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‘A Herança’: terror brasileiro dramatiza o pertencimento à família

Fazenda cafeeira que abriga um culto de mulheres é tema do longa brasileiro, que peca em seu clímax pelo pouco tempo de duração
Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)

Novo filme de terror e drama brasileiro, A Herança (2024) faz parte da curadoria da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e tem previsão de ser lançado nos cinemas em novembro de 2024. A Herança é um longa estrelado por Diego Montez e Yohan Levy, e dirigido por João Cândido Zacharias, também roteirista junto a Fernando Toste. Produzido por Bubble Project, Sony Pictures e Kromaki, a sua premiére oficial foi no Festival do Rio. Com cenário deslumbrante e minúcia em seus detalhes, o filme desenvolve excepcionalmente a tensão e o drama dos protagonistas. Entretanto, ele decepciona em um clímax que parece tolo, por conta da necessidade de mais tempo de tela para desenvolvê-lo.

Thomas e Beni sentados próximos ao lago, no primeiro dia hospedados na casa [Imagem: Divulgação/Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Após a morte de sua mãe, Thomas (Diego Montez) retorna  de Berlim ao Brasil junto ao seu namorado, Beni (Yohan Levy). O brasileiro descobre ser o único herdeiro  de uma avó que não conhecia, Hilda (Gilda Nomacce). Curioso pela história familiar, o casal visita a casa herdada. Thomas é recebido por suas duas tias, Victória (Analu Prestes) e Berta (Cristina Pereira). Diante da cômoda hospitalidade das parentes,  Thomas é maravilhado pela ilusória percepção de pertencimento à família, enquanto Beni desconfia de algo sobrenatural na casa. 

No terror como gênero cinematográfico, a ideia da casa ser uma emboscada ao protagonista não é um tema inesperado: pode-se considerar, Psicose (Psycho, 1960), A volta do Parafuso (The Turn of the Screw, 2009), Corra! (Get Out, 2017), a Maldição da Mansão Bly (The Haunting of Bly Manor, 2020) e toda a trilogia de X: A Marca da Morte (2022). A trama também mescla os elementos de casa assombrada com o culto de bruxas, presente em longas como A bruxa (The Witch, 2015).

O filme de terror segue um roteiro coeso que aborda o pertencimento ao parentesco. Entretanto, 1 hora e 20 minutos destinados ao desenrolar da trama não competem à densidade necessária para abordar as complexidades de Thomas com relação à vida passada e a fazenda, que significa as suas raízes.

O protagonismo mascarado de Beni contrasta com um Thomas manipulado pela família. Beni rouba a cena, então não é de esperar que o espectador preste mais atenção no estrangeiro do que no verdadeiro , porque este é alheio ao sinistro que acontece ao longo da história. Em coletiva com a presença da Jornalismo Júnior, a produtora Tatiana Leite comenta que o próprio fato de Beni ser estrangeiro faz com que ele entenda que a hospitalidade das tias não possuem boas intenções, pois ele sabe que não pertence ao ambiente da fazenda.

No instante em que Thomas chega na fazenda, as tias celebram seu retorno como parentes próximos [Imagem: Divulgação/Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

A respeito da língua do longa-metragem, o diretor do filme, João Cândido Zacharias revelou que “pareceu importante que os dois personagens falassem inglês, pois era de interesse que o Thomas estivesse o mais distante de suas raízes brasileiras, e a barreira da língua é um grande alicerce para separar a sua origem e a vida adulta”. Nas encenações em inglês e português, Diego Montez é capaz de captar um personagem obtuso e ainda assustado com os momentos sombrios. O ator mantém o possível para captar toda a complexidade real que Thomas deve possuir em apenas 80 minutos.

A manipulação feita pelas mulheres da casa com Thomas também não é uma abordagem nova no gênero de suspense. O luto é um fator determinante para a vulnerabilidade do protagonista, mas que não é abordado tão densamente quanto esperado. Outras questões como a falta de pertencimento à Alemanha ou a procura pela identidade são mencionadas, mas não levadas à superfície. 

O filme, entretanto, cria uma atmosfera de suspense propícia para que o clímax seja surpreendente. Entretanto, quando os elementos de terror chegam à tela, a história se torna rasa e simples demais. O espectador pode até questionar a si mesmo se deseja a salvação de Thomas ou não. 

No final da trama, a impessoalidade de Thomas é um fator determinante para a sua manipulação, vítima de estupro e de quase ser assassinado por um efeito de CGI, o corpo que pretendia ser revivido. A risada prepondera-se na sala de cinema quando o momento mais tenso do filme chega.

Beni ansioso para sair da casa com a luz laranja ao fundo [Imagem: Divulgação/Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Dentro da casa, a cor laranja domina a cena e se torna um grande comunicador visual. Como um grande elemento irônico, os tons alaranjados significam para a cultura latina como energia e vida, alegria, transformação, prosperidade e vitalidade. 

As cores contrastam completamente com a realidade do perigo de vida que Thomas sofria. Mas também realçam a manipulação de que a fazenda é um símbolo de alegria e futuro próspero, ao qual as tias aludem quando propõem que ele comece a morar na casa. Em cena memorável, há uma discussão entre o casal na sacada da casa, em que o brasileiro é banhado por uma iluminação alaranjada, enquanto Beni está mais ao canto mais escuro pela noite. 

De acordo com o seu significado, a cor alaranjada, a mais próxima do amarelo, não é recomendável para pessoas ansiosas. O que denota-se de forma curiosa é que esses tons mais quentes aparecem em momentos também em que o estrangeiro anseia sair da fazenda, mais ao final da trama. 

O laranja também aproxima-se aos tons de fogo, aspecto crucial nas minúcias do longa para entendimento de que a sua história é circular. O título também sugere o círculo de eventos por trás de elementos cruciais para entendimento: o incêndio e a gravidez de pai desconhecido. Estes aspectos são apenas mencionados pelas tias no início da história, mas também a conclusão do filme.

As tias e empregada são flagradas cozinhando um cordeiro na cozinha por Beni [Imagem: Divulgação/Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

A Herança é um filme que surpreende o espectador nas cenas de terror, mas o entrete ainda mais nos momentos de tensão e suspense que são geradas antes do clímax. As minúcias da cinematografia merecem toda a atenção do espectador, pois são belíssimas. Entretanto, a conclusão do longa era digno de entregar mais do que esperado. Mas cumpre as promessas de uma premissa sobre família e identidade que garante uma ótima experiência de suspense ao espectador.

O filme está disponível nos cinemas. Confira o trailer:

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