por Gabriel Lellis
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Dizem as lendas que um dia o herdeiro do grande guerreiro Paikea irá voltar para sua tribo montado em uma baleia, e irá liderar seu povo novamente para a glória. Durante anos os Maori esperaram, mas suas preces nunca foram atendidas. O fim da milenar história desse povo parecia cada vez mais próximo.
Assim começa o filme Encantadora de Baleias (Whale Rider, 2003); um surpreendente retrato da luta de alguns povos pela sobrevivência de sua cultura em um mundo cada vez mais globalizado e uniforme. Além disso, é o grito de resistência de uma pequena garota em meio a uma sociedade patriarcal e machista.
A menina que guiou um povo
O filme, dirigido por Niki Caro conta a história de Pai, uma garota da família dos ancestrais do grande Paikea, cujo nascimento quebra a linhagem de homens que poderiam liderar a tribo à ascenção econômica e espiritual. Os Maori, localizados na costa da Nova Zelândia, vivem um momento de crise perante a perda de suas tradições milenares. Após a morte da mãe no parto, o pai da garota decide se mudar para a Europa, deixando-a sob os cuidados do rígido avô. A relação deste com a neta se constrói entre o amor familiar e a decepção por não ter um herdeiro homem.
Pai (interpretada pela jovem Keisha Castle-Hughes, indicada ao Oscar com apenas 12 anos) não se conforma com o tratamento dispensado pelo avô, e subvertendo a tradição, decide aprender os costumes do grande guerreiro ancestral e assim liderar sua tribo.
O filme foi a grande surpresa do ano de 2003. Inicialmente seria lançado diretamente em DVD, mas acabou tendo sua estréia nos cinemas como uma aposta de risco. Como resultado, o filme foi premiado em uma série de festivais ao redor do mundo (tendo como principal a prêmio do júri na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; além de indicações ao Oscar).
O grande trunfo vem da combinação entre atuações arrebatadoras e um roteiro que trata as questões existenciais da tribo e da luta contra o machismo de forma não estereotipada. A mistura entre inocência infantil, antropologia e uma certa magia mística envolvendo criaturas tão fascinantes como as baleias produz um filme honesto. A história, portanto, se propõe a confrontar nossa visão ocidentalizada sobre a vída das distantes tribos de lugares como a Oceania.
A carta da guerreira
Uma das cenas mais memoráveis do filme é uma apresentação de canto de Pai em homenagem ao seu avô, como uma tentativa de convencê-lo de sua capacidade para liderar a tribo. A mensagem da pequena encantadora de baleias é surpreendente, capaz de gerar infindáveis reflexões:
“Meu nome é Paikea. Eu venho de uma longa linhagem de chefes que vem da Haoaki, onde estão nossos ancestrais: os primeiros que andaram na terra.. O nome do nosso líder é Paikea, e eu sou sua mais recente descendente. Mas eu não sou o líder que meu avô esperava, e por eu ter nascido, quebrei a linhagem dos nossos ancestrais. Não foi culpa de ninguém. Só aconteceu.
Mas podemos aprender, e se o conhecimento for dado a todos, podemos ter muitos líderes e logo, todos serão fortes. E não somente os escolhidos; porque às vezes, mesmo sendo líder e tendo que ser forte, você pode se cansar. Como nosso ancestral Paikea quando estava perdido no mar e não achava a terra e queria morrer. Mas ele sabia que nossos ancestrais estavam com ele. Então ele pediu forças.”
Ao final, Pai prova a todos em sua tribo o quanto a força de vontade pode ser um fator de liderança. Mesmo sendo jovem, a exuberante capacidade de sua natureza humana foi capaz de mover barreiras físicas e culturais. Qualquer um é capaz de conquistar seus sonhos. E a pequena encantadora de baleias, com todo o misticismo de sua herança, cativa a todos neste filme surpreendente.