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A representação familiar nos filmes de animação

O cinema de animação proporciona visuais cativantes para o público infantil, mas não se limita a isso: por trás de cada cena há, também, uma lição importante inspirada em questões do mundo real

Nos últimos anos, uma crescente onda de filmes de animação que retratam relacionamentos familiares e fases do desenvolvimento infanto-juvenil tem dominado as salas de cinema. Obras como Encanto (2021), Red: Crescer é uma Fera (Turning Red, 2022) e Luca (2021) não escondem sobre que assuntos desejam tratar e difundem lições importantes para famílias, crianças e jovens. Mas será que esses ensinamentos realmente impactam na vida do espectador, seja ele adulto ou infantil, ou são esquecidos ao término de cada sessão?

Antes de entender como os filmes de animação podem contribuir — ou não — para melhorias na dinâmica familiar, é importante dar atenção aos motivos para esses temas tornarem-se tão recorrentes nos roteiros da Disney, Pixar, Dreamworks e diversos outros estúdios consagrados.


Um novo ideal familiar representado no cinema

Fabrícia Teixeira Borges, professora e vice-diretora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), explica que a integração das crianças na família é um processo que muda com o tempo e, nos últimos dez anos, houve um ganho de protagonismo das crianças dentro do núcleo familiar.

Segundo a professora, a dinâmica da família contemporânea é distinta da relação entre pais e filhos da geração passada. “Se pensarmos numa educação mais como a educação dos meus avós, da minha mãe, eles tinham muito menos protagonismo dentro da família do que as crianças de agora”, explica.

A dinâmica familiar moderna tenta compreender as crianças como seres humanos com  individualidades próprias. [Imagem: Reprodução/Freepik]

Com as mudanças que transcorrem nos núcleos familiares, os roteiros cinematográficos passaram a abordar esses novos temas, como a educação não tóxica e não violenta e a saúde mental familiar. 

O professor André Luis Macedo, do curso de Cinema de Animação na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), explica que o conceito básico do chamado roteiro aristotélico-grego — que tem origem no teatro da Grécia Antiga — consistia em ter um controle social a partir do que representava, como os valores pré-concebidos de relação de poder, rei, rainha, submissão, casamento e outros paradigmas históricos. Essa tentativa de controle social, agora através do audiovisual, aconteceu também em um passado não muito distante, quando a indústria de animação era dominada pela Disney.

Para o animador, os grandes estúdios de animação detinham um monopólio de poder que, hoje em dia, pelos espaços de streaming e animadores independentes, não existe de forma tão marcante. “O que acontece é que essas mídias, especialmente a Disney, não tendo monopólio, precisam se curvar para as demandas sociais que estão sempre evoluindo”. As produções mais recentes, portanto, abraçam os valores e lições do espectador, sem a tentativa de impor novas relações de controle.

Essa mudança tem o objetivo muito claro: ao trazer como tema principal das novas histórias as transformações mais marcantes da sociedade, os estúdios de animação se adequam à movimentação geral para atrair mais público. “Essas grandes produtoras precisam seguir essa evolução para poder manter uma relação com o público. Eles fazem isso não porque são bonzinhos, e sim porque querem mobilizar um grande público e querem arrecadar com isso”, ressalta André.

Mesmo nessa fase em que o cinema de animação tem como foco a família, os roteiros se subdividem em várias abordagens distintas. Há animações que ressaltam a convivência familiar, outras focam em mudanças trazidas com a idade e, ainda, algumas se preocupam em destacar a quebra de costumes pelas novas gerações. Às vezes, uma única animação pode trazer tudo isso junto!


Convivência e aceitação familiar

O longa Encanto retrata a vida de uma família diversa e multigeracional. [Imagem: Divulgação/Disney]

O filme Encanto, sucesso de bilheteria e ganhador do Oscar 2022 como melhor filme de animação e melhor trilha sonora, é um exemplo de obra tocante que busca retratar os conflitos que podem surgir em uma família multigeracional.

Na trama, cada membro da família Madrigal têm um dom especial e suas próprias funções dentro da casa e na comunidade em que vivem, exceto Mirabel (Mari Evangelista). Apesar de tentar se incluir, a menina se sente rejeitada, principalmente pela figura controladora da avó Alma (Márcia Fernandes).

A matriarca da família Madrigal, mesmo sem intenção, inspira sentimento de insuficiência nos mais jovens. [Imagem: Divulgação/Disney]

Ao longo da história, descobrimos que não é só Mirabel que se sente pressionada na família: Luísa (Lara Suleiman), que tem como dom sua super força, desabafa na canção Estou Nervosa sobre o sentimento e peso de receber, sozinha, todas as demandas da comunidade relacionadas a trabalhos braçais. Isabela, que pode fazer qualquer tipo de planta crescer, vê-se obrigada a ser uma moça perfeita e adorável para agradar e atingir as expectativas da matriarca. Bruno (Sérgio Rufino), tio de Mirabel, é excluído pela família, como evidencia a canção Não Falamos do Bruno, e vive escondido para evitar o julgamento sobre seu dom de visão do futuro, que se manifestava em horas inoportunas.

No fim, o drama familiar é resolvido e a matriarca compreende que o tratamento dado aos familiares era tóxico e gerava sentimentos negativos. O filme é muito mais que um desenho colorido e musical, pois seu roteiro exibe como uma mesma família pode ter pessoas diferentes e com visões distintas do mundo. 

O passado da avó Abuela é revelado e ajuda o público a entender sua conduta rígida e os problemas que traumas mal resolvidos podem trazer ao ambiente familiar. [Imagem: Divulgação/Disney]

O conflito entre Mirabel e Abuela reflete a importância de respeitar a individualidade do outro, entender o sentimento alheio e não colocar tantas expectativas sobre o próximo.


Amadurecimento e adolescência 

Uma das fases de maior conflito entre pais e filhos é a entrada na adolescência e, é claro, isso não poderia deixar de ser tema nas animações.

Red: Crescer é uma Fera, trata exatamente dessa importante mudança na vida infantil. No longa, Meilin Lee (Nina Medeiros) é uma jovem de 13 anos entrando na adolescência que, além de lidar com as mudanças dessa fase e a opinião da mãe sobre seus gostos e individualidades, ainda descobre ter o poder de se transformar em um panda vermelho ao sentir fortes emoções.

Ming Lee não respeita o espaço pessoal da filha, o que inibe Mei Mei no processo de desenvolver sua própria personalidade. [Imagem: Divulgação/Pixar]

Uma parte muito importante da história é o relacionamento de Meilin com a mãe, Ming Lee (Flávia Alessandra). A matriarca não consegue entender a filha como um indivíduo de opinião e desejos próprios, o que gera um conflito agravado pela presença do panda vermelho de Meilin.

O panda é uma metáfora sobre a primeira menstruação, uma piada feita até mesmo dentro do filme, mas, para além disso, ele marca uma mudança na vida de Meilin: a aceitação de si mesma como uma pessoa à parte de seus pais.

Ming Lee acredita que as mudanças no comportamento de Meilin são causadas pela puberdade e sua primeira menstruação. [Imagem: Divulgação/Pixar]

Para Meilin, aceitar as mudanças dentro de si mesma foi um processo difícil, mas com o apoio das amigas e do pai, a jovem conseguiu compreender que não havia nada errado. Sua mãe, no entanto, guardava dentro de si mesma um trauma em relação ao seu desenvolvimento e, sem perceber, tentava impor sobre a filha o mesmo que conseguiram impor sobre ela.

Na adolescência, Ming Lee reprimiu seus desejos pessoais e seu panda vermelho, o que a transformou em uma adulta controladora e incompreensiva. [Imagem: Divulgação/Pixar]

Depois de uma batalha de pandas vermelhos gigantes e uma conversa franca, mãe e filha conseguem entrar em sintonia e compreender as aflições interiores de cada uma. A lição final do filme mostra como é importante compreender a si mesmo e aceitar as transformações ao longo da vida, para evitar traumas e, possivelmente, atingir outras pessoas com esse sentimento contido.


Novas gerações e quebras de tradição

As mudanças trazidas pelas gerações mais jovens também costumam construir conflitos geracionais complexos no dia a dia familiar.

Em Valente (Brave, 2012), a princesa Merida (Luisa Palomanes e Fernanda Ribeiro) é uma jovem autossuficiente que precisa enfrentar as tradições muito prezadas por sua mãe, a Rainha Elinor (Mabel Cezar), que deseja ver a filha como uma princesa gentil, disposta a se casar e construir uma família. A adolescente se recusa a realizar o desejo da mãe e seguir o conjunto de normas que a fariam ser considerada uma princesa adequada.

Merida não teme desafiar as tradições e a mãe para defender sua liberdade de escolha. [Imagem: Reprodução/Disney+]

A quebra da tradição do casamento leva a uma discussão que torna o relacionamento entre mãe e filha insustentável. Somente após uma longa aventura, a rainha consegue entender e aceitar a filha e seus sonhos.

Outro filme que aborda as mudanças incentivadas pelas novas gerações é Os Croods (The Croods, 2013). Na obra, uma família da pré-história vive isolada e devidamente acomodada em sua zona de conforto, com medo de enfrentar o novo. No entanto, a filha mais velha, Eep (Luisa Palomanes), tem espírito aventureiro e discorda do modo de vida de seus pais. Em seus passeios fora da caverna, Eep conhece o jovem Guy (Raphael Rossatto), um nômade que a ensina que a vida pode ser mais que viver enclausurada dentro da terra. 

Enquanto Eep visualiza o futuro com entusiasmo, o pai Grug tem medo do desconhecido e das mudanças. [Imagem: Divulgação/DreamWorks]

Ao terem sua caverna destruída, a família é obrigada a sair em busca de um novo abrigo e acaba seguindo Guy, mas a mudança não é bem aceita por Grug (Hércules Franco), pai e líder do núcleo pré-histórico. Os conflitos gerados pela mudança de ares são muitos, mas aos poucos a família aceita o novo modo de vida proposto por Guy e Eep.

O medo do novo e da quebra de tradições é uma constante no mundo real, muitas famílias se portam de forma semelhante à Rainha Elinor ou a Grug, patriarca dos Croods. Os longas exibem como um sistema familiar fechado é sinônimo de família disfuncional e precisa ser evitado, com todos os membros da família conquistando voz para expor suas ideias.

Fabrícia discorre que, muitas vezes, a família ou a pessoa adulta responsável pela criança, tende a entender a figura infantil numa perspectiva do adulto e não da criança, porém, hoje há uma mudança no olhar em relação a essa questão, daí a quantidade de filmes que abordam esses conflitos. “Isso é um processo evolutivo, as crianças têm ganhado cada dia mais o respeito da família, têm sido mais ouvidas”, completa a psicóloga.

Apesar disso, ela reforça que o esforço em entender a criança como um indivíduo próprio não abrange todas as famílias, pois ainda existem aquelas com um perfil muito mais autoritário do que respeitoso em relação às crianças, principalmente no momento de ouvir o que os pequenos falam e entender como eles percebem a si mesmos e o mundo.


Repressão pelos desejos pessoais 

Algumas vezes, as vontades surgem sem a necessidade de uma nova fase ou alguma quebra de tradição, sendo apenas um desejo pessoal, motivado por curiosidade ou um sonho infantil.

O rei Tritão destrói as bugigangas humanas de Ariel como forma de reprimir seu desejo de conhecer a vida terrestre. [Imagem: Divulgação/Disney+]

Esse tema é abordado no antigo A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 1989) e no atual Luca. No primeiro, a jovem sereia Ariel (Marisa Leal, Gabriela Ferreira e Kiara Sasso) deseja incondicionalmente conhecer o mundo humano e experimentar a vida na Terra, mas seu pai, o rei Tritão (Luís Motta), a repreende por esse interesse na vida fora do mar sempre que possível. Por não ter seu anseio compreendido pelos amigos e família, Ariel cria uma coleção escondida de itens humanos para imaginar sua vida na terra. Quando seu pai descobre o local, destrói todos seus preciosos bens e tenta acabar com o sonho da sereia.

Em Luca, o jovem monstro marinho Luca (Rodrigo Cagiano) passa pela mesma situação que Ariel. Sua curiosidade faz com que ele deseje conhecer a vida na terra, mas toda sua família desencoraja esse sonho e tenta incutir o medo do desconhecido em sua mente. Depois que conhece Alberto (Pedro Miranda), um menino monstro marinho que vive na superfície, Luca começa a viver aventuras com o amigo, mas logo é descoberto pelos pais e mandado para viver no fundo abissal do oceano. A repressão faz com que Luca decida fugir e viver em meio aos humanos com Alberto.

A mãe de Luca discursa sobre o perigo que os humanos representam aos monstros marinhos e briga com o jovem pela sua vontade de se aventurar na superfície. [Imagem: Reprodução/Disney+]

Em ambos os casos, a reprimenda das figuras paternas resultou em ações extremas dos filhos: a sereia Ariel recorre à Úrsula (Zezé Motta), a Bruxa do Mar,  e o jovem Luca foge de casa. No fim, seus pais se arrependem da falta de afeto com que trataram os sonhos dos filhos e entendem que o apoio e carinho são essenciais para o desenvolvimento e boas escolhas.

No mundo real, esse tipo de conduta familiar desrespeitosa com crianças e jovens está relacionada, essencialmente, com a desigualdade social e econômica, como explica a professora Fabrícia. “Delegar à família a responsabilidade total da criança às vezes é injusto, porque algumas têm famílias que estão em uma situação de vulnerabilidade. Para além da família, tem uma estrutura maior que deveria prover esse grupo de condições adequadas para que essas crianças se desenvolvessem, isso é o que está na nossa Constituição, mas não é isso que acontece no nosso país”, diz.


Interpretação do público infantil

As animações abordam esses variados temas com um visual muito atrativo para as crianças, universos coloridos e personagens cativantes. Os roteiros com lições de vida, por vezes, são notados com facilidade pelos adultos e jovens, mas como as crianças são afetadas por essas histórias que visam representá-las?

Filmes de terror, comédias e dramas em live action atingem os espectadores e trazem à tona muitos sentimentos. O mesmo acontece com as animações. [Imagem: Reprodução/Freepik]

Para Fabrícia, o processo de linguagem é muito importante na construção das interações entre responsáveis e crianças. O cinema de animação, como uma linguagem própria, consegue se aproximar mais facilmente das crianças e jovens do que os adultos, e traduz com mais fluidez os ensinamentos e mensagens que alguns pais tentam passar. 

“O que acontece é que o cinema é uma arte que impacta muito. Você promove uma interação e na maioria das vezes as pessoas se sentem impactadas por isso. E com as crianças também acontece isso. Qual a diferença entre mim e uma criança?”, questiona a psicóloga. 

Segundo a professora, a mensagem passada com uma animação pode despertar questionamentos profundos em uma criança, mas esse movimento depende muito da idade e da experiência estética que a criança tem com a obra. “Se essa criança for muito pequenininha, ela não tem nem habilidades de linguagem para argumentar com o pai e mãe ou explicar. E é isso que acontece com a maioria das crianças, elas não tem argumentos porque ainda estão se construindo.”

André explica que, hoje, o roteiro de filmes das grandes produtoras é especificamente infantil, mas um único roteiro tenta atingir vários públicos. “Algumas situações podem ser identificadas pelos pais das crianças, pela família, e não pelas crianças, dependendo da maneira como foi colocada”, diz. 

Acrescenta, também, que os roteiristas tentam, sim, passar uma mensagem, uma lição de moral, seja para o público adulto ou infantil. “Os roteiros usam estratégias de provocação emocional muito comuns, principalmente quando se trata de família, relação pais e filhos, existem interações e problemas subjetivos que são comuns a todos nós, então os roteiros são temperados com essas estratégias que acabam cativando o público”, explica. 

Com exceção aos elementos mágicos, as histórias contadas pelas animações são retratos da realidade e poderiam acontecer com qualquer um, o que aproxima o espectador da obra [Imagem: Reprodução/Disney+]

Para o professor, as mensagens das obras de animação conseguem atingir o espectador, mesmo que não de forma racionalizada:  “Do ponto de vista mais inconsciente, mais subjetivo, essa mensagem é passada. Independente se for racionalizada, o espectador sentiu, se colocou no lugar do personagem, sofreu com personagem, riu como personagem, por isso acaba também absorvendo a mensagem, mesmo que não tenha consciência de que está absorvendo essa mensagem.”


Influências no diálogo familiar

Atualmente, os roteiros das animações são pensados para um público múltiplo, desde as crianças até os idosos, e muitas mensagens importantes são colocadas no enredo esperando atingir ao menos um grupo que esteja assistindo. É como se esses filmes tivessem se tornado guias da vida, da valorização do cotidiano, da amizade, da família, da diversidade e dos sentimentos.

As obras são tocantes e trazem muita reflexão depois de assistidas. No entanto, para o animador e roteirista André, os filmes de animação não têm a capacidade de modificar uma relação real, apenas trazer à tona lições importantes. “Esses filmes apenas reforçam alguns valores, a grande transformação está na vida real. Os filmes podem reforçar esses valores e podem potencializar valores que já estão sendo trabalhados na família, por exemplo, se os pais fizerem uma leitura e de repente até discutirem isso em casa, pode ser que haja um entendimento do próprio filme, mas eu acho que as produções, em si, são mais reveladoras do que influenciadores.” 

Fabrícia afirma que os filmes, independente de para quem eles sejam voltados, têm a capacidade de provocar o desenvolvimento. Mas não qualquer filme e nem com qualquer pessoa: “tem família que não se sente tocada e tem família que se sente. A mudança não vem do outro, a mudança vem de quem vai mudar. Então, os pais ou essa família só vão mudar se eles tiverem condições de mudar.”

Em Luca, a família supera o medo da superfície e dos seres humanos para apoiar o pequeno Luca. [Imagem: Reprodução/Disney+]

De acordo com ela, depende da relação que se estabelece entre a família e o filme — a chamada interação estética. Até que ponto essa interação vai ser tamanha que vai provocar algum tipo de desenvolvimento, depende. Algumas vezes, com pais que já podem estar mais sensíveis, é mais fácil e possível que um filme desencadeie mudanças e desenvolvimento na dinâmica familiar.

1 comentário em “A representação familiar nos filmes de animação”

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