“O mercado ainda não estava muito aberto a corpos ‘fora-do-padrão-branco’. Eu não me sentia com potencial algum, só conseguia um trabalho ou outro que tinham um papel de personagem muito voltado para asiáticos. Hoje em dia é mais fácil, acho que a indústria está mudando, mas ainda não vejo protagonismo de corpos fora do padrão”.
O relato da modelo Tate Iizuke sobre o início de sua carreira retrata a diversidade da indústria da moda ao longo dos anos e sua atual situação com a chegada da internet e dos questionamentos sobre o padrão de beleza estabelecido. Das passarelas às revistas de moda, e também nos bastidores, a indústria passa por modificações gradativas, mas ainda contestadas.
Passarelas
Os desfiles de moda surgem na década de 1860 com o estilista Charles Frederick Worth, considerado o pai da alta costura. Contrariando o sistema estabelecido na época, em que as vestimentas eram criadas sob medida para o gosto e tamanho da cliente, Charles inovou ao produzir coleções sazonais que eram apresentadas ao público através de desfiles.
Com o passar dos anos, as passarelas se estabelecem como o local em que as marcas apresentam o conceito e as tendências de suas coleções, de forma que a ideia de vitrine foi expandida, e uma narrativa foi incorporada para provocar o interesse de compra nos consumidores.
Nesse contexto, os desfiles passam a criar desejo não só pelas roupas que são apresentadas, mas pela aparência de quem as veste. Isso reforça padrões estéticos ocidentais que estabelecem a mulher cisgênero (mulher que se identifica com o gênero de nascimento), branca e magra como a única representação de beleza. Os desfiles da marca Victoria’s Secret, por exemplo, apostam nessa estratégia: o que é vendido não é só a roupa, mas o sonho de se aproximar da aparência das modelos.
Tais padrões, muitas vezes, distanciam pessoas que possuem interesse em trabalhar na área. “Um dos motivos para não ter escolhido faculdade de moda foi de eu sempre ter sido uma pessoa gorda e, naquele momento, em 2007, quando eu entrei na faculdade, era muito pior. A gente não via pessoas gordas em nenhuma propaganda”, declara a modelo plus-size Natalia Paulenas.
A falta de diversidade na moda vem sendo questionada, principalmente através das redes sociais, de forma que a indústria precisou se reinventar para atender esse novo público que não aceita mais não se ver representado.
Com o intuito de denunciar essa situação, o site The Fashion Spot analisa a diversidade das modelos contratadas em cada estação. Aproximadamente 83% das modelos da semana de moda de primavera de 2015 eram brancas, enquanto em 2020 essa porcentagem caiu para cerca de 60%, indicando um tímido avanço nesse quesito.
Em relação às modelos plus-size, o número passou de 50 modelos contratadas no outono de 2019 para 86 na Semana de Moda de primavera de 2020.
O Savage X Fenty Show Vol 2, desfile da marca de lingerie da cantora Rihanna, que ocorreu em outubro de 2020, chamou atenção e conquistou elogios pela diversidade dos modelos contratados. A atitude mostra o nível de conhecimento que a artista possui sobre o seu público e sobre a carência de representação que o mercado sofre.
Em solo brasileiro, os cantores Emicida e Fióti, em parceria com o estilista João Pimenta, trouxeram a diversidade para a passarela da São Paulo Fashion Week (SPFW) em 2016. “As passarelas do nosso País precisam ser um reflexo do que se vê em nossas calçadas. É muito importante que cores e etnias diferentes sejam vistas em um espaço que discute a beleza e a elegância”, declarou Emicida para a revista Vogue.
Ainda na SPFW, a marca Free Free desfilou em 2019 com um casting que contava com mulheres cadeirantes e com síndrome de down. Já no desfile da Cavalera, o modelo transexual Sam Porto exibiu as cicatrizes deixadas pela mastectomia com a frase “respeito trans”.
Revistas de Moda
Para além das passarelas, por anos as revistas de moda contribuíram para a formação de um imaginário que dita e reforça o padrão de beleza branco, cis e magro. Entretanto, com o advento das redes sociais e uma maior conscientização sobre a beleza individual, as publicações da indústria assumiram um novo rumo mais condizente com os ideais propagados e defendidos atualmente.
A reprodução do padrão de beleza deu espaço a uma maior diversidade nas capas e editoriais de moda, em busca de atender ao público que, agora, não só enxerga e compreende sua própria beleza, como a quer representada nas mídias tradicionais.
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A edição brasileira da revista Glamour, por exemplo, apresentou mulheres negras em quatro de suas últimas oito capas, uma mudança significativa na visão das publicações do ramo.
Além da diversidade, a questão da edição das imagens é muito discutida. Uma editoria representativa que abraça o retrato fiel do corpo humano seria uma alternativa à quebra do padrão de beleza inalcançável estabelecido.
E nos bastidores?
Por trás dos flashes e passarelas, a diversidade nos bastidores da moda se apresenta como chave para fazer justiça à pluralidade de ideias.
A mudança por vezes implementada em frente às câmeras não reflete a condição dos bastidores da indústria da moda, ainda dominada por uma maioria branca. Dados levantados em 2018 pelo site americano The Cut revelam que, naquele momento, apenas 15 dos 495 membros do Conselho de Designers de Moda da América eram negros, e apenas 10% dos 146 designers que apresentaram seu trabalho na New York Fashion Week de outono eram negros.
“Eu tive uma experiência em uma São Paulo Fashion Week que foi algo inesquecível para mim, foi horrível, eu me senti super oprimido naquele ambiente altamente branco e elitista”, relata a produtora de moda Roberta Campos sobre seu primeiro contato direto com a indústria da moda aos 17 anos.
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O desfile da marca francesa Jacquemus se tornou alvo de debate nas redes sociais pelo mesmo motivo. O estilista foi muito elogiado pela escolha de seus modelos, que priorizava a diversidade e a representatividade. Entretanto, uma foto publicada no Instagram revelou que o time da marca é majoritariamente branco. Este episódio levantou discussão quanto a uma “diversidade maquiada”, utilizada apenas para simular uma representação que ainda não é, de fato, presente na indústria.
“O mundo da moda só quer maquiar as situações. Me incomoda muito essa falsa ideia que a indústria tenta passar de transformação, quando eles única e exclusivamente inserem modelos negros na campanha para dizer que não são racistas”, declara Roberta Campos.
É também muito comum que pessoas sofram embranquecimento nas fotografias, como o caso da atriz Lupita Nyong’o que teve sua pele clareada na capa da revista Vanity Fair em 2014.
Para Roberta, “visivelmente, quando não se tem uma preta pensando naquela proposta, naquele projeto, editorial, campanha, tudo o que está sendo construído é de uma visão branca, de uma hegemonia extremamente complexa que a gente precisa desconstruir”. Campos ressalta a importância da diversidade nas posições de tomada de decisão, de construção e de criatividade, para que a moda se torne de fato plural e democrática.
Redes Sociais
A internet, por sua vez, deu voz para que o público se manifestasse e expressasse suas opiniões quanto às abordagens utilizadas pelas marcas.
As redes sociais permitiram que pessoas comuns ocupassem o espaço nas mídias, ao garantir um local diverso e com uma fácil identificação com o público, como é o caso das influencers. Isso torna o velho padrão antiquado e questionável como a única forma de expressão de beleza.
Para a modelo Natalia Paulenas, as redes sociais passaram a dar visibilidade para quem não tinha voz, uma vez que atualmente qualquer pessoa pode se tornar uma influenciadora e abrir espaço para o que é considerado diferente do padrão estético estabelecido.
Nessa nova era, as grifes se esforçam para se adaptar e atender à visão formada, principalmente, na última década.
Entretanto a efetividade das ações nas redes sociais pode ser questionada. “Ao mesmo tempo que acho as redes um ótimo veículo para conscientizar pessoas, espalhar informação, trazer visibilidade à causas, também é usado como ferramenta de ‘livramento’, no sentido de que muita gente se mostra de consciente diante de muitos assuntos do tipo, mas na vida real não faz nada”, defende a modelo Tate Iizuka.
É o suficiente?
A diversidade implementada na indústria da moda na última década está muito distante do ideal. As passarelas, campanhas, editoriais e postos de trabalho ainda são majoritariamente dominados por pessoas brancas que refletem o velho padrão estético estabelecido.
O relatório de diversidade do site The Fashion Spot revelou que o número de modelos plus-size que desfilaram nas semanas de moda caiu de 86 na primavera de 2019 para 46 no outono de 2020. A quantidade de modelos transgeneros e não-binários foi de 91 para apenas 21. Isso indica uma inconsistência e uma representação tímida da diversidade, considerando que, por exemplo, a semana de moda de primavera 2020 contratou no total 7390 modelos.
Uma grade de tamanhos que contemple todos os tipos de corpos é, ainda, um sonho distante. Campos ressalta a importância de criar peças que compreendam as necessidades do público, como por exemplo biquínis idealizados para mulheres transexuais, para que a moda se torne, enfim, um lugar confortável para todos.
Para Iizuke, a diversidade na indústria é ainda muito superficial e sustentada por aparências: “Muitas marcas acabam por trazer aquela ‘falsa representatividade’, uma marca de roupas vai fazer um ensaio com cinco modelos, três brancas, uma amarela e uma preta. Quando vai ver, a equipe (não os modelos) não tem uma pessoa fora do padrão”.
Ainda segundo Iizuke, “falar sobre o assunto ajuda muito a conscientizar cada vez mais as pessoas do papel delas na indústria, principalmente o papel das pessoas privilegiadas em prol das pessoas não privilegiadas”.
Muito interessante a matéria, principalmente por trazer diversos pontos de vista. Penso que a questão pode se estender também abrangendo mais faixas etárias.
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