Em O criptógrafo, (Companhia das Letras, 2022), o leitor é apresentado a uma boa dose de confrontos familiares, ao nascer de um gênio e a sua derrocada igualmente fascinante. Mai Jia (pseudônimo de Jiang Benhu) cria uma narrativa intromissiva sobre a vida de Rong Jinzhen, o maior criptógrafo da China até meados dos anos 1970, em formato de relato jornalístico.
Na obra, um repórter não identificado investiga a vida dessa figura tão significativa para o povo chinês, dando início a um livro repleto de entrevistas, excertos de diários e da experiência pessoal dele diante de contar a história de uma figura tão emblemática.
Dividido em partes, a narração começa com a apresentação do patriarca da família Rong, Lao Lillie, um homem de profunda importância intelectual e cultural na China. Longas descrições familiares e genealógicas fazem entender todas as camadas da criação e do peculiar ambiente familiar do protagonista Jinzhen, desde antes de seu nascimento. A infância, adolescência, início da vida adulta e trajetória acadêmica de Jinzhen são transpassadas pelo livro, reforçando seu caráter investigativo.
Jinzhen escolheu se tornar matemático, uma vez que desde criança demonstrou ter uma facilidade admirável com cálculos e raciocínio lógico. No entanto, motivos jamais compreendidos totalmente pelo leitor o levam até a criptografia, dentro de uma unidade secreta do governo chinês.
Ainda que em terreno fictício, o livro toca em pontos históricos de extrema importância para a formação política da China da vida real. Começando nos anos 1940, há o plano de fundo do estado-fantoche japonês em Nanquim e a contínua supressão da liberdade no país. Nesse cenário, a ciência lida com questões ideológicas que impedem seu avanço. A tese de conclusão de curso de Jinzhen, por exemplo, foi inspirada em um matemático anti-comunista que causou rebuliço entre o grupo de orientadores da universidade.
A ascensão do governo popular e a tentativa de boicote por outros países introduzem Jinzhen a esse mundo de segredos e ameaças codificadas, transformando sua vida e relação com o próprio país de origem.
“É difícil imaginar como uma nação seria capaz de sobreviver sem esses segredos. Talvez ela simplesmente deixasse de existir. Pode o iceberg sobreviver sem a parte oculta debaixo d’água?”
Página 172 de O criptógrafo
Rong Jinzhen: ora herói nacional, ora vítima de segredos
O criptógrafo apresenta a jornada de um herói que sai do lugar-comum daquele que possui objetivos obstinados e convicções inquebrantáveis. Jinzhen não é protagonista de suas próprias decisões e tem sua genialidade constantemente explorada por outras pessoas, se tornando distante de sua própria individualidade e capacidade emocional. Esse ponto é levado ao extremo ao se ligar ao clímax do livro, apresentado na contracapa.
Uma vez que a sinopse entrega o rumo da história, cabe à construção dos fatos feita pelo autor o compromisso de envolver o leitor e levá-lo até o final do livro. Mai Jia consegue fazer isso, no entanto, o mistério central fica enfraquecido, uma vez que questões cruciais para entender certos acontecimentos da vida de Jinzhen e seu destino final não são desenvolvidas.
O leitor, assim como Jinzhen, não possui certezas e acumula dúvidas do início ao fim da leitura. Sem convicções, a humanidade de Jinzhen torna-se intangível, uma incógnita indecifrável tal qual um código de alta complexidade. O autor Mai Jia parece ter buscado propositalmente tornar os mistérios do livro insolúveis para combiná-los com a realidade envolta de segredos vivida por Jinzhen, o que torna a leitura ainda mais convincente e amarga.
[Imagem de capa: Divulgação/Companhia das Letras]