Este filme faz parte da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
As notas melódicas e angustiantes do piano de Eurídice (Carol Duarte) dão o tom para o filme A Vida Invisível (2019). Os sons, tantas vezes melancólicos, embalam o longa representante nacional no Oscar 2020 e o tornam agradável aos ouvidos. Mas é o casamento perfeito dessa música com imagens fortes que concretiza a visão estética e os objetivos do roteiro. A Vida Invisível é intencionalmente angustiante e cotidianamente triste.
Dirigido por Karim Aïnouz, a produção acompanha a história das irmãs Eurídice e Guida (Julia Stockler). As duas moram com os pais, um casal de portugueses, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Jovens e muito próximas, as garotas têm desejos arrojados para as mulheres da época: Eurídice quer entrar para um conservatório de piano em Viena enquanto Guida se apaixona por um marinheiro grego. Separadas pelo impulso de Guida de fugir com o amor europeu, as irmãs passam a se desencontrar constantemente.
O ambiente de época é muito bem concebido no filme. Para além das locações que parecem ter parado no tempo, o figurino é essencial para a imersão no universo dos anos 1950. Constituído por roupas originais do período, ele permite ao espectador entender as diversas camadas das personagens. Outro bom aliado na composição visual é a fotografia, sempre utilizada em favor da ambientação e que dá um ar antigo à produção.
Essa antiguidade presente no longa – que é uma adaptação do livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha – é reforçada, ainda, pela troca de cartas entre as irmãs. Mesmo que, assim como elas, as cartas se desencontrem por quase todo o filme, são fundamentais na construção e no entendimento da relação das duas. Eurídice e Guida são complementares e, apesar de distantes, indissociáveis. Ambas são a representação das inúmeras dificuldades vividas pelas mulheres em meados do século 20, muitas das quais se perpetuam até hoje.
O filme retrata de forma bastante realista a luta resignada, e diversas vezes calada, das mulheres brasileiras dos anos 1950. A sensibilidade nas cenas de abuso psicológico e físico por parte dos homens trazem a angústia das notas de piano desencontradas diretamente para o espectador. Difícil se manter indiferente diante do machismo que permeia as relações afetivas da trama, principalmente quando nos damos conta de que tais situações ainda ocorrem, mesmo tendo se passado quase 70 anos. A Vida Invisível é, segundo o próprio diretor, um filme situado no passado, mas que ecoa no presente. Traz à tona questões de abuso, machismo e luta pela liberdade da mulher que as pessoas são, até hoje, incapazes de solucionar.
Além das irmãs como figuras femininas fortes na trama, outra atuação de destaque é a de Fernanda Montenegro. Apesar da pequena participação no filme, a atriz leva ao enredo toda sua experiência já tendo vivido tantas mulheres na ficção. Sua atuação, ainda que breve, é carregada de emoção e significado e traz ao desfecho da história toda a sensibilidade diante da dureza da vida.
O longa nacional, ainda que situado nos anos 1950, é atual. Mesmo repleto de elementos do passado, seus dilemas acontecem até hoje. Em cada desencontro da vida, sempre vibrante, mas muitas vezes ingrata. Em cada busca por liberdade e pelos amores. Em cada nota solitária de um velho piano.
Confira o trailer: