Por Aline Fiori (alinefiori05@usp.br)
A privatização é uma pauta econômica defendida principalmente pelos neoliberais, adeptos ao Estado mínimo, e rebatida pelos progressistas, que defendem maior interferência do estado na economia. O tema é controverso e voltou à tona com a venda de parte da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) pelo governo estadual, em julho deste ano. Processos de privatização também ocorreram em escala nacional nos últimos anos, como o da Eletrobras, em 2022.
O que é privatização?
A privatização é o processo de venda de uma empresa ou de uma instituição do setor público para a iniciativa privada. Uma empresa estatal é aquela na qual o controle de ações pertence parcialmente ou totalmente ao Estado, e cuja atuação geralmente acontece em segmentos de interesse público, como energia, telecomunicações e infraestrutura.
A venda dessas instituições pode ocorrer devido à decisão de um melhor gerenciamento pelas empresas privadas ou quando o governo necessita da arrecadação de mais dinheiro, reduzindo o papel do Estado na economia.
O Estado pode escolher entre diferentes mecanismos de transferência de gestão pública para a privada. No Brasil, quatro se destacam:
- Privatização clássica: a totalidade da empresa é vendida para o setor privado. Os processos de maior destaque desse modelo ocorreram durante o governo Fernando Henrique Cardoso, como os da Embraer, Vale e Telebras.
- Concessão: o governo concede a operação de um serviço público (como rodovias, aeroportos ou saneamento) para empresas privadas por um período determinado, com regras de operação e retorno financeiro estipulados. A infraestrutura continua sendo pública, mas a gestão é privada, tal como acontece na Rodovia Presidente Dutra – que liga São Paulo ao Rio de Janeiro – e nas operações da empresa de energia Enel.
- Parcerias Público-Privadas (PPPs): são contratos de parceria entre o setor público e o privado, no qual a empresa privada investe recursos, enquanto o governo regula e fiscaliza, podendo haver compartilhamento dos riscos e lucros. Na capital paulista, alguns hospitais e a Linha 4-Amarela do Metrô são administradas nesse modelo.
- Diluição de capital: a empresa de propriedade estatal faz uma oferta pública de ações, reduzindo a participação do governo nela. O processo de privatização da Eletrobrás e da Sabesp segue esse procedimento.
Estatizações
A intervenção do Estado na economia cresceu com Getúlio Vargas nos anos 1930, considerando que o setor privado, ainda emergente no Brasil, não tinha capacidade financeira nem técnica para desenvolver grandes projetos industriais e de infraestrutura.
Com o Estado Novo, cresceu o nacionalismo econômico. As estatais mais importantes criadas durante o Governo Vargas foram a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), a Petrobras, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a Fábrica Nacional de Motores (FNM) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O período da ditadura militar foi acompanhado do surgimento de dezenas de estatais com o objetivo de aumentar a nacionalização do país. Durante o milagre econômico, o crescimento foi acelerado com o apoio de investimentos públicos em infraestrutura e projetos de integração nacional. Diversas obras foram realizadas durante esse período, como a Rodovia Transamazônica, a usina hidrelétrica de Itaipu, a Telebrás e a Embratel. Nessa época também ocorreu o amadurecimento de estatais já existentes, como a Eletrobras.
Essas expansões trouxeram progresso, mas também endividamento, especialmente nos anos 1970 com o fim do milagre econômico. O Estado passou a carregar o peso financeiro de sustentar diversas empresas e uma infraestrutura que se tornava cada vez mais custosa. A década de 1980 marcou o começo de discussões sobre privatizações, ainda que de forma limitada. Somente na década de 1990 que começou uma grande onda de privatizações no Brasil, impulsionada por uma nova política econômica que buscava estabilizar o país e inserir a economia brasileira no mercado global.
Primeiras privatizações
O governo de Fernando Collor, no início dos anos 90, lançou o Programa Nacional de Desestatização (PND,) que consistia em ampliar a receita e cortar os gastos com empresas deficitárias. A primeira estatal privatizada foi a siderúrgica mineira Usiminas, uma das estatais mais lucrativas na época. Durante a administração de Fernando Henrique Cardoso, o processo de desestatização abrangeu empresas como a Companhia Vale do Rio Doce e a Telebras.
A privatização da Vale foi uma das mais polêmicas, vendida por um valor visto como subestimado. A empresa cresceu após a privatização e se tornou uma das maiores mineradoras do mundo, mas enfrenta críticas ambientais e sociais sobre dispersão de metais pesados, mudança na paisagem do solo, contaminação dos corpos hídricos, danos à flora e fauna, desmatamentos e erosão, que refletem na qualidade de vida humana.
Bancos estaduais, como Banco do Estado de São Paulo (Banespa) e Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), foram privatizados com a intenção de reduzir a corrupção e o déficit fiscal nos estados. A privatização ajudou na reestruturação financeira, mas também levou ao fechamento de várias agências e redução de empregos.
Pedro Henrique Evangelista, professor de economia na Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que “na década de 90 houve um conjunto de processos de privatização que acabaram, ao final da década, sendo muito contestados por uma série de acordos entre políticos e empresários, feitos efetivamente para benefício de determinados grupos econômicos”.
Consolidação
No início dos anos 2000, os governos Lula e Dilma direcionaram seu foco não para privatizações diretas, mas para concessões e PPPs. A intenção era atrair investimentos privados sem abrir mão do controle estatal em setores estratégicos, como transporte e saneamento. Criaram-se agências de regulação para áreas como telecomunicações (Anatel) e energia elétrica (Aneel), com regras claras e estabilidade para o investimento privado.
O governo também concedeu rodovias e aeroportos, permitindo que o setor privado fizesse a manutenção e expansão desses serviços em troca de tarifas. Matérias jornalísticas da época revelaram, entretanto, que os contratos realizados nas concessões em 2007 não foram cumpridos e que as estradas encontravam-se em 2010 com obras atrasadas e trechos em péssimas condições.
Nos governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022), as privatizações assumiram outros setores. Temer intensificou o processo de concessões e lançou o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Bolsonaro foi grande defensor da desestatização e vendeu empresas como a Eletrobras, subsidiárias da Petrobras, a Companhia de Docas do Espírito Santo (Codesa), entre outras.
Atualmente, o terceiro governo de Lula tem revisado as privatizações em andamento, priorizando parcerias público-privadas e maior controle estatal sobre empresas estratégicas. Colocou em vigor o Novo Arcabouço Fiscal (Naf), que limita o gasto público com base no crescimento da receita.
Disputas sobre o assunto
Os defensores das privatizações, grande parte do pensamento neoliberal, afirmam que esses processos seriam responsáveis por aumentar a eficiência, competitividade e lucratividade das instituições onde acontecem e reduzir despesas públicas. Para essa corrente de pensamento, a desestatização aumenta o orçamento público e reduz dívidas públicas e interferência do Estado na economia, de forma que as empresas ficariam livres às regras do mercado. No entanto, Pietro Borsari, professor de economia na Unicamp, complementa que “o aquecimento da atividade econômica não deve ser o objetivo da privatização, mas sim entregar um serviço melhor ou mais eficiente, que atenda mais gente”.
Os que são contrários à proposta argumentam que as privatizações, principalmente as de oferta de ações, somente contribuem para o acúmulo de capital nas mãos de poucos por meio da transferência do patrimônio público para a iniciativa privada. Segundo eles, as consequências podem variar entre risco de perda de autonomia, precarização de serviços, aumento de custos, perda de direitos, exploração de mão de obra e agravamento da desigualdade social.
O debate é ainda maior nos setores de serviços essenciais – áreas como educação, saúde, saneamento e telecomunicações. Para os contrários à privatização, ainda que as empresas privadas possam ter mais incentivos financeiros para a produção de novas tecnologias e redução de custos operacionais, sua busca pela rentabilidade pode tornar esses serviços inacessíveis para parte da população ou região que não ofereça um retorno financeiro significativo. Em um país desigual como o Brasil, o argumento contra as privatizações ganha mais força. Nesse caso de uma desigualdade tamanha, o Estado teria de pensar na coletividade, explica Pietro Borsari.
O professor Pedro Henrique afirma que os processos de privatização devem levar em conta se o serviço em questão é essencial para a população. De acordo com ele, a colocação de uma atividade sob administração privada pode fazer com que as pessoas não tenham mais acesso a ela. “As empresas que são privatizadas devem cumprir com um papel na sociedade que depende de uma regulamentação do Estado por meio de contratos e processos que regem um investimento e desenvolvimento social, para além do lucro pelo lucro”, completa.
Além disso, o docente afirma que o processo de privatização não deve ser conduzido por estratégias de lobby, ou seja, afetado por interesses privados. Entretanto, Pedro Henrique explica que no Brasil o que acontece é exatamente o contrário, porque o setor privado orienta o setor público, mesmo por meio das agências reguladoras que também se orientam para os interesses empresariais. Pietro Borsari concorda: “O problema das agências reguladoras é que muitas vezes as pessoas que estão nelas tinham uma carreira anterior. Elas saem de uma empresa para depois regular o serviço da própria companhia da qual elas acabaram de sair. Isso tem uma ética duvidosa.”
De acordo com ambos, no Brasil esse cenário é visto no saneamento básico, em que cidades de maior poder econômico costumam ser melhor atendidas após privatizações, porém municípios menores e mais pobres muitas vezes enfrentam dificuldades. A capital do Amazonas ocupa a 15° posição de pior coleta e tratamento de esgoto no país e é tida como um contraponto ao discurso pró-privatização. Após mais de duas décadas com o saneamento privatizado, apenas 30% do esgoto coletado na cidade é tratado, conforme levantamento mais recente do Instituto Trata Brasil. O restante é despejado no rio Negro, em igarapés e córregos.
A privatização de energia elétrica gerou o aumento de tarifas – devido a contratação de novas termelétricas na desestatização da Eletrobras – e falta de transparência nos serviços prestados, mas a do o setor de telecomunicações nos anos 90 possibilitou um salto tecnológico e maior acesso à telefonia. Ainda assim, de acordo com Pedro Henrique, essa acessibilidade aconteceu devido ao processo de inovação que requereu abrir as demandas para novas tecnologias como o celular.
Diferenças nos modelos
A empregabilidade no setor público e no setor privado é estruturada de maneira diferente. Empresas estatais costumam oferecer maior estabilidade e planos de carreira, enquanto as privatizadas podem terceirizar ou subcontratar parte da força de trabalho, o que gera empregos mais voláteis e precarizados, porém, mais adaptáveis ao mercado.
No processo de privatização, geralmente grande parte dos funcionários públicos são demitidos para a diminuição de gastos. “Via de regra, as empresas, quando são privatizadas, enxugam os custos, e parte desses custos são com o trabalho. Nos cargos especialistas a remuneração pode ser mais alta do que em uma empresa pública, mas para a classe dos trabalhadores em geral, os processos de privatização deterioram suas condições”, argumenta Pietro Borsari.
A corrupção é uma prática que pode estar presente em ambos tipos de instituições. Nos anos 90, o Brasil privatizou várias empresas rapidamente, sem participação pública e com preços menores que o de mercado, como a Vale do Rio Doce, o que causou suspeitas e questionamentos. A Petrobras passou por diversos escândalos de corrupção que causaram perdas significativas para a empresa e para a gestão pública.
Para o professor Pietro, a legislação brasileira prevê ferramentas objetivas para a punição e sistemas de auditoria e controle que devem possibilitar maior fiscalização em empresas públicas. Ele argumenta que as empresas estatais de capital aberto estão sujeitas a indicações políticas, as quais podem ser uma ameaça em determinados casos, mas isso não quer dizer que as empresas privadas também não estejam sujeitas a esse caso de corrupção. O problema, segundo o docente, é a relação entre a empresa e um poder público para os interesses privados.
As diferenças de gestão também são vistas no campo da sustentabilidade. Assim como o governo, empresas estatais são convocadas a seguir metas e agendas de sustentabilidade e responsabilidade ambiental e social, seja por meio de conferências ou recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU).
Empresas privadas também são incentivadas a adotar práticas sustentáveis como diferencial competitivo e mercadológico, mas a busca pelo lucro faz com que possam cortar custos e ignorar impactos ambientais. Os setores agro, os quais dominam o capital privado, frequentemente estão envolvidos em desmatamento, uso excessivo de agrotóxicos, mal-estar animal, “sendo grandes responsáveis pelo aquecimento climático que está acontecendo”, explica Pedro Henrique.
“Não temos um contexto, e dificilmente alcançaremos um nos próximos 50 anos, que nos permita uma economia plenamente organizada pelo setor privado. E mesmo se chegarmos ao nível dos países centrais hoje, ainda assim teremos a necessidade de serviços públicos que pensem no desenvolvimento da sociedade”, conta Pedro Henrique. Na visão do professor, o governo e a estrutura política brasileira são historicamente atrelados e muito dependentes dos setores privados, o que dificulta uma regulamentação eficaz.