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A Cracolândia pelos usuários e a ineficácia da gestão pública

Levantamento de dados com moradores da região revela problemas na política de internação, violência policial e expectativas frustradas em relação ao poder público
Imagem da Cracolandia
Por Clara Viterbo Nery (claravnery@usp.br)

Conhecida como “o grande problema sem solução” de São Paulo, a Cracolândia é uma das regiões de maior dimensão política da cidade. O nome pejorativo, que foi dado para nomear a maior cena de uso de crack do país, representa, além da diversidade significativa de indivíduos, as relações entre vulnerabilidade social, violência e racismo. Operações policiais e políticas públicas são direcionadas a essa área sem levar em consideração os moradores da região, o que gera inúmeros desdobramentos políticos e  estruturais urbanos.

A negligência da área se arrasta há décadas e impacta, acima de tudo, os seus moradores. É isso que mostra o relatório “A ‘Cracolândia’ pelos usuários: como as pessoas que vivem nas ruas do território percebem as políticas públicas, publicado pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getúlio Vargas (NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM/USP) e pelo Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território (Cóccix).

O relatório, escrito por Giordano Magri, Amanda Gabriela Amparo, Flávio Eiró e Gabriela Lotta, reúne depoimentos de 90 residentes da região e, a partir das entrevistas, conduz um levantamento de dados sobre diversas dinâmicas. Mesmo que em uma amostra reduzida, as informações levantadas explicam a relação entre os moradores com serviços de saúde e de assistência social, com as forças policiais e com o poder público. 

Em entrevista à Jornalismo Júnior, Giordano Magri, contou que a pesquisa, que já fazia parte de seu tema de estudo do doutorado, é importante para considerar a relação entre a região e as políticas públicas de São Paulo.

“Toda a política pública voltada para a Cracolândia é estruturada nesse binômio de repressão e internação, e os dados falavam exatamente que esse binômio, por um lado, não é efetivo e, no caso da violência, ele reproduz mais violência”

Giordano Magri

A diversidade dos entrevistados foi essencial para gerar mais interpretações sobre a condição de vida das pessoas que vivem na Cracolândia. Falar sobre as políticas públicas é também falar sobre como essas são implementadas, sobre as impressões e as expectativas que os indivíduos têm delas e, acima de tudo, se são ou não efetivas para o seu público alvo.

Imagens da Cracolândia
Entre os entrevistados pela pesquisa, mais de 80% eram homens negros entre 30 e 49 anos [Imagem: Reprodução/Divulgação/Luca Meola]

Acesso a serviços sociais e de saúde

Diante do problema de saúde pública relacionado ao uso do crack, uma das formas mais recorrentes que o Estado encontrou para “controlá-lo” é a oferta de internação, quase sempre baseada na repressão. Dentre a amostragem da pesquisa, sete em cada dez entrevistados já foram internados pelo menos uma vez — o que demonstra como esse método está sendo, de fato, aplicado na Cracolândia.

Por outro lado, dadas as experiências próprias e de terceiros, esse método não é entendido pelas pessoas como efetivo para lidar com o uso problemático de drogas. As internações são vistas pelos moradores como um local temporário para descanso e recuperação física, e não como uma solução efetiva para o vício.

“A internação é  justamente usada como uma forma de retirar essas pessoas daquele local e de não lidar com a complexidade que envolve o uso problemático de substâncias na vida dessas pessoas” 

Giordano Magri

 Há casos de usuários que chegaram a se internar mais de 30 vezes e, na maioria dos casos, a reincidência do crack é motivada pelo volta à rua. O fim do prazo de internação sem suporte pós-tratamento, a abstinência forçada e as más condições nas instituições acabam enfraquecendo esse modelo de internação, o que não só gera frustração para o paciente, como também a consequente perda de engajamento com as ofertas de tratamento pelo Estado.

Imagem da Cracolandia
Pelo menos 12 dos respondentes da pesquisa já foram internados mais de 10 vezes, com 32 sendo o número máximo [Imagem: Reprodução/Divulgação/Luca Meola]

A realidade de lidar com a dependência química necessita de uma gama de serviços muito mais complexa do que só a internação, desde o maior acompanhamento social pós-internatório até o acesso básico a profissionais de saúde. Nos últimos anos, observa-se a diminuição na presença de assistência médica e social na região e, dentre alguns motivos, um dos principais é o aumento da presença policial.

Giordano explica que a implementação desse cenário de constante violência acaba por afastar muitos profissionais da linha de frente da Cracolândia e, consequentemente, faz com que o atendimento adequado não chegue à população. “A violência tira a estabilidade necessária para que as interações entre as pessoas em situação de vulnerabilidade que vivem ali e o serviço de cuidado do Estado possam ocorrer de uma maneira efetiva”, complementa ele.

Lado a lado: forças policiais e poder público 

A violência policial surge como um fator agravante na vida dos moradores da Cracolândia, afinal, essa é dificilmente ignorada. Agressões físicas, verbais e morais fazem parte do dia a dia dos residentes que entram em contato com as forças policiais. Mais de 60% dos respondentes reportaram haver sido agredidos nas semanas anteriores à realização das entrevistas. Mesmo os que não foram diretamente agredidos, reconheceram o aumento da violência e da opressão cometida, especialmente, pela IOPE, Inspetoria de Operações Especiais da Guarda Civil Metropolitana.

Como se nota pelos depoimentos, a violência policial é uma realidade para essas pessoas, que sofrem de agressões, perseguições e até prisões. No entanto, o que se conclui dos levantamentos da pesquisa, é como o poder público materializa todo esse processo e transforma o morador em um ser menos digno e mais suscetível a toda e qualquer forma de violência.

“Você não consegue falar da Cracolândia enquanto território sem falar também da sua dimensão política”

Giordano Magri

Imagem da Cracolandia
A partir de todos os relatos de agressão cometida por forças de segurança, a pesquisa mapeou sete formas de violência reproduzidas na Cracolândia, como a imposição de circulação e a retirada de pertences [Imagem: Reprodução/Divulgação/Luca Meola]

O aumento da força agressiva da polícia tem sido percebida ao longo dos anos. A mega operação midiática de intervenção urbana, iniciada pelo ex-governador João Dória, instaurou uma nova forma violenta de lidar com esses moradores. Ela vem em um movimento de continuidade até o atual governo de Tarcísio de Freitas. Com movimentos de dispersão da concentração do fluxo e a mais nova proposta de “limpeza urbana” do centro para a construção da nova sede do Governo de São Paulo é que se nota o desrespeito do poder público com a região.

Os depoimentos da pesquisa apontam para a criação de uma descrença dos residentes da Cracolândia no Estado. Além da alta violência, do descaso do governo e das intervenções urbanas promovidas no território, os próprios moradores acabam sendo retratados pela sociedade como violentos e indesejados, quando, na verdade, seus atos são “um grito por respeito à própria humanidade”, como pontua Magri.

O que se espera, tanto pela pesquisa quanto pelos próprios respondentes, é que esses levantamentos sejam efetivamente levados em consideração pelo poder público. A elaboração e efetivação de políticas públicas devem levar em consideração, acima de tudo, as principais pessoas que são afetadas por essas decisões e focar no tratamento digno, respeitoso e sem violência dos moradores.

Imagem de capa e outras imagens: Luca Meola, responsável pelas fotos do relatório e para imprensa

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