Um panorama de tudo o que há por trás dos protestos que aconteceram em diversas cidades do Brasil e o envolvimento da imprensa nesse processo
Por André Spigariol (andre.spigariol@gmail.com), Carolina Shimoda (carol.shimodab@gmail.com), Rafael Felizatte (rafael.felizatte@gmail.com) e Stella Bonici (stebonici@gmail.com)
Edição: Fernando Pivetti (fernandopivetti@gmail.com)
Está consagrado no artigo 5º da Constituição brasileira que todos os cidadãos têm o direito de se reunir pacificamente em locais abertos ao público, com ou sem autorização do Estado. Mais ainda, nossa Carta Magna também assegura a liberdade irrestrita de expressar opiniões e pensamentos. Estes trechos da lei maior do país ganharam uma força que nunca antes se viu, a partir dos atos organizados pelo Movimento Passe Livre.
Nas últimas semanas, protestos contra o aumento das tarifas do transporte público trouxeram centenas de milhares de pessoas para as ruas pelo Brasil afora no movimento que ficou apelidado de A Revolta do Vinagre. Os atos foram realizados em onze capitais, mas especificamente na cidade de São Paulo, a violenta repressão da Polícia Militar contra os ativistas fez com que mais de 100 mil pessoas se mobilizassem para o Quinto Grande Ato Contra o Aumento da Passagem, realizado na segunda-feira, 17.
A pauta era única e clara: a revogação do aumento de R$0,20 nas passagens, um gargalo que comprometia o acesso de segmentos da população ao transporte coletivo. O papel da imprensa brasileira ao longo da cobertura das manifestações demonstrou a fragilidade dos meios de comunicação diante da estrutura de mercado ao qual o jornalismo se inseriu. O principal ponto de discussão volta a ser o verdadeiro papel da mídia, que em um intervalo de um dia, muda seu discurso com relação a uma mesma notícia.
O MPL
O Movimento Passe Livre existe desde 2005, inspirando-se nas revoltas contra as altas tarifas do transporte ocorridas em Salvador e Florianópolis. O movimento é independente de quaisquer partidos políticos e tem hierarquia horizontal e igualitária, ou seja, não tem liderança ou coordenação. Por não haver líderes definidos, é difícil estimar os participantes. O que se sabe em números mais precisos é que, em São Paulo, há um núcleo que possui cerca de 50 pessoas; no entanto, nacionalmente, há trabalhos em diversos estados, como O Distrito Federal, Santa Catarina e Goiás. Seu principal objetivo é conseguir a tarifa zero para os transportes através da mudanças de políticas públicas, que resolvem onerar o usuário e não a empresa. O custo para tal seria dividido pela população em impostos proporcionais à renda de cada indivíduo. Temas como a municipalização do sistema e o combate à cultura do automóvel também estão inclusos. Um ponto curioso é que grande parte das cidades que estão protestando não têm grandes articuladores do MPL, apesar de, com os movimentos nacionais, a página do grupo na rede social Facebook teve um salto no número de seguidores, passando de 6 mil para 110 mil.
O Histórico
Com reajustes anuais das tarifas do transporte coletivo, São Paulo chegou a ter a passagem de ônibus mais cara do país no começo de 2011, quando ela passou a custar R$3,00. Em 12 de fevereiro de 2012, o reajuste fez a passagem de trens urbanos e metrôs (propriedade do governo do estado) pular de R$2,90 para R$3,00.
Anunciado no dia 22 de maio de 2013, um novo aumento das tarifas de metrô, ônibus e trem fez os valores passarem de R$3,00 para R$3,20 a partir do dia 2 de junho na capital paulista. Na época do anúncio, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, declarou que o reajuste já havia sido postergado em função da política de combate à inflação e que a Prefeitura vinha suportando a situação com subsídios por um período muito longo, justificando-se assim o aumento da passagem para o fim do primeiro semestre de 2013. O reajuste ocorre geralmente no início do ano. Essas medidas, no entanto, não eram isoladas e começaram a acontecer em muitas cidades do Brasil.
Os protestos contra o aumento da passagem que pararam não só São Paulo, mas outras grandes cidades brasileiras no início de junho não foram os primeiros a lutarem contra essa medida. As primeiras mobilizações contra esse aumento de R$0,20 aconteceram em agosto de 2012, em Natal (RN), quando a passagem passou de R$2,20 para R$2,40. Pela pressão popular, o aumento foi revogado no dia 6 de setembro de 2012. Porém, a prefeitura de Natal voltou a aumentar o preço em maio de 2013 e os atos contra a medida voltaram a acontecer.
Ainda no ano passado, outras cidades também foram palco de manifestações, mas não houve grande repercussão na mídia. No Rio de Janeiro, os protestos tiveram início entre o final de outubro e começo de novembro de 2012. Lá, as pessoas estavam lutando contra uma medida que poderia fazer o valor da passagem aumentar de R$2,75 para R$3,05.
Após as contínuas manifestações, pelo menos sete cidades brasileiras vão reduzir as tarifas até o mês que vem: João Pessoa (PB), Recife (PE), Cuiabá (MT), Porto Alegre (RS) Pelotas (RS), Montes Claros (MG) e Foz do Iguaçu (PR).
As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, após grande pressão dos protestos, anunciaram que o aumento também vai ser revogado. Na capital paulista, a tarifa de ônibus, metrô e trem volta a ser R$3,00, enquanto no Rio de Janeiro, a passagem de ônibus volta a ser R$2,75.
Importância do movimento: reafirmação de direitos
Grupos reunidos em torno de diversas causas, não só a da redução do custo da passagem de ônibus, ganharam as ruas de todo o país exigindo uma nova postura de seus governantes. A dificuldade em se definir o foco dessas revoltas populares está justamente nisso: não se trata uma massa homogênea clamando em uníssono por uma bandeira. Mas sim, vários grupos que têm em comum a insatisfação com o Estado.
Diante deste cenário, a autoridade policial tem sido utilizada para reprimir a voz (pacífica) das ruas, legitimando suas ações por conta de grupos radicais que se aproveitam da revolta popular para cometer ações violentas contra a propriedade pública e privada: destruindo prédios do governo, queimando carros particulares, saqueando lojas, entre outros atos de barbárie. Como resposta, o que se vê são todos os manifestantes pagando o preço, entrando no mesmo saco e sendo recebidos com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, quer sejam eles pacíficos ou violentos.
Em artigo intitulado “O Estado é o último que pode perder a cabeça”, Márcio Thomaz Bastos – ex-ministro da Justiça -, Luiz Armando Badin – doutor pela Faculdade de Direito da USP e professor conferencista da ECA-USP – e Maíra Salomi – mestre em direito também pela USP -, defendem que “as autoridades de segurança pública têm a responsabilidade de proteger o exercício do direito constitucional de manifestação pacífica”.
“Ninguém pode ser preso se não estiver cometendo um crime”, esclarecem os advogados. “As autoridades policiais estaduais não podem compactuar com detenções arbitrárias. Devem se ater, exclusivamente, aos casos de excessos individuais”, argumentam. De acordo com o Código Penal, é proibido o abuso de violência, que só pode ser utilizada pela polícia, porém “sob o controle das autoridades eleitas para exercer tal responsabilidade”, escrevem os juristas
“É óbvio que o texto da Constituição já assegura ampla proteção aos cidadãos, em novas manifestações pacíficas. Os fatos revelam, contudo, que esses direitos foram recentemente pisoteados”, alertam os especialistas. “Quando há razões concretas para temer, a Justiça não pode se omitir na contenção da brutalidade”, complementa o texto.
Os milhares de manifestantes que invadem as ruas, páginas de jornais, telas de televisão e timelines de redes sociais revelam mais uma vez para todos que a voz do povo ainda tem poder de transformação e pode exercer pressão sobre os governantes eleitos nas urnas. Afinal, não é justo que o direito democrático só seja exercido de quatro em quatro anos.
As manifestações e a mídia
Ao todo, São Paulo presenciou seis manifestações contra o aumento da passagem. Mas a partir do quarto protesto, o enfoque dado pela imprensa sofreu uma grande transformação. A princípio, falava-se muito do vandalismo dos manifestantes, dos prejuízos causados pela depredação dos patrimônios públicos, dos problemas causados pela interdição das vias de trânsito. A mídia mostrou policiais contendo os manifestantes violentos, e a violência dos manifestantes para com os policiais.
Na terça, dia 11 de junho, tratando do terceiro ato contra o aumento da passagem de São Paulo, William Waack, apresentador do Jornal da Globo, fala sobre o que havia acontecido naquele dia. Vândalos, depredação e ação policial eram, basicamente, os tópicos do discurso.
Sobre esses pontos, a mídia falou. O que ela esqueceu de falar foi que as manifestações tinham milhares de pessoas, e enquanto um grupo de 100 pessoas depredava patrimônios e agiam de forma violenta, o restante do público se manifestava em paz. Esqueceu de falar, também, que a ação policial foi mais abrangente do que pareceu: o gás lacrimogênio era dirigido a quaisquer manifestantes, não somente a aqueles que precisavam, de fato, ser contidos.
O dia 13 de junho ficou marcado por muita violência no protesto de São Paulo. Enquanto os manifestantes faziam pedidos de paz, policias atiraram balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogênio em resposta. Nesse dia, cerca de 16 profissionais da imprensa saíram feridos da passeata. O caso mais conhecido foi o da repórter da TV Folha, Giuliana Vallone, que levou um tiro de bala de borracha no olho. O comandante da Polícia Militar de São Paulo, Benedito Meira, disse que o tiro foi acidental, mas a repórter e uma outra mulher que a acompanhava, disseram ver um policial mirar e dar o tiro propositalmente. E após essa série de incidentes, o foco da cobertura mudou: os manifestantes, de vândalos, passaram a serem vistos como vítimas.
Na sexta, dia 14 de junho, Chico Pinheiro, apresentador da Rede Globo de televisão, comentou no jornal Bom dia Brasil sobre o quarto ato contra o aumento da passagem, ocorrido no dia anterior (13). Nessa ocasião, manifestantes e repórteres feridos e truculência policial dominaram o discurso de Chico.
Lucas Monteiro, integrante do MPL, em entrevista ao Roda Viva, programa da TV Cultura, disse que viu um editorial não assinado de um jornal “dizendo que o que a gente estava fazendo era pura baderna e que era necessário retomar a Paulista. A partir do momento que a repressão atingiu os trabalhadores dos jornais essa postura mudou bastante: a imprensa teve uma mudança nessa postura a partir do momento que aconteceram os terríveis fatos de quinta feira. E não acho que seja uma questão de corporativismo exatamente, mas quando a repressão policial atinge pessoas próximas a nós, a gente percebe mais o absurdo dela”.
Na segunda, dia 17 de junho, falando sobre o quinto ato contra o aumento da passagem, repórteres e apresentadores satisfaziam-se diante da câmera: a manifestação em São Paulo fora gigantesca e pacífica. E que cena bonita foi ver a população tomando a Avenida Paulista.
Imprensa para todos?
Observar toda a cobertura da grande imprensa brasileira é ter uma grande aula, na qual se discute a construção do jornalismo contemporâneo e seus rumos. Os veículos de informação, que a um primeiro momento tecia críticas a todo o processo de manifestação e explorou os lados negativos dos protestos e posteriormente, mostraram mais uma vez que a imprensa vive hoje um jogo de interesses. Não há nada de errado em mudar opiniões e discursos, tal postura é digna de elogio e demonstra o amadurecimento da imprensa democrática e aberta a receber críticas e elogios. O fator de erro no processo está na apuração e divulgação de informações equivocadas, bem como pré-julgamentos com relação aos manifestantes. De todo esse processo, o ponto que sai como maior inimigo da evolução do jornalismo é a necessidade dele ser atingido de forma direta para que suas atenções e discursos sejam voltadas a uma causa diferente daquela defendida pelos seus grandes empresários.