Por Aline Noronha (alinenoronha@usp.br)
Sob direção de Ivano de Matteo, Mia (Mia, 2023) é uma das tramas disponíveis até 8 de dezembro na 19ª edição do Festival de Cinema Italiano, que trouxe 29 títulos para as salas de cinema do Brasil e para o streaming de maneira gratuita. O evento conta tanto com filmes inéditos que fizeram sucesso em festivais como o de Veneza entre 2023 e 2024 quanto obras consagradas na história cinematográfica da Itália, como Nápoles Milionária (Napoli Milionaria, 1950).
O excepcional drama familiar retrata como um relacionamento abusivo transforma não apenas a vida de Mia (Greta Gasbarri), mas também a de seus pais Sergio (Edoardo Leo) e Valeria (Milena Mancini). Em meio a lágrimas, acertos e erros eles tentam salvar a vida de sua filha das garras de Marco (Riccardo Mandolini).
“Mia per sempre Mia”
O início do filme mostra um relacionamento familiar comum entre uma adolescente rebelde, que está na fase de beber, fumar e ter segundas intenções com garotos, e seus pais, que buscam lidar com esse momento conturbado ao tentar estabelecer limites saudáveis para essa liberdade. Nesse cenário, Mia, de 15 anos, conhece Marco, que é cinco anos mais velho, e engata em um romance que aparentava ser uma paixão normal da juventude.
Apesar da diferença de idade, que já é uma red flag inicial, a mãe de Mia apoia o relacionamento, enquanto o pai sugere que tudo estava indo rápido demais. Marco começou com trocadilhos com o nome da garota (mia, em italiano, significa minha), dizendo que ela seria para sempre dele e o que parecia ser algo inocente, muda totalmente.
Aos poucos as demandas sutis de atenção exclusiva ao relacionamento se transformam em ordens agressivas tanto verbal quanto fisicamente. A jovem vaidosa para de se maquiar, muda o estilo de roupa para algo mais conservador, deixa de sair de casa e se afasta de sua melhor amiga por causa de Marco.
Quando o rumo parece previsível ao público, Ivanno arrebata a trama em um desenrolar inesperadamente real, revoltante e triste. O drama conta com muitas cenas fortes de intenso sofrimento familiar e pessoal de Mia, que refletem gatilhos como suicídio, violência física, verbal e sexual, que devem ser alvo de atenção para as pessoas sensíveis a esses tópicos.
“Ele sufoca ela”
O desespero, tensão e angústia dos personagens são reforçados pela iluminação que varia entre tons mais claros e escuros como se refletisse o interior dos personagens. A escolha das cores também é interessante, na medida que elas se tornam cada vez mais frias ou quentes conforme Mia está nesse ciclo vicioso entre momentos de paz e tormento tanto em relação a Marco quanto ao seu relacionamento familiar. Além disso, o fato da câmera não ser estática traz o público para dentro do filme, como se estivesse imerso vivendo isso.
Com as mudanças na filha, Sergio tem um arco dramático bem desenvolvido ao mostrar sua decadência moral e psicológica conforme se vê sem poder de ação perante tudo o que acontece com Mia. A proximidade com sua esposa era marcada, simbolicamente, pelas cenas de sexo, porém quando estas foram interrompidas, o distanciamento éevidente pelas diferenças em lidar com aquela dor que os leva para caminhos diferentes.
Sergio busca vingança pela destruição que Marco causou em suas vidas e encontra seu clímax no desfecho da obra, em um momento do ápice de seu sofrimento, negação da realidade e fraqueza. O filme acaba em um piscar de olhos, com uma sentença que causa raiva e choque ao público que precisa de um tempo para processar o que viu, além de tentar achar respostas implícitas para aliviar o próprio desconforto.
O final aberto pode gerar controvérsias, mas isso contribuiu para que a trama italiana se tornasse mais universal e representativa. Da mesma forma que o amor é uma linguagem que pode ser entendida em todo o mundo, a injustiça e a violência contra a mulher dentro de um relacionamento tóxico também são, infelizmente.
O senso comum fala que “o amor é cego”, mas Mia busca conscientizar pais e adolescentes para o que acontece quando você recupera a visão e percebe que a sua vida inteira foi arruinada por alguém. O filme é um alerta para que haja um cuidado com as paixões, além de um estímulo para que mulheres que estão nesse tipo de relacionamento reconheçam os sinais e encontrem forças para terminá-los, antes que isso acabe com suas vidas.
No geral, a trama trabalha um arquétipo já conhecido da representação de relacionamentos abusivos, porém com alguns elementos que destacam a obra no meio dessas produções. O enredo é pesado, porém necessário para trazer essa discussão ao espaço público e criar ambientes mais acolhedores às vítimas.
Confira o filme no Festival Italiano de Cinema. Assista o trailer:
Imagem da capa: Divulgação/Festival de Cinema Italiano