Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Quem narra, manipula – seja com a caneta, seja com a câmera

Um personagem anda por uma rua. A câmera, no mesmo ritmo, acompanha as cenas que os olhos dele veem. A câmera na verdade está em seus olhos: tudo o que o personagem faz é sentido pelo espectador como se este estivesse fazendo-o também. A música tocada, as luzes do filme, a visão dos acontecimentos: o …

Quem narra, manipula – seja com a caneta, seja com a câmera Leia mais »

Ilustração
[Imagem: Lígia de Castro/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]
Um personagem anda por uma rua. A câmera, no mesmo ritmo, acompanha as cenas que os olhos dele veem. A câmera na verdade está em seus olhos: tudo o que o personagem faz é sentido pelo espectador como se este estivesse fazendo-o também. A música tocada, as luzes do filme, a visão dos acontecimentos: o narrador da história é aquele personagem, pois é a partir da sua perspectiva que se tem acesso a todo o enredo.

Esse é um dos muitos jeitos de narrar uma história dentro do cinema. As maneiras de guiar a câmera, a trilha sonora e os efeitos de um filme levam a uma gama de possibilidades de construir narrativas e narradores. Como na literatura, esses diversos tipos de narradores foram explorados em muitas tramas, com o objetivo de impactar os leitores de determinadas formas.

A escolha de qual narrador usar é importante, porque eles influenciam totalmente na percepção que os leitores terão da história. Mesmo quando o narrador é observador, ou seja, quando ele não participa diretamente dos acontecimentos (como se fosse uma mosca na parede que apenas vê e conta a história), ele não é imparcial.

É por isso que, ao vermos um filme, várias vezes algumas das seguintes perguntas nos surgem: quem está contando essa história? Essa persona pode ter a intenção de me manipular? Ela pode estar sendo manipulada? Que interesses ela poderia ter ao mostrar tais fatos?

Garota Exemplar (Gone Girl, 2014)Essa persona pode ter a intenção de me manipular?

Garota Exemplar
[Reprodução]
Garota Exemplar é um filme roteirizado por Gilian Flynn, baseado em seu próprio livro Garota Exemplar e dirigido por David Fincher em 2014. Conta a história de Amy e Nick Dunne, um casal que se desgastou depois de cinco anos de casamento e passou a viver um thriller psicológico.

Amy começa contando a história deles por um diário. Relata a desatenção dele, a sua infidelidade, e o sofrimento pelo qual ela passou ao longo do casamento. Conta da arma que teve de comprar para proteção, por medo de uma futura psicopatia dele. Então, o diário acaba: Amy some de vista, e, ao que tudo indica, foi assassinada. A mídia, aos montes, aproxima-se de Nick para procurar as mais tênues evidências de que havia algo de errado entre eles, de que ele havia assassinado a própria mulher. A cidade cai em cima do personagem. Mas há um porém: até então, durante todo esse primeiro momento do filme, quem havia narrado a história era Amy e apenas ela.

O espectador, ao ouvir suas palavras e o que ela recortou de sua relação com Nick para mostrar, ilude-se e passa a achá-lo culpado. Quando a narração vai mudando, quando as perspectivas mostradas vão se abrindo para outros personagens, é visível que a psicopatia era na verdade de Amy. Ela escolheu momentos reais da relação entre eles para criar uma narrativa falsa – na qual ela era morta por ele. Tudo porque havia se decepcionado com a relação deles.

Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) – Ela pode estar sendo manipulada?

Ilha do Medo
[Reprodução]
Filme de Martin Scorsese, baseado no livro Paciente 67 de Dennis Lehane, Ilha do Medo é outro exemplo claro de como um narrador pode mudar a visão do público sobre uma história.

A câmera está o tempo inteiro filmando Teddy Daniels, detetive e personagem principal da trama.  Ele chega a uma ilha em que há um hospital psiquiátrico, e sua missão é investigar o desaparecimento de uma das pacientes dali junto a um parceiro, Chuck Aule. Os dois passam por diversas situações conforme Teddy vai percebendo, aos poucos, a verdade apagada sobre a morte de sua mulher. O plot twist: ele a matou, e a realidade era tão insuportável que criou uma situação nova na própria cabeça em que não era mais Andrew Laeddis (seu verdadeiro nome), era Teddy Daniels, e não havia assassinado sua mulher.

Havia se tornado louco, motivo real para estar na ilha – tudo não se passava de um tratamento.

Assim, como vemos o filme inteiro pela sua perspectiva e todos ao seu redor estão mentindo (tentando fazê-lo perceber lentamente a sua realidade), somos enganados pela sua visão. Não por que ele tem a intenção de enganar, mas porque a verdade que conhece é distorcida.

Capitu (1968) – Que interesses ela poderia ter ao mostrar tais fatos?

Capitu
[Reprodução]
Machado de Assis trabalhou bem seus narradores em suas obras. Dom Casmurro talvez tenha sido a mais famosa delas, não por acaso. Seu personagem principal Bentinho, tão ávido por não se mostrar como neurótico e ciumento, constrói uma narrativa inteira em primeira pessoa tentando guiar o leitor à conclusão de que Capitu, sua mulher, era infiel.

No filme sobre a obra, Capitu, dirigido por Paulo Cesar Saraceni e roteirizado por Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, Bentinho também é colocado em primeiro plano. A câmera, quando coloca Capitu em foco, mostra-a festejando, conversando com Escobar (seu suposto amante), e tendo atitudes libertárias (o que, para Bentinho, era uma das provas de que ela seria capaz de traí-lo). É assim que, conforme as cenas vão rodando, ele vai ficando mais e mais preocupado com o jeito dela, e Escobar, antes seu amigo, vai se tornando alvo de pura desconfiança. No final, ele tem certeza: o filho de Capitu não é seu, é de Escobar.

Esse é um exemplo de alguém que tem tanta certeza de que é vítima, que precisa a todo custo mostrar isso para os outros. Dessa forma, embora a questão aqui também seja manipular, isso é feito de maneira mais discreta: manipula-se, mas porque há um desejo grande de provar o próprio ponto. O próprio narrador talvez não veja isso como manipulação, porque ele realmente acredita que é verdade.

Entre o cinema e a literatura

Apesar de as duas artes trazerem elementos em comum no quesito narração, as ferramentas disponíveis para a construção da história são muito diferentes, e por isso ambas têm resultados também muito diferentes.

No cinema, não se está dentro da cabeça do personagem. Não se veem os pensamentos, não se veem os sentimentos: vê-se apenas a cena pela perspectiva dele. O personagem consegue transmitir suas sensações pela música e pelas imagens, mas não há nenhum diálogo concreto entre ele e o espectador. Isso significa que é mais difícil para esse narrador-personagem manipular a própria história, já que os seus espectadores têm os mesmos olhos e ouvem as mesmas falas que ele. Em um livro, o narrador pode transformar suas visões quando vai contá-las ao seu leitor; pode exagerar a entonação de alguém, dar adjetivos suspeitos a cenários e a pessoas. No filme, está tudo gravado: as expressões, o cenário, as entonações, os olhos. O narrador-personagem e o público têm a mesma visão, por isso é mais difícil existir manipulação.

Mais difícil, não impossível. Como ela acontece então, se as visões são as mesmas?

Acontecem, porque no cinema tudo é recorte.

Não é preciso que as imagens sejam falsas: é necessário somente que apenas uma parte delas seja mostrada, e não o todo. Amy escolheu mostrar as cenas ruins de seu relacionamento com Nick; Andrew Laeddis (ou Teddy Daniels) mostrou aquilo que via – mas como era enganado, ele não tinha acesso a tudo o que estava acontecendo; Bentinho mostrou apenas as cenas em que Capitu e Escobar tinham conversas suspeitas. Dessa forma, por meio de recortes, as narrativas manipularam o público sem que ele se desse conta.

É assim, portanto, que os filmes como os livros nunca são imparciais, pois seus narradores sempre escolhem um ângulo para tratar dos acontecimentos – sempre recortam cenas para mostrar. E, embora pareça algo ruim de cara, obras sensacionais foram produzidas usando apenas esse único recurso: o da narração.

por Lígia de Castro
ligiaadecastro@gmail.com

1 comentário em “Quem narra, manipula – seja com a caneta, seja com a câmera”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima