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Há dois grandes atrativos iniciais que despertam interesse pelo livro: Ali Smith é considerada herdeira da Virginia Woolf e a temática central do é desconstrução de gênero. Só que talvez, o primeiro motivo se sobressaia mais.
Virginia Woolf é conhecida por sua escrita tão fascinante como um tanto enigmática Brincadeiras de pontuação e monólogos de fluxos de consciência também são observadas na prosa de Ali Smith. Tal proselitismo, no entanto, tende a afastar o leitor inicialmente e dificultar um engajamento maior no livro. O fascínio demora para ser conquistado e admirado. E este, infelizmente, pode ser mais um dos livros que você para na metade.
No romance Como Ser as Duas Coisas (tradução de Caetano Waldrigcomoues Galindo, Companhia das Letras, 320 páginas, 2016) que ficou entre os pré-selecionados do Man Booker Prize, a autora mistura histórias, gêneros, tempos e realidades. Em uma das narrativas, que se passa na Grã-Bretanha da atualidade, George (apelido de Georgia) é uma adolescente pedante que tenta superar a perda da mãe. Na outra, durante a Itália do século XV, o pintor renascentista Francisco del Cossa, que realmente existiu, tem sua história reconstruída pela escritora – para ela, o artista teria nascido menina e assumido a identidade masculina para poder trabalhar.
As narrativas, apesar de serem independentes, conversam entre si. Inclusive, metade da tiragem do livro sai com a história de George na frente e, a outra metade, sai com a narrativa de Francisco del Cossa primeiro. As duas personagens enfrentam dilemas de gênero – além do nome, George também tem aparência de menino – e descobrem sua sexualidade ao longo das páginas – a adolescente começa a demonstrar interesse por pornografia e o pintor se aventura em bordéis, onde desenha prostitutas.
Para aqueles que conseguiram se encantar pela prosa de Smith e não desistir da leitura, com certeza deparam-se com um romance extremamente complexo e incrivelmente tocante. O prodígio de Como ser as duas coisas não está somente na linguagem, na literatura ou no poder transformador da arte, mas, principalmente, nessa coisa confusa e desordenada que é o ser humano, de sentir-se mais um tipo de pessoa ao mesmo tempo. E todas essas possibilidades desencadeadas pelo desejo de não ser nem uma coisa, nem a outra, significa uma luta constante em ser os dois. Assim, com grande sutileza e inventividade, Smith continua a expandir os limites narrativos e estéticos do que concebemos como romance.
Por Giovanna Querido
gioquerido@gmail.com