Por Luana Mendes (luanalimamendes@usp.br)
Agreste (2024) é uma história de amor no sertão brasileiro. Baseada na premiada peça de Newton Moreno, doutor em Artes Cênicas pela USP, a trama aborda o desconhecimento do corpo e da própria sexualidade. Produzido para os cinemas pelo documentarista Sérgio Roizenblit, o longa estreou no Cine PE – Festival Audiovisual 2023 em Recife, em que venceu as categorias de Melhor Fotografia, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro e Melhor Filme Júri Popular.
Em meio a tentativas de transformação da representação do interior brasileiro, a obra estreia como uma história de amor no Sertão. Contudo, a sensação de monotonia e o conjunto de escolhas cenográficas surgem como empecilhos da total apreciação do telespectador. A intolerância e outras questões debatidas na trama aparecem normalmente em segundo plano.
O enredo corre em torno da relação entre o trabalhador rural Etevaldo (Aury Porto) e Maria (Badu Morais), uma jovem com casamento prometido para outro. Para viverem seu amor, fogem juntos pelo sertão e encontram abrigo na casa da religiosa Valda (Luci Pereira), que vê Maria como uma filha. Quando um suposto sequestro passa a ser investigado na região, Etevaldo teme que seu passado seja revelado.
Em 2004, a peça recebeu da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), os prêmios de Melhor Espetáculo e o de Melhor Autor. No mesmo ano, Newton Moreno ganhou o Prêmio Shell pelo texto. O sucesso possibilitou uma repercussão da peça, seguida pela adaptação cinematográfica.
Construído de modo a expor a rusticidade da vida sertaneja sem recorrer a estereótipos, o conjunto de escolhas visuais e sonoras tenta distanciar o telespectador da sensação de ser apenas mais um filme sobre sertão, e se aproximar de obras como Bacurau (2019). Contudo, a paleta de tons terrosos, o aspecto desbotado e a narrativa monótona na maior parte do longa inibem o movimento de revolução na representação do sertão no cinema.
A reação do povo e o grande alvoroço em frente aos acontecimentos da trama revela o preconceito e o conservadorismo, um comportamento extremo que não se limita ao lugar ao qual alude o título do filme. O agreste ultrapassa o sentido de lugar e representa os interiores do Brasil.
O segredo quanto à transsexualidade de um personagem vem à tona apenas nos minutos finais do longa, não sobrando espaço para diálogos elaborados ou interações. O espanto é ressaltado pelas pregações e ofensas dos moradores, muito religiosos. A obra suscitou a discussão sobre o transfake, prática em que artistas cisgêneros atuam representando personagens trans. Na obra, o protagonista trans é interpretado por um ator cisgênero, Aury Porto, enquanto o ator transmasculino Léo Moreira Sávive um personagem coadjuvante.
O Coletivo de Artistas Transmasculines (CATS) emitiu uma nota de repúdio através do Instagram, com o intuito de denunciar essa prática que causa impacto negativo na vida de pessoas trans e travestis. “A prática do transfake e a falta de artistas trans em produções artísticas causam impacto real na vida de todes nós, não apenas pela limitação/impedimento de nosso acesso ao mercado de trabalho, mas também por perpetuar ao grande público estereótipos distorcidos que deturpam nossas experiências de vida.”
Em suas redes sociais, Léo Moreira Sá destacou que só soube que o papel principal de Agreste era transmasculino muito depois de seu self-test, por estar imerso em outro trabalho. “Na produtora de Agreste, perguntei quem iria fazer o papel e fiquei desesperado ao saber que seria uma ator cis. A pessoa que me atendeu defendeu a escolha do diretor dizendo que o personagem tem um segredo que poderia ser ter asas, chifres… mas tem vagina. ”
Na parte cenográfica, não se pode negar o esforço na mudança da perspectiva, já que o longa consegue representar a religiosidade e a cultura local de modo natural. A combinação de sons naturais da região, como o vento e a terra seca, com instrumentos tradicionais, como a rabeca e o acordeão. Na trilha sonora original de Dante Ozzetti, compositor e instrumentista, a imersão do espectador na trama é completa, especialmente ao considerar o pequeno volume de diálogos, que normalmente são curtos.
O silêncio contribui para acentuar o isolamento emocional e físico dos personagens, convidando também à reflexão e apreciação do visual. Planos longos ressaltam a importância da cenografia no drama. Com poucas movimentações e cenas em que a câmera não segue os personagens, a construção do filme é atrelada ao cotidiano dos personagens.
O filme é repleto de contraste, na história e nas cenas. A narrativa acontece mais nos detalhes do que exatamente nos diálogos. Os opostos de luz e escuridão, a pureza, a inocência, a intimidade e a descoberta de novas formas de amor compõem a experimentação da trama.
Maria e Edevaldo mal se conhecem, e há uma sucessiva descoberta em cada cena. Além disso, a intolerância, o preconceito violento e o fanatismo são trazidos de modo sutil pelos personagens, sendo em grande parte uma percepção do telespectador sobre a narrativa.
Agreste está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer: