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A luz em movimento: a iluminação na história do cinema

Como as técnicas de iluminação fazem parte da história do cinema e influenciam a construção da narrativa dos filmes

A luz é a mãe de todas as artes visuais. Foi com um reflexo de sol que Vermeer transferiu suavidade a um brinco de pérola e ganhou seu espaço na história. Através do claro-escuro, Caravaggio evocou a dúvida de São Tomé e fortificou a santidade de Cristo. Sem o domínio da luz, não haveria fotografia. Não haveria sequer a visão — afinal, é por meio de um feixe de luz que a imagem atravessa a córnea e alcança o cristalino, para ser focada sobre a retina, onde células fotossensíveis enviam mensagens químicas ao cérebro e, finalmente, enxergamos.

No cinema, a história do uso de técnicas de iluminação coincide com as tendências e necessidades de cada época, sendo impossível dissociá-la da história da sétima arte como um todo. Com um bom manejo da luz, o diretor de fotografia é capaz de transferir para a imagem plana as emoções e a profundidade da realidade multidimensional. Para o espectador, compreender e apreciar a arte da iluminação é, também, abrir-se para novas experiências ao assistir a um filme.


A iluminação na história do cinema 

Em preto e branco, o estúdio de Melière. Um galpão de teto triangular com paredes ocupadas por estantes com materiais. Homens espalhados pelo estúdio parecem utilizar de varetas ou vassouras para interafir com um painel estendido no chão.
O estúdio de Melière, também conhecido como “A casa dos sonhos”, foi feito de paredes de vidro para facilitar a entrada de luz solar. No início do século 20, a dependência da luz solar na produção cinematográfica incentivou a mudança dos estúdios de Fort Lee, em Nova York, para Hollywood, na Califórnia, onde era possível gravar com luz natural durante todo o ano. [Imagem: Reprodução/Cinematheque FR]
No início da produção cinematográfica, na segunda metade do século 19, as restrições técnicas dificultavam o controle da iluminação, de forma que as obras desse período são marcadas por uma perspectiva planificada da imagem. Thiago André (mais conhecido como Tandré) coordenador de produção audiovisual e tecnologia do Cinema da Universidade de São Paulo (CINUSP), diz: “Quando surge a fotografia cinematográfica, que exige o registro de diversos fotogramas por segundo, a limitação da tecnologia química da época só permitia a realização de filmes com a luz do dia, muito mais intensa do que qualquer fonte artificial”. Assim, nos filmes dos Irmãos Lumière ou de Melière, a imagem está sempre iluminada por uma luz difusa, o que contribui para a sensação de plasticidade da cena.

“O contraste mais elevado exacerba as diferenças, cria camadas, ajuda a perceber o espaço retratado como mais tridimensional”  Thiago André, coordenador de produção audiovisual e tecnologia do CINUSP.

Separadas por duas décadas de diferença, Les Dernières Cartouches (1873), de Alphonse de Neuville,e Bombardement d’une Maison (1897), de Mellier, retratam a mesma cena do bombardeio de uma casa durante a guerra franco-prussiana. Interessante perceber que, em razão do controle da iluminação e do uso de cores, a obra de Neuville consegue transmitir mais humanidade aos personagens que a de Mèliere, ainda que a primeira seja uma pintura e a segunda, um filme. [Imagem: Reprodução/Cinematheque FR]

Com a invenção da lâmpada por Thomas Edison e o desenvolvimento de filmes fotográficos mais sensíveis à gravação das imagens, a experimentação com iluminação aumenta seu protagonismo. Na década de 1920, o expressionismo alemão traz para o cinema a subjetividade do romantismo, revolucionando o uso da luz.

Em entrevista com Luiz Nazário, historiador e professor de Cinema na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele diz: “No cinema expressionista alemão, a iluminação ganha uma dimensão muito grande na narrativa do filme. Os personagens estão ligados à luz. Os heróis têm um tipo de iluminação, os vilões tem outro, com mais escuridão envolvida”, explica Nazário. Assim, a escolha pelo contraste acentuado, com sombras em destaque, enfatiza a subjetividade. É o auge do uso da luz como recurso para a produção de emoções no espectador.

Em preto e branco, um homem está parado sobre um fundo branco. É calvo, tem cabelos brancos e usa um sobretudo preto e um óculos. Segura um livro que parece antigo e mal conservado em uma das mãos. A outra esstá erguida na altura do ombro, com a palma virada para dentro e retraída. À direita do homem, sua sombra ocupa dois terços da imagem.
O uso da iluminação como recurso de construção da narrativa é elementar para o expressionismo alemão. Em O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari), obra de 1920 de Robert Wiene, a sombra cumpre o papel de apresentar a dualidade do personagem, a oposição entre o bem e o mal. [Imagem: Reprodução/Deutsche Kinemathek]
As experimentações com a luz entram em declínio com o surgimento do cinema falado. A necessidade de manter o silêncio durante a gravação muda a lógica de direção, afetando também a dinâmica de fotografia. Isso porque o excesso de ruídos produzido no movimento e na operação das câmeras obrigava a realização de cenas estáticas, impedindo a realização dos truques visuais desenvolvidos até então.

A liberdade criativa encontra ainda mais limitações, nesse momento, com a massificação da produção pela indústria. Tandré esclarece que “o uso inicial do som estava acompanhado de um sistema de produção em Hollywood altamente padronizado pelos grandes estúdios, que impunham uma estética praticamente fixa em todos os seus filmes, para maximizar a eficiência da produção em grande volume, o que também impactava as possibilidades de inovação artística”.

Com o tempo, a busca por uma padronização de estilo ganhou como aliadas as inovações tecnológicas. Por meio da iluminação incandescente, introdução dos refletores, instrumentos de medida de intensidade de luz (os fotômetros), entre outros instrumentos, a fotografia cinematográfica retomou as possibilidades de iluminação do cinema mudo, consolidando padrões estéticos que perduram até hoje.

“Só é possível ver o que está iluminado e, quanto mais escuro, menos percebemos os detalhes”.
Thiago André, coordenador de produção audiovisual e tecnologia do CINUSP.

É nesse momento, entre as décadas de 1940 e 1960, que se tem o ápice do cinema noir, responsável por retomar as técnicas de iluminação do expressionismo alemão para a construção de narrativas policiais. Um dos seus legados é uso de uma única fonte de luz para a produção de cenas com alto contraste entre luz e sombra, a fim de produzir efeitos dramáticos. “O contraste mais elevado exacerba as diferenças, cria camadas, ajuda a perceber o espaço retratado como mais tridimensional”, ressalta Tandré.

Em preto e branco, vemos o ambiente interno de uma casa. No centro, uma porta iluminada contrasta com o breu do ambiente. À frente da porta, um homem de lado segura uma bengala, apoiada em seu ombro. Só vemos a silhueta do homem e da bengala. À direita, uma janela quadrada também está iluminada.
Em Mank, vencedor do Oscar de melhor cinematografia de 2021, Messerschmidt investe no alto contraste da iluminação para a construção de uma atmosfera misteriosa, que perpassa o enigmático Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), roteirista de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e personagem principal do filme de David Fincher. [Imagem: Divulgação/Netflix]
A chegada das cores, assim como ocorrera com o cinema falado, forçou novas transformações nas técnicas de filmagem. Como Tandré esclarece, “os filmes coloridos, com seus filtros de separação das cores, acarretavam nova perda de aproveitamento da luz, e as exigências dos processadores desses filmes limitaram, no início, a variedade de usos de iluminação”. Ele ainda completa que, ao utilizar esses filtros, os diretores eram orientados a filmar com uma iluminação mais difusa, que ilumina todo ambiente de forma homogênea, reduzindo as possibilidades de contraste e, consequentemente, de criação.

A lenta adaptação às mudanças propostas pelo cinema em cores fez com que esse recurso demorasse a se consolidar na indústria. Enquanto muitos cineastas eram receosos com a presença das cores, nomes como Alfred Hitchcock e seu parceiro Robert Burks aproveitaram das possibilidades oferecidas pela dinâmica cromática para fazer novas experimentações estéticas. A partir daí, a iluminação passou a ser indissociável da paleta de cores, consolidando o que é hoje a direção de fotografia, também chamada de direção de cinematografia.

O trabalho de fotografia em Blade Runner (1982) é um exemplo de combinação harmônica entre a iluminação e a paleta de cores. Combinando elementos do cinema noir, como o alto contraste, com o uso da luz néon de tons frios, o filme é responsável por produzir uma dinâmica futurista que será central na estética cyberpunk.

Vários prédios ocupam o fundo da imagem. À direita, um painel de luz mostra o rosto de uma mulher, que sorri. Ela usa batom vermelho e tem contorno nos olhos. Na frente do painel há um carro voando.
O trabalho de fotografia em Blade Runner (1982) é um exemplo de combinação harmônica entre a iluminação e a paleta de cores. Combinando elementos do cinema noir, como o alto contraste, com o uso da luz néon de tons frios, o filme é responsável por produzir uma dinâmica futurista que será central na estética cyberpunk. [Imagem: Divulgação/Warner Bros. Pictures]

Tendências atuais

As técnicas de iluminação das produções atuais, assim como as escolhas estéticas de fotografia em geral, são exploradas de acordo com o estilo traçado pelo diretor de fotografia, em parceria com o diretor do filme. Nesse sentido, não é incomum vermos parcerias de longa data para a consolidação de um estilo próprio de cinematografia. É o que acontece, por exemplo, entre Roger Deakins e Denis Villeneuve, que produziram juntos Blade Runner 2049 (2017), Sicario (2016) e Os Suspeitos (Prisoners, 2013), e entre Emmanuel Lubezki e Alejandro González Iñárritu, que produziram juntos Birdman (2015) e O Regresso (The Revenant, 2015).

No trabalho desses diretores, a percepção e interpretação dos elementos da iluminação dependem de uma sensibilização do olhar pelo espectador. Assim como o enquadramento, a iluminação tem efeitos de direcionar a visão de quem assiste. “Só é possível ver o que está iluminado e, quanto mais escuro, menos percebemos os detalhes. Toda a construção de sentido da iluminação parte desse princípio”, analisa Tandré. Por essa razão, ater-se ao que a iluminação busca ou não destacar também faz parte da experiência cinematográfica.

Hoje, considerado o grande avanço das tecnologias de iluminação, as escolhas de fotografia passaram a depender mais de aspectos como o público alvo, o orçamento e a criatividade dos diretores do que das técnicas disponíveis.

“A técnica continuou evoluindo, mas a imaginação parou.” Luiz Nazario, professor de cinema na Escola de Belas Artes da UFMG

Filmes com alto orçamento para a direção de arte e destinados para um público com maior repertório sobre cinema aproveitam dos avanços possibilitados pela evolução dos iluminadores de LED. Tandré ainda ressalta: o aproveitamento de luz dos sensores das câmeras digitais melhorou muito, atingindo patamares superiores a qualquer película e até do que o olho humano. Cenas em lugares apertados ou iluminadas por uma fonte de luz pequena são cada vez mais viáveis.

Vemos uma sala escura, com paredes sujas e vigas de madeira expostas. No centro e na direita da imagem, vemos estruturas de alumínio de camas. Na metade esquerda da imagem vemos a silhueta de um homem, usando chapéu de soldado e com algo que lembra uma arpa em suas mãos. A silhueta aponta com o objeto para um homem iluminado no centro da imagem, que usa roupas de soldado e contrai o rosto da luz que emana da silhueta. Em uma de suas mãos há uma arma.
A disposição da luz foi um dos principais desafios encontrados por Roger Dickens na produção de 1917 (2019). Para a realização de longas tomadas com grande movimento de câmera, Dickens precisou recorrer a técnicas inovadoras de iluminação, que renderam o Oscar de Melhor Cinematografia em 2020. [Imagem: Divulgação/Universal Studios]
Por outro lado, no cinema comercial, as técnicas cinematográficas mantiveram as tendências de padronização estética do início da indústria Hollywoodiana. Filmes que buscam um grande alcance de público tendem a ter uma iluminação mais discreta, que não gera grandes incômodos no espectador ou desvia sua atenção da narrativa. Por essa razão, é comum a busca por um sistema equilibrado, que foge do contraste exagerado, mas também evita a iluminação totalmente difusa. Essa padronização não representa, no entanto, um menor custo nas produções, mas sim uma elevação de qualidades específicas para atender às expectativas do público.

Um grupo de pessoas anda na chuva. Há cinco pessoas. Da esquerda para a direita: um homem de camiseta amarela e calça preta carrega uma espingarda em seu ombro, Um homem camiseta vermelha usa luvar e outros acessórios azuis e um capacete prateado. Uma mulher de vestido vermelho, com cabelos brancos e uma mecha vermelha carrega uma espécie de lança. Um homem vestido inteiro de preto, careca e com um crânio maior que o comum apresenta pinos na cabeça. Um homem inteiro coberto por uma amardura carrega uma mochila.
No filme O Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, 2021), assim como em outros filmes de super-heróis, a iluminação não possui uma função narrativa de destaque. Sua manipulação tem como princípio o alcance de uma estética uniforme, que aumenta discretamente a luz sobre os personagens e os elementos principais, sem fugir da atmosfera que o espectador está acostumado. [Imagem: Divulgação/Warner Bros. Pictures]
Sobre as novas tendências de iluminação e recursos cinematográficos, Luís Nazário critica a escolha comum entre alguns filmes atuais em focar nos recursos tecnológicos disponíveis em detrimento do desenvolvimento do roteiro ou da criatividade dos diretores. “[Hoje], as técnicas são super evoluídas. Os efeitos especiais são maravilhosos, mas as histórias são muito fracas. A técnica continuou evoluindo, mas a imaginação parou.”

Novos desafios da iluminação

Assim como tem ocorrido com outros setores da indústria, a iluminação enfrenta o desafio de ressignificar alguns de seus paradigmas tradicionais para a construção de um cinema mais diverso e inclusivo. Tandré explica que técnicas como o desenvolvimento de películas foram historicamente direcionadas para  favorecer personagens brancos, reforçando a desigualdade racial. Sobre isso, ele comenta: “as técnicas de iluminação estão longe de ser o principal fator de construção e reforço dos estereótipos, uma atribuição muito mais das escolhas de personagem, que vêm da direção e roteiro”.

O coordenador ainda complementa: “hoje em dia há um grande esforço dos fabricantes e artistas em testar e aproveitar equipamentos que valorizem os diferentes tons de pele, acompanhando a atual e muito bem-vinda onda de aumento da representatividade étnica nas produções audiovisuais”.

1 comentário em “A luz em movimento: a iluminação na história do cinema”

  1. Atílio Avancini

    Cara Valentina,
    Muito bem-vindo seu texto “A luz em movimento”. Sugiro continuar a pesquisa, para uma IC ou TCC.
    Nesse caso, vc poderia entrar um pouco no cinema brasileiro, pois o Cinema Novo é pioneiro no uso da luz dura tropical…
    Parabéns, prof. Atílio

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