Este filme faz parte da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Algumas pessoas perdem a percepção do tempo. Teresa é uma delas. Já com mais de 50 anos, trabalhava desde os 20 na casa de uma família abastada de Buenos Aires, cuidando de seu filho. E parece não ter enxergado a oportunidade de construir uma vida própria, que se esvaia, com uma existência sustentada na criação desse menino, que considerava como seu.
Agora já um homem, prestes a se casar, Fernando já não carece mais da atenção de Teresa, que é realocada para um novo emprego, na distante San Juan, cuidando dos pais da noiva de seu filho postiço.
Essa separação forçosa de uma relação, refletindo sobre apego, comodidade e fragilidade de laços que se aprofundaram demais, é o enredo que funciona em A noiva do deserto (La novia del desierto, 2017). Tratada de forma delicada, a temática é muito contemporânea às inúmeras discussões a respeito do trabalho doméstico e os direitos inerentes à esses profissionais, que são muitas vezes tratados como parte da casa somente enquanto conveniente. Teresa obviamente é querida pelo homem que criou, mas a saúde dessa relação é posta em xeque diante do nível de abdicação pessoal.
Infelizmente, se as controvérsias sobre o livre arbítrio poderiam ter sido mais exploradas, foram subjugadas à saga de Teresa para chegar ao seu novo local de trabalho. Tendo passado toda a sua vida na mesma atividade, convivendo com um círculo de pessoas muito limitado, as habilidades sociais da mulher são limitados, e sua personalidade é dura e arredia à aproximações.
Não muito dada à conversas, muito de sua vivência se revela no quanto se expõe mais na presença de crianças. E o filme se desenrola enquanto Teresa vai tomando mais confiança para assumir uma personalidade independente, como se também precisassemos compreendê-la para ter acesso às suas nuances que ficaram obscuras pelas circunstâncias.
Em uma inquebrável rede de servidão, em que a mulher sempre pareceu viver para apoiar a um outro alguém, tudo conspira para que ela fique no meio do caminho, em pleno deserto. Primeiro, ela fica presa em uma loja e perde o ônibus.
Depois, esquece a mala no trailer de um dos caixeiros viajantes instalados próximos ao ponto de partida. Sua solidão sem os seus pertences é alternada às breves digressões do seu processo de desgarramento da rotina que sustentava. No dia seguinte, Teresa anda pelo deserto em busca de Gringo (Claudio Rissi), o dono do trailer em que deixou suas coisas.
Um tipo expansivo e carismático, seu jeito contrasta com a personalidade contida de Teresa, uma mulher calada e extremamente discreta, como se adaptada a se camuflar e não a receber atenção. A interação entre Rissi e a brilhante Paulina Garcia (que também tem atuação convincente em A Cordilheira, outro filme da mostra) é o melhor elemento do longa. Mesmo com um roteiro fraco, ambos demonstram química que tornam os personagens próximos a quem assiste.
Teresa parece desabrochar após sua relação com Gringo, que agora mais íntimo já se assumiu Miguel. Mas além de um grande clichê, o desenrolar dos fatos aponta para outra problemática muito próxima a determinados nichos: o empoderamento feminino. É fato que a personagem não foi educada em tempos de debates feministas e tão pouco deve ser massacrada como um desserviço ao movimento mas, o ápice de sua independência estar conectada ao personagem masculino, é uma saída tão antiquada quanto a rotina de empregada a qual Teresa era submetida. Em que os patrões contratam alguém para que possam viver. Por outro lado, sob uma perspectiva menos rígida, o desdobramento da interação entre Teresa e Gringo pode ter sido uma expressão de sua liberdade, em que continua sendo forte sem precisar ser inflexível. A história dela é também sobre ressignificar importâncias.
por Pietra Carvalho
pietra.carpin@hotmail.com