Ritmos como o funk e o tecnobrega despontam como vanguardas musicais mas enfrentam tensões sociais
Por Ariane Alves (arianecamilo.alves@gmail.com), Marcelo Grava (marcelo.grava@gmail.com) e William Nunes (willnunes94@gmail.com)
Há quem diga, embriagado pelo complexo de vira-lata que Nelson Rodrigues apresentou ao mundo, que o conhecimento do Brasil em países estrangeiros se resume a samba e futebol. Muito embora este lugar-comum esteja ultrapassado em tempos de globalização e crescimento econômico, a importância do samba enquanto produto de exportação e referência musical em todo o planeta é factual. Entretanto, a escalada do gênero até o patamar internacional aconteceu de forma diferenciada à sua disseminação em território nacional, onde o ritmo enfrentou forte discriminação.
Quando se procura desenhar o panorama da formação cultural do Brasil, palavras como “diversidade” e “miscigenação” são frequentemente usadas para retratar a ampla confluência de etnias, credos e infindáveis culturas que acompanhou a ocupação do território nacional por indígenas, portugueses, africanos e milhões de imigrantes de toda parte do mundo. O samba nasceu de uma dessas misturas, no início do século XX, oriundo de diversas manifestações culturais africanas que os escravos trouxeram consigo ao Rio de Janeiro.
Abraçar o argumento da diversidade sem analisar a fundo nosso cenário cultural, entretanto, é um equívoco. Gêneros musicais que, como o samba há mais de cem anos, disseminam-se entre as classes menos abastadas são envoltos em um preconceito social – embasado em questões morais – que, por vezes, nada tem a ver com qualidade ou prestígio. Neste panorama, o funk e o tecnobrega hoje despontam como vanguardas musicais no exterior enquanto lutam para ser aceitos no Brasil.
O baile todo
Dos morros de onde o samba começou a reverberar, hoje se ouve o funk, o pagode e os “ritmos de ostentação”. Ao longo de um território brasileiro muito mais descentralizado econômica e culturalmente, porém, regiões outrora “isoladas” servem de berço para as novas vanguardas. Mistura de ritmos locais como o caribó e o calypso com a temática “brega”, o tecnobrega nasceu no Pará e se espalhou país afora ao longo da década de 2000. Hoje despontando no mainstream com expoentes como Gaby Amarantos e o grupo Gang do Eletro, o ritmo já emplacou música-tema de novela, colecionou honrarias nacionais e internacionais (como uma indicação de Amarantos ao Grammy Latino) e ganha espaço em programações de festivais estrangeiros, como o “caçador de talentos” South by Southwest, realizado anualmente em Austin, no estado norte-americano do Texas.
Por situação parecida passou o funk carioca, há cerca de dez anos. Totalmente distinto do ritmo homônimo surgido nos Estados Unidos em meados dos anos 60, misturando ritmos como jazz, soul e rhythm and blues e tendo em James Brown seu principal símbolo, o popular “pancadão” das favelas foi herdeiro do miami bass e adequou a seu repertório elementos de freestyle, tornando-se conhecido internacionalmente, para efeitos de diferenciação, como “baile funk”. Mais sobre a história deste gênero pode ser conferida em outra reportagem da JPress, publicada em outubro de 2012.
Já o pagode, ramificação do samba bastante disseminado em festas de fundos de quintais no Rio de Janeiro (das quais o estilo herdou o nome), popularizou-se entre as décadas de 80 e 90 através de “figurões” como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho, ganhando em seguida uma visibilidade sem precedentes através de grupos como o Raça Negra, o Exaltasamba e o Art Popular. Com letras carregadas de romantismo e herdando elementos de gêneros aparentemente distantes como o rock e a MPB, o pagode dos anos 90 merece um capítulo à parte na história musical brasileira, devido às marcas deixadas não só no mainstream, mas no imaginário de centenas de artistas que hoje despontam no cenário.
Embora dotados de sonoridades díspares, estes ritmos compartilham situações semelhantes não apenas entre si, mas com inúmeros outros movimentos, como o forró, a lambada, o sertanejo e até mesmo a tropicália. Os fatores que agregam ou segregam os estilos musicais de público e crítica se adaptam ao longo dos tempos, mas em essência são semelhantes. Fazem parte de um jogo entre mainstream e underground, estética e essência e, ainda, entre elite e classes menos abastadas.
Muita treta
Ao final da década de 60, durante o regime militar, eclodiu no Brasil o movimento tropicalista, destoando das correntes musicais da época e bastante influenciado pela cultura estrangeira, sobretudo o pop norteamericano. Gilberto Gil, Caetano Veloso e a banda Os Mutantes foram alguns dos que enfrentaram críticas de uma sociedade habituada a ritmos nacionais como a MPB e a bossa nova e que foi de encontro à falta de política e à sonoridade gringa das canções do movimento. Á época, em 1967, chegou a ser organizada em São Paulo uma passeata contra a guitarra elétrica, instrumento considerado símbolo do imperialismo e disseminado entre os “traidores” tropicalistas. Na realidade, o protesto foi dotado de mais profundidade e ambiguidade do que sugere, envolvendo diferentes correntes musicais. O próprio Gilberto Gil esteve presente na passeata, embora com o intuito de apoiar a amiga e parceira Elis Regina.
Dois anos antes, outro episódio famoso envolvendo a guitarra elétrica ocorreu no tradicional Newport Folk Festival, em Rhode Island, Estados Unidos. No show mais simbólico de sua carreira, o cantor e compositor Bob Dylan foi vaiado por grande parte de sua audiência, que criticava o maior expoente do folk por usar uma guitarra elétrica em sua performance, em contrapartida à tradicional instrumentação acústica, com violão e gaita. O episódio mostra que, embora a intolerância inicial com o samba e a tropicália sejam semelhantes aos problemas atuais no Brasil, o preconceito não é característica exclusivamente nacional, e sim um incômodo natural diante do diferente, do estranho, do novo.
A discriminação sobre os ritmos mais recentes, como o funk e o tecnobrega, não são muito diferentes, mas carregam também um amplo fator social. No caso do pancadão carioca, a estrutura lírica ainda contribui para este distanciamento. “O funk tem sim letras ‘proibidonas’, sexistas e machistas, mas a pessoa sequer ouve o funk menos agressivo e já iguala tudo no ‘ruim’. Já no caso do tecnobrega, o lance é o preconceito pelo desconhecido mesmo”, afirma Marcos Lauro, jornalista e colaborador da revista Rolling Stone.
Para Marcos, a aceitação que esses ritmos encontram, muitas vezes, mais facilmente no exterior do que em território nacional não são indícios de particularidade do preconceito tupiniquim, que “é igual aos tantos outros preconceitos que o ser humano tem, independente se brasileiro ou não”. Entre esses seres humanos, está Rachel Sheherazade, âncora do noticiário “SBT Brasil” famosa por opiniões rígidas e reacionárias feitas em rede nacional. Recentemente, Sheherazade direcionou seus ataques a uma estudante carioca, mestranda em Culturas e Territorialidades, que elaborou um projeto de dissertação acerca da funkeira Valesca Popozuda e as relações de suas letras com o pensamento feminista. Na crítica à estudante, a jornalista não só se revelou pouco receptiva à sonoridade do funk como equivocadamente questionou a presença do ritmo na cultura e sua relação com o movimento feminista.
A rejeição causada pelas produções simples e letras superficiais – como no emergente “funk ostentação” – é colocada como questão de gosto, e, como diz a máxima, este “não se discute”. Entretanto, a insistência em marginalizar alguns gêneros musicais, excetuando-os do conceito de cultura e reservando minutos de um telejornal para colocar-se contra a realização de um trabalho acadêmico revela a continuidade de um elitismo cultural que aceita novidades apenas dentro de limitações e, geralmente, sob influência da mídia.
No Pará, a relação do tecnobrega com o público é semelhante. Oriundo sonora e ambientalmente das periferias, o ritmo compartilha uma produção simplista com o funk e isso mantém uma larga parcela da população distante. Os olhos e ouvidos reprovadores adaptam-se conforme a produção evolui e o movimento ganha visibilidade, embora – como em qualquer outro gênero – sua extensão menos pop, mais enraizada nas origens, e que atrai e destila um caráter transformador à população mais carente, segue pouco divulgada e disseminada.
Festas de aparelhagem
A promoção de uma diversidade musical é, há tempos, preocupação dos diferentes segmentos culturais, ainda que estes sejam delimitados e “pasteurizados”. No cenário atual, porém, as “novas mídias” criaram uma ampla diferenciação entre as medidas tomadas no chamado mainstream e nos meios mais independentes. Gaby Amarantos, que com sua música-tema de novela navegou pelas águas de grandes emissoras ao mesmo tempo que crescia no underground, serviu como expoente do tecnobrega, mas tornou-se mais um caso sui generis do que uma disseminadora efetiva do ritmo paraense. Para Yuri de Castro, jornalista e repórter do site Fita Bruta, hoje Gaby não é “nada para ninguém, nem para o indie e nem para o ouvinte de FM.[…] Não deu certo, investiram e não tocava em rádio. Ela tava dançando no Faustão, mas ninguém sabia que música ela cantava”.
Na opinião de Yuri, a também paraense Banda Calypso serve como um exemplo bem sucedido de disseminação dos ritmos e artistas locais, através da exposição que obteve no rádio. No entanto, ele afirma que ainda acha “muito pouca a invasão dos ritmos populares e pertinentes nas FMs e nas casas dos brasileiros”.
Por outro lado, o meio independente investe em produções diversificadas como “Jeito Felindie”, tributo ao Raça Negra em forma de compilação de covers do grupo gravados por bandas independentes. Idealizado pelo jornalista Jorge Wagner com grande apoio do Fita Bruta, o projeto reuniu artistas de regiões e sonoridades diferentes, todos fãs confessos do pagode de Luiz Carlos e cia., presença constante nas FMs de outras eras. Sem o mesmo investimento pesado e os grandes riscos do mainstream, a cena é ideal para projetos de qualidade e que rompam paradoxos, embora diante de um público consumidor bastante limitado. Segundo Marcos Lauro, “hoje o meio independente tem toda a força do mundo para fazer [as misturas] continuarem acontecendo”. No entanto, o jornalista deixa claro que, em sua opinião, a qualidade do resultado final independe da diversificação em si, e que “o artista nem deve ficar pensando muito nesse tipo de questão, senão ele não trabalha”.
Em meio a isso, os grandes eventos musicais nacionais também tentam, à sua própria maneira, dar voz às novas tendências, também diante de uma notável discrepância entre “grandes” e “pequenos”. Enquanto o Rock in Rio, por exemplo, cria um lineup heterogêneo mas de bom senso discutível, que já rendeu de vaias a cantoras de axé e bandas emo a “chuva de garrafas” em Carlinhos Brown, festivais menores buscam medidas menos arriscadas. O Cultura Inglesa Festival, que vem realizando anualmente diversas atividades relacionadas à cultura britânica em São Paulo, de forma gratuita, busca chamar bandas de cenas alternativas do país para reinterpretar grandes grupos ingleses. Para a edição 2013, por exemplo, o Bonde do Rolê (um dos grupos nacionais preferidos dos gringos, incluindo Paul McCartney) tocará The Cure.
No entanto, enquanto as iniciativas supracitadas buscam acabar com a segregação de gêneros em “cultura” e “subcultura” e despertar interesse do público mais “elitizado” para sons abnegados, as novas vanguardas caminham com as próprias pernas. Ainda sobre o funk e o tecnobrega, Marcos Lauro denota suas características em comum: “não dependem da aprovação de qualquer elite, financeira ou intelectual, para acontecer. São autossustentáveis: vivem perfeitamente dentro do seu gueto e ainda têm força para conquistar novos públicos, apesar de todo esse preconceito”.
Tá na hora da virada
Em sua 9ª edição, a Virada Cultural de São Paulo também apresenta um quadro favorável à promoção da diversidade musical. O evento, que leva mais de quatro milhões de paulistanos ao centro da cidade para assistirem às atrações durante 24 horas, vem se adaptando ao cenário plural da cultura brasileira. Novidades como a presença de um palco para o funk e a volta dos Racionais MC’s (afastados desde 2007 após um conflito entre o público e a Polícia Militar) estão entre as mudanças que despertam a atenção de quem já estava acostumado com um outro tipo de espetáculo.
Isso se deve, em grande parte, aos esforços da organização para incluir na Virada a maior variedade possível de gêneros musicais. Em 2013, pela primeira vez, a curadoria do evento não foi individualizada e incluiu um grupo de nove pessoas – entre elas Sérgio Vaz, da Cooperifa, e Tião Soares, vice-presidente do Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais – que montaram, entre as mais de 900 atrações, um cenário que equipara os diferentes estilos ouvidos pelos brasileiros e apreciados pelo heterogêneo público que vive em São Paulo.
Para Yuri de Castro, “[n]esse ano a intenção foi aproximar ainda mais a população do evento. E acho que isso é uma tentativa de tornar a programação mais política, mais interessante para a população e também para quem se apresenta”. Ele também destaca que a mentalidade do evento não é trazer grandes shows “de ginásio” ao público, mas ser “um ambiente de deslocamento dos eventos quase particulares para a rua”. Já ao ser questionado sobre a variedade do extenso lineup, Yuri diz: “Vejo com muito orgulho o Racionais e o MC Dedé num mesmo horário. Da mesma forma como vejo feliz o Negro Leo e o Fabio Goes e o Sol na Garganta do Futuro no palco para quem é mais experimental”.
A nova gestão municipal busca aprimorar o evento, que já é um dos maiores do mundo devido à quantidade de pessoas que consegue agregar, e aceita a tarefa de lidar com seus desafios. Embora haja críticas em relação ao fato de a Virada concentrar seus palcos no centro da cidade, sem uma grande disposição de eventos nas periferias, Juca Ferreira, secretário da Cultura do município, ressalta a importância de se realizar a Virada de forma centralizada, em vez de espalhar as atividades pelo território. O que caracteriza a Virada, segundo Juca, é “a quantidade enorme de eventos concentrados em uma determinada área, permitindo um grau de convivência que a cidade não desfruta em nenhum outro momento”.
O histórico deficitário de infraestrutura cultural nas periferias fez com que a iniciativa de incentivo às atividades partisse dos próprios moradores, que não se veem representados oficialmente nas políticas públicas destinadas às artes. Os saraus, importantes agregadores de pessoas que produzem e apreciam poemas, músicas e encenações teatrais, têm sua relevância reconhecida e estão presentes na Virada Cultural, juntamente com os cortejos comandados por grupos de cultura popular, como o Toré dos Índios Pankararú e o Bloco Carnavalesco Ilê Ayiê.
O secretário Ferreira também cita a expressividade das minorias sociais que fazem parte da população paulistana e que não têm destaque quando se fala de cultura. “Essas populações são confinadas e invisibilizadas na cidade. Não têm um reconhecimento cultural, apesar de contribuírem pra cidade há muito tempo”, declara o secretário a respeito dos indígenas, nordestinos e negros que vivem em São Paulo. Em meio a um conservadorismo e elitismo já enraizados na mentalidade paulistana, que se acostumou a desprezar o que não faz parte do seu meio de integração, promover um cenário de convívio sem distinções é um grande desafio. Comentando sobre este elitismo e a intenção da Virada em extinguí-lo, Yuri de Castro afirma: “A elite cultural só se acabará quando a cultura estiver mais presente nas escolas. Para o que temos, acho que a curadoria foi bem pontual.”
Apesar de durar apenas 24 horas, a Virada Cultural cumpre um importante papel na tarefa de aproximar os diferentes – e não divergentes – estilos artísticos que fazem de São Paulo uma cidade tão plural, buscando familiarizá-los e afastar o “estranhamento” que, há mais de dois séculos, causa discriminação.
Todos os intertítulos desta reportagem fazem referência a títulos ou trechos de canções de alguns artistas citados.