadernos nos quais os pixadores e apreciadores da pixação têm o hábito de recolher a ‘assinatura’ do maior número possível de pixadores. São arquivos importantes que documentam as pixações mais conhecidas e os pixadores mais famosos”. Essas agendas podem adquirir valor monetário ou de troca, embora alguns como Cripta prefiram apenas guardá-las. Segundo ele, “é o único material histórico que vai ter do pixo, porque a pixação de fato é apagada nas ruas, e esse material eterniza o pixo”.

Há ainda casos em que esse arquivo se estende também a notícias relacionadas às ações dos praticantes que tenham sido publicadas em jornais e revistas de grande circulação, além de convites para festas organizadas entre os próprios pixadores. No ateliê de Cripta, por exemplo, há uma porção desses registros, alguns já com mais de 20 anos.

 

À esquerda, folha com assinaturas de diferentes pixadores. À direita, convite para festa [Imagens: Reprodução]

Até agora foi possível observar que muitas das características da pixação enquanto movimento cultural se limitam ao próprio meio e aos integrantes da mesma. Esse ponto, apesar de poder parecer óbvio, é de extrema importância para responder às questões levantadas até agora — “o que é a pixação?” e “por que pixação com ‘x’?”. Ele nos permite fazer uma afirmação fundamental: a pixação não é para todos. O pixador não busca reconhecimento da sociedade.

Nas palavras de Sandro, o acolhimento ao discurso do pixador ocorre de forma “seletiva, entre seus pares e simpatizantes”, aqueles que conseguiram perceber a hipocrisia contida no discurso asséptico e eugenista promovido pelo Estado.

Essa detecção, por sua vez, não acontece por acaso. Como mencionado anteriormente no texto, a pixação é um movimento muito relacionado ao meio social dos jovens que a praticam. Entretanto, é necessário aprofundar ainda mais a discussão e tratar de uma questão central ao tema.

 

A relação da cidade para com o sujeito enquanto pixador

São Paulo é a maior cidade do país. Por mais que a pixação não seja um fenômeno localizado e sua presença se dê por todo o Brasil, essa característica traz certo protagonismo à metrópole paulista, uma vez que nela que se podem observar algumas das maiores discrepâncias socioeconômicas do país. Para que se tenha uma melhor noção da importância desse fator ao se tratar do fenômeno da pixação, evoco a seguir parte de uma matéria do jornalista Ricardo Setti, de nome Eles picham um país em que não acreditam.

“O crescimento desordenado das grandes cidades, somado a desigualdades sociais obscenas, levou ao constante pisoteamento dos direitos civis das populações mais pobres. Chegamos à brasileiríssima situação de termos cidadãos sem cidadania.”

Setti traça um perfil dos cidadãos a que se refere: jovens, com baixo nível educacional, desempregados e sem perspectivas. Nascidos na cidade, mas que não se sentem pertencentes e muito menos responsáveis por ela. Alienados da cidade, no sentido primeiro da palavra — alheios a ela. E prossegue:

“As crises políticas, a descrença nas instituições e nos mecanismos de funcionamento do Estado e da sociedade completam o serviço: a cidade não é dele, é ‘deles’.” E, tal como começa: “Eles picham, metaforicamente, um país em que não acreditam”.

“A cidade não é dele, é ‘deles’.” Apesar da relevância de todo o trecho, a frase em questão é crucial e merece uma atenção a mais. Para destrinchá-la melhor, uma terceira voz: a de Fernando Piccoli, graduado em Direito  e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Embora não tenha tido a disponibilidade para uma entrevista, Fernando deu sua colaboração ao texto através de permissão para que fossem usados trechos de sua dissertação de mestrado, Riscos rebeldes: notas etnográficas e criminológicas sobre a pichação

Cada vez mais isoladas do centro, crescem também comunidades residenciais fechadas, geralmente condomínios de classe média e alta, cidades privadas, construídas como “temor e rejeição da diferença social”. Estes enclaves fortificados refletem novos tipos de aglomeração e crescem com o aumento do controle e da vigilância privada, da cultura do medo, fazendo desaparecer as ideias de espaço público, de espaço de troca e de encontro entre diferenças. É nessa segregação arquitetônica e psicológica que segue o fluxo cotidiano das nossas cidades. 

A realidade é que jamais conseguiremos transformar nossas cidades em cenário de um “apartheid perfeito”. Aqueles que estão do lado de “fora” do muro querem ser vistos. E as zonas de intersecção de ambos os lados ainda representam boa parte de nosso espaço urbano. É nessas zonas de intersecção que a tensão se cria e o espaço está aberto para todas as manifestações possíveis de visibilidade e interação com o todo. É nos entre-lugares que a vida vai se encontrar, e aqueles que estão por detrás dos muros vão perceber que, junto com eles, existem outras pessoas coabitando os mesmos espaços. 

Não é à toa que a pichação e o grafite buscam as áreas mais centrais da cidade, como forma de ampliar a visibilidade.”

À esquerda, foto de prédios no centro de São Paulo. À direita, foto de prédio em avenida de Belo Horizonte [Imagens: Reprodução]

A partir dessa ideia é possível contrapor outro reducionismo empregado à pixação: o de que pixa-se apenas por pixar. Apenas para irritar os outros. Não. Além da já citada importância na construção identitária do sujeito, das oportunidades que o movimento proporciona aos seus integrantes e do próprio prazer fornecido pela adrenalina inerente à prática, a pixação apresenta outros dois pilares: o da reivindicação e o da denúncia. Uma denúncia pautada pela intenção simples de dizer que existe. Que está ali. Nesse ponto, as três vozes que apresentei convergem:

Cripta, inicialmente, destaca o papel do pixador na ocupação da cidade de forma pública, como os cidadãos que mais forçam esse uso: “Hoje nada se pode na cidade. O espaço público tá virando uma utopia. Tudo é privado. Tudo tem cerca, grade, autorização, valor de entrada. O pixador vai contra isso ao ocupar a cidade, tanto com o pixo dele quanto tendo os rolês na capital”. 

Uma frase de seu manifesto arremata a questão: “Cada parede pixada é sinônimo de insatisfação social, se agrada ou desagrada já é outra questão, o importante mesmo é que incomode”.

Sandro, por sua vez, reforça a questão da reivindicação crítica da paisagem, como uma espécie de resposta à violação do horizonte nas cidades industriais: “A pixação é a denúncia dos artifícios que ocultam o horizonte, é protesto contra a apropriação “racional” do coletivo, do público que desapareceu na intromissão dos muros e das paredes dos edifícios. Um protesto que se dá pela presença. Pela ação.” E deixa um questionamento: “Se o cara pode arranhar o céu deles, por que eles não podem arranhar o prédio do cara?”.

À esquerda, foto de prédio próximo à estação Anhangabaú. À direita, prédio próximo à estação República [Imagens: Reprodução]

Fernando sintetiza: “Os pichadores escolheram se apropriar do espaço que, por diversos motivos, não têm.”

A questão dos monumentos históricos e locais abandonados, polêmica no âmbito da discussão, também entra nesse campo. 

Para Cripta, quando o pixador se apropria de um patrimônio público, ele está reivindicando a mesma memória que aquele patrimônio reivindica. Mas lembra que, em geral, o sujeito pixador não tem conhecimento da representatividade cultural desses monumentos. E indaga: “Como que tu vai exigir do cara que ele respeite uma história que ele não conhece? Ele só sabe que aquele lugar é um lugar de projeção e de memória. Então existe uma questão de desobediência civil, um conflito cultural”.

Cripta questiona também a história contada por vários desses monumentos. Usa como exemplo figuras frequentemente representadas, principalmente em São Paulo: os bandeirantes. “Porra, quem eram os bandeirantes? É como se daqui a 100 anos tivesse estátua da Rota, e aí dissessem “ah vocês não respeitaram a história da Rota”, que matou pra caralho”. 

E finaliza: “O pixador não faz parte dessa história, ele não tem representatividade, ninguém ensinou pra ele, só ensinaram pra ele que aquilo tem uma importância de memória, então ele se apropria daquilo também pra escrever a memória dele”.

Obelisco pixado no Largo da Memória, no Anhangabaú [Imagem: Reprodução]
Em relação a lugares abandonados, Cripta lembra que o pixador procura locais em que o pixo permaneça por mais tempo. Locais negligenciados e esquecidos pelos poderes público e privado acabam sendo, nesse sentido, boas opções. Inverte-se a crítica frequentemente feita de que a pixação é responsável pela depredação desses locais, haja vista que ela se apresenta como elemento posterior ao descaso do Estado.

Prédio abandonado e pixado em frente à estação Anhangabaú [Imagem: Reprodução]
Cripta também menciona o papel social que esse tipo de denúncia pode assumir. “Eu já vi que muitos movimentos de sem-teto identificam os asilos por conta dos pixadores. Inclusive eu, como pixador, vi muito lugar vazio no centro, isso me chocava na época”. 

Esses locais, abandonados e inutilizados em prol da especulação imobiliária, reforçam a condição de “não pertencentes à cidade”, citada por Setti. Ao que Cripta afirma: “O pixo é uma denúncia contra isso, contra tudo que tá esquecido e abandonado na cidade. Isso foi uma coisa que o pixo foi desenvolvendo e faz parte da prática do pixador.”

Pois bem.

Por mais que não seja possível abranger a totalidade do microcosmos da pixação em um único texto, essa reportagem foi capaz de atender a grande parte dos objetivos que, inicialmente, motivaram sua escrita. Entretanto, antes de chegar à sua conclusão, um último questionamento se faz imprescindível.

 

Quem é o pixador?

Muito se fala a respeito de privilégios. De reconhecer quando se usufrui deles. De ter empatia e se colocar no lugar do outro. Essa linha de pensamento, entretanto, frequentemente é secundarizada quando o outro é um pixador. Substituída pelo discurso fácil de que são apenas vândalos e que “têm mais é que morrer”. Que não farão falta à sociedade. Mas quem é o outro, afinal? Simples.

O outro é você.

Você na medida em que esse outro tem o que, para o Cripta, é uma “necessidade de expressão”, e para o Sandro, a “necessidade de sinalizar a existência pro mundo”. Em relação a esse ponto, Sandro me conta de uma entrevista com o  reconhecido artista e cartunista Borjalo.

O Borjalo conta que ele rabiscava as paredes de casa quando criança, e que no dia em que a mãe dele foi repreender, o pai dele liberou pra que ele rabiscasse. “O Borjalo então fala que o que determinou a vida dele como artista foi aquele momento em que o pai dele permitiu que ele rabiscasse as paredes com o que ele tinha.”

O Borjalo, nesse caso, é como o jovem que deixa mensagens na carteira da escola. Como o universitário que eterniza uma ideia nas paredes do centro acadêmico de sua faculdade. Como o adulto que registra um pensamento na parte de trás da porta do banheiro do escritório. Como o indignado que deixa um protesto antigoverno nos muros da cidade. Como um par de apaixonados que inscreve as próprias iniciais no tronco de uma árvore, com ares de eternidade. Como qualquer um que vai a uma praia e representa com um graveto quaisquer coisas na areia. Como eu. Como você. O impulso que leva a qualquer uma dessas ações é o mesmo. E ele sempre irá existir porque, como Sandro conclui, “é humano. Você vai encontrar isso em todo lugar. Pichação é uma coisa humana”. 

Todos possuem esse potencial artístico e comunicacional dentro de si. “Algumas pessoas conseguem fazer isso utilizando cinema, televisão,  literatura, rádio ou várias formas de mídia. Só o pixador usa a cidade como mídia. A cidade é uma mídia”, completa Sandro.

Mas toda moeda tem dois lados. Nem todos têm as mesmas oportunidades de aproveitar e fazer uso desses impulsos. Cripta complementa:

“O pixador é o artista que não teve a oportunidade de aprender a pintar uma melancia fatiada. São jovens que têm potencial artístico e que só encontraram a pixação pra poder canalizar isso. Eles só têm esse circuito para ser alguém, para ser reconhecido como artista. Nem que seja só dentro do universo periférico, marginal.”

Cripta, nesse sentido, também é referência — e uma referência necessária. Apesar de afirmar que seu trabalho no campo mercadológico é individual, de um artista que trabalha com a linguagem da pixação, lembra: “Como que um pixador vai fazer uma exposição individual na Europa? Não temos condições de investir nisso, tem que ter alguém pra acreditar. Me sinto privilegiado de ter essa oportunidade, de ter participado de bienais de arte”.

Fotos de parte da intervenção de Cripta e seus companheiros em Bienal da qual fez parte [Imagens: Reprodução]

Por mais que a intenção deste texto não seja a de passar a imagem dos pixadores como uma de pobres coitados que desejam ser mimados pela sociedade, a questão da falta de oportunidade é muito latente no que diz respeito à pixação, como foi ressaltado diversas vezes. Cripta conclui:

“Aquele cara que não vai ter a oportunidade de ser ninguém, no pixo ele vai ser alguém. E sem a questão do capital, o que é fundamental. Um mendigo consegue virar um ídolo na pixação, se ele quiser. Basta ele ter tinta pra pixar. Basta ele escrever a história dele na rua.”

Para muitos, a questão capital é um ponto crucial. Uma das perguntas mais frequentes em relação à pixação é o simples “por quê” ou “para quê”. Como se tudo precisasse atender a uma razão capital. O pixo não. Ele vai na contramão disso, em busca apenas de um reconhecimento existencial. É a promoção do Ser, não do Ter.

Esse é o “grito mudo dos invisíveis” a que Cripta se refere em seu manifesto, o movimento identitário que, a despeito do discurso de repressão à prática, só cresce, e que está presente em todo o Brasil. 

“A pichação com CH representa toda essa totalidade de intervenções urbanas na rua, de escrita e tal, e tem o pixo mesmo que é o movimento, de jovens das periferias que criaram esse circuito”, resume Cripta.

A pixação com ‘x’ sinaliza uma potência humana que se manifesta. “Ela marca a existência de um indivíduo num determinado momento da história da Terra. A pixação com ‘x’ tem uma alma, um espírito conectado ao mundo, mas ao mesmo tempo invisibilizado nele”, afirma Sandro.

Para ele, é isso que diferencia a pixação com ‘x’ da pichação com ‘ch’. A pichação com ‘ch’, o dono de um estabelecimento pode fazer na frente de sua loja, escrevendo em um cartaz. O prefeito pode fazer colocando uma mensagem dentro do ônibus ou metrô. “Mas a pixação com X não tem a ver com isso, a pixação com X tá fora dessa esfera do poder, mas agride essa esfera do poder. Ela é a negação desse poder”, conclui.

Como afirmado ainda na introdução, o que moveu esta reportagem não foi o objetivo de “converter” quem a lê. Foi apenas o de, fugindo de um discurso exaustivamente repetido e martelado, apresentar algumas das vozes ligadas a essa complexa e onipresente prática. Bonitas ou feias, não é disso que se trata. 

A pixação existe.  A pixação é viva.

As paredes falam. As paredes gritam.

A escolha está aí. Ouvir… ou?

Nelson Rodrigues que, mais uma vez, o diga.

1 comentário em “O pixo além das paredes: um diálogo com os muros que falam”

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