A superfície da premissa simples de Abaixo a Gravidade (2019), do diretor baiano Edgard Navarro, esconde uma experiência complexa e questionadora. A princípio, temos a história de Bené (Everaldo Pontes), senhor espiritualizado e recluso no interior da Bahia que, ao conhecer Letícia (Rita Carelli), jovem atraente e descolada, tem sua modesta vida virada de cabeça para baixo. Doente e acompanhado da moça, ele volta para Salvador para se tratar, experimentando todo a agitação típica de uma cidade grande. O que não se imagina é que tal simplicidade guarda reflexões profundas, que chegam a causar incômodo no espectador, confrontado com situações e cenas metafóricas acerca do sentido da vida.
Os componentes fundamentais da trama são o caos e o conflito. Já no início do filme, observamos o embate entre a vida bucólica e a urbana, a tradição e a modernidade, a tranquilidade e a perturbação. O diretor, num lance provocativo, escolhe exibir um lado pouco explorado de Salvador. No lugar das belas paisagens já familiares ao público e às classes mais abastadas, vemos a periferia, a pobreza e os pontos encobertos e indesejados pelo turismo. A dicotomia fica ainda mais evidente numa cena em que um morador de rua dorme embaixo de um cartaz publicitário que diz: “seu sonho de moradia”. A denúncia social é explícita no longa, escancarando as mazelas da desigualdade. Em cena, mendigos tratados como corpos insignificantes e invisíveis pela sociedade e a representação da classe média, que se volta para si mesma e não enxerga além de seus problemas supérfluos.
Numa impressionante atuação de Ramon Vane, entramos em contato com o submundo através do personagem Galego, morador de rua que expressa a faceta mais primitiva do homem quando cercado pela miséria. Seu oposto é representado por Bertrand Duarte na pele de um sujeito rico que, apesar de se configurar como o ponto fraco do filme, surgindo de forma aleatória na narrativa, também é responsável por mostrar que mesmo a aparente calmaria de quem é aceito por sua condição privilegiada, acoberta uma subversão frente ao que é considerado correto pela sociedade.

Abaixo a Gravidade transmite a ideia de reflexão e expressa a bagunça de questionamentos filosóficos do próprio diretor. A obra toda se torna uma jornada psicológica, exalando a anarquia e a desordem de uma mente pensante. Sendo alegoria do chamado a esta jornada, a escultura O Pensador, de Rodin, está presente em boa parte do longa, inclusive sendo carregada pela cidade por um helicóptero, uma clara referência à cena inicial de A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960), de Fellini.
A representação da psique humana, onde tudo é possível, também toma forma com as passagens surrealistas do filme. O roteiro passa a “quebrar regras” ao inserir estes elementos absurdos, em descompasso com estruturas mais tradicionais. O próprio título do longa revela este desejo pela desobediência à ordem. O status quo é sempre desafiado, seja pelo forte sincretismo religioso, pela rebeldia em trazer à luz o que está escondido ou pela ânsia em fugir do racional.
Há ainda um paralelo entre um asteróide chamado Letícia, que passa próximo a Salvador e desestabiliza a gravidade temporariamente, e a jovem de mesmo nome, que desestabiliza Bené. Esta mesma sensação de abalo é também sentida pelo público durante toda a exibição. A obra é de difícil digestão, balança os alicerces do espectador e é preciso tempo para absorver e compreender suas intenções. Se você procura por um filme descomplicado, esta não é a melhor opção. O longa é um emaranhado de questionamentos, uma poesia caótica em formato audiovisual.
Abaixo a Gravidade tem estreia marcada para o dia 01 de agosto. O trailer pode ser conferido aqui: