Um olhar político sobre nossa memória coletiva, seletiva, histórica, afetiva — e nada inexistente
Por Tamara Nassif (tnassif@usp.br)
Existe um certo misticismo acerca da construção de nossa memória em seu sentido mais amplo. Não à toa, ela é estudada por incontáveis áreas, em especial a Filosofia, a História e as Ciências da Cognição, cada qual com seu enfoque e com um valor específico agregado. É mística porque é algo que nos preenche, ao mesmo tempo que nos instiga a respeito de sua essência. Ela é natural? Socialmente construída? Manipulada? Condicionada por certos fatores?
Na realidade, o que temos é um compilado de vivências individuais, influenciado e consolidado pelo contexto em que vivemos, que compõem nossa memória individual. Ela é quase que um reflexo, um produto, das inúmeras memórias que circundam e habitam o nosso cotidiano. Existe uma relação direta* de contiguidade, de dependência, de complementaridade e de composição mútua entre nossa memória individual e o contexto em que ela foi construída.
Da mesma forma que nossas memórias individuais se entrelaçam e se complementam no corpo coletivo, há uma série de ramificações que são de extrema relevância e que influenciam diretamente em suas construções.
Uma dessas ramificações é a (memória) “seletiva”.
Nós, como seres humanos, somos impossibilitados de lembrar de absolutamente tudo que vivemos durante a vida. De acordo com o psicólogo Antonio Euzébios Filho, formado pela PUCCAMP e docente do IP-USP, nossa memória é residual: “Vamos lembrar de alguns fatos específicos em detrimento de outros por conta de uma certa dramaticidade, de uma memória afetiva ou mesmo por preferência individual.”
Além disso, é uma mescla de naturezas: a biológica e a social. Existem mecanismos de memorização que envolvem a psicologia, a psicanálise e a biologia, mas também aspectos relacionados ao mundo social. Não podemos nos lembrar de tudo aquilo que queremos, mas sim daquilo que nosso idioma permite nomear, que nossa família prioriza, que nossa cultura enfatiza e que nossa educação salienta.
“A nossa memória individual é muito influenciada por enquadramentos sociais de memorização”, diz Marcos Napolitano, professor e doutor de História Social da FFLCH-USP. Mas isso não é um problema. A memorização é um fator biológico que é influenciado por questões sociais e ter uma certa seletividade é fundamental para que seja possível operar o amontoado de experiências que acumulamos na vida individual e social. A seletividade atua na mobilização da memória para nossa vida cotidiana, seja ela individual ou social. “É a nossa identidade em determinado presente.”
A outra ramificação de memória é a histórica.
Segundo Marcos, não há sociedade sem memória histórica e é ela quem dita, efetivamente, o passado, a identidade e “de onde um povo veio e para onde ele vai”. É aí que reside sua importância na composição das nossas individuais: sem uma memória histórica, nós seríamos autômatos, zumbis, sem ponto de partida nem de chegada, zanzando sem saber o que esperar. Como teríamos uma memória individual se não soubéssemos quem somos? Além disso, sem ela nós não teríamos a mínima consciência do que ocorreu no passado e estaríamos fadados a cometer os mesmos erros, passaríamos pelos mesmos problemas e implodiriamos pela ausência de uma solução já vista pelos nossos antepassados.
Quanto a memória histórica dos brasileiros, o “buraco é mais embaixo”.
Existe um clichê que navega pelo Brasil de que não temos memória histórica ou de que ela é excessivamente curta. Segundo Marcos, isso não é verdade: “O brasileiro tem uma memória histórica atrapalhada, lacunar, desorganizada e pouco construída, mas isso não quer dizer que ela é curta ou inexistente.” Esse clichê aflora, principalmente, em contextos políticos de elevadíssima polarização. Foi o que aconteceu a partir de 2014, com o desinchaço do espírito revolucionário das manifestações de junho de 2013, as Jornadas de Junho.
Nessa linha, as acusações de que os brasileiros carecem de memória histórica têm surgido novamente, em virtude de um saudosismo à respeito da ditadura militar de 1964. Esse tipo de sentimento é tido, pela Comissão da Memória e da Verdade da Prefeitura de São Paulo, como um desrespeito à história política do país ou ainda uma falta de conhecimento sobre o período do regime. “São pessoas muito bem postas na vida que dizem coisas reveladoras da profunda ignorância ou da falta de respeito com a história do país” disse Audálio Dantas, da Comissão, para a Folha de São Paulo em março de 2015.
Contudo, não é apenas por desconhecimento das mazelas provocadas pela e durante a ditadura que há o saudosismo, mas também por forte vínculo com a memória afetiva, outra ramificação. Marcos Napolitano explica que “às vezes é porque as pessoas que defendem o regime tiveram uma experiência boa com ele, ou então eram crianças e os pais falavam bem da ditadura, aí elas desenvolveram uma memória simpática”. Neste caso, a memória afetiva mostra sua face superficial,“acrítica”, muito influenciada por emoções que podem ter enevoado o julgamento racional e empático de um acontecimento.
E aí entra outra questão: a ausência de empatia em relação aos que mais sofreram com a realidade ditatorial dos anos 60, 70 e 80. “É uma memória afetiva que não tem a mínima solidariedade social, atravessa graves eventos que transcorreram durante a ditadura e não os considera importantes”, disse Marcos.
Ele frisa que a defesa de um confronto sem violência, sem acentuadas fisgadas aos direitos humanos e ao respeito a outrem, não é sobre “ser de esquerda” ou discordar de lutas necessárias para a sociedade avançar em sua totalidade, como aconteceu com a Revolução Francesa. “O problema está em achar normal ter torturas, desaparecimentos e execuções fora da lei. É um grave distúrbio na visão de mundo dessas pessoas, que é extremamente autoritária e acha que a violência é o que organiza a sociedade”.
Para Maria Inês Nassif, jornalista do portal GGN, o principal empecilho dessa memória histórica lacunar, “acrítica” e apática que os brasileiros temos reside em uma desassociação dos problemas do passado com os de agora, que são muito semelhantes. “É uma questão de negação de direitos. Eu consigo estabelecer muitos paralelos com o que está acontecendo agora e o que aconteceu em 1964, e isso é preocupante. É necessário ter memória histórica para que nós possamos enxergar essa negação de direitos de forma crítica, não passiva, e lutar para que não ocorra o que aconteceu em nosso passado, às vésperas do golpe militar”.
A verdade é que, para nossa memória, não se trata de uma questão de esquecimento, encurtamento de lembranças do passado ou apagamento de fatos, mas sim de seleção e priorização de acontecimentos em detrimento de outros. É aí que entra a seletividade de informações. Por que nos é interessante lembrar mais de certas coisas do que de outras? Ou melhor, por que certas coisas têm mais destaque que outras?
São, sobretudo, processos de comunicabilidade e de convencimento, não necessariamente envolvidos com manipulação ou mentiras. “Ao longo da vida, a gente às vezes exalta uma informação para que as pessoas lembrem dela e omite ou pormenoriza outras informações, para efeitos de ênfase nos processos de persuasão e comunicação”, como disse Antonio Euzébios , do IP-USP.
Além disso, nossa memória, além de residual, é muito condicionada pela frequência com que algo acontece ou aparece para nós e isso influencia no destaque que damos a certos fatos: “se uma coisa aparece muito, está sempre batendo à sua porta, é mais fácil você lembrar dela do que uma coisa que, vez ou outra, aparece em sua frente.”
Os meios midiáticos têm grande papel nessa questão de frequência, de seleção e de priorização. “Hoje a gente vive uma relação efêmera com a informação e isso tem contribuído para o processo de memorização. A relação com o fato se torna rapidamente obsoleta, muito por conta de um fluxo intenso e de novos meios tecnológicos. Podemos pensar a nossa mente como um computador: não há espaço para lembrar e armazenar tudo, ou às vezes temos que buscar muito a fundo nos nossos ‘arquivos’ para encontrar aquilo que procuramos”, argumenta Antonio.
Ademais, a mídia noticiabiliza fatos previamente selecionados, de acordo com Maria Inês Nassif. “Não é nem mais uma questão de selecionar a nossa própria memória, é uma informação seletiva que nós recebemos que influencia nela.” A jornalista ainda diz que nós não temos jornais com posições ideológicas distintas. A mídia hegemônica é tradicional e historicamente de direita, chegando ao centro em determinados momentos. Então, por mais que tenham notícias com angulações diferentes em mídias alternativas, o que o grande público recebe é um compilado de informações já selecionadas e enviesadas, que contribuem para que nós selecionemos e priorizemos determinados fatos em detrimento de outros.
“Alguns assuntos têm mais foco, mais atenção e mais frequência na mídia. São esses assuntos que vão ficar na boca e na memória do povo com mais facilidade”, disse Antonio Euzébios. Ele exemplifica com a seletividade do julgamento de políticos e parlamentares na Lava Jato. “Têm pessoas que recebem muito mais atenção do que outras, ainda que essas outras tenham cometido uma infração ou um ato de corrupção bem mais grave.”
Marcos Napolitano, historiador, tem outro olhar para a questão. Para ele, a grande mídia está ciente dos direitos humanos e os defende, mas atua de forma contraditória quando protege uma ordem social injusta. “Há indiretamente a justificativa de violências do Estado. Quando se define uma ordem social que não pode ser mudada, em que há a deslegitimação de movimentos sociais que querem mudá-la de antemão, há o estímulo à violência, mesmo que a violação de direitos humanos seja denunciada futuramente.”
A natureza seletiva da justiça também é um problema. Para Marcos Napolitano, quando ela se alinha à essa mídia, interfere no jogo político: algumas pessoas são transformadas em réus e presas, ao passo que outras são absolvidas por conta de uma série de jogos de interesse. “Os sinais da justiça em relação ao jogo político são muito contraditórios. Isso é um problema sério, conjuntural, mas pode se tornar uma marca de nossa vida política daqui para frente.”
Maria Inês acredita que esse é um dos principais motivos pelos quais os brasileiros se afastaram da política formal. A justificativa está na ideia de que a justiça, historicamente, intervém como uma instituição de aparência incorruptível e inviolável no jogo político. Ela seleciona quem pode ser votado e elegível, normalmente alguém sem o mesmo grau de popularidade da pessoa em julgamento, de acordo com certos interesses. “Os motes de corrupção e de ‘dinheiro roubado’ sensibilizam muito a classe média numerosa que se contrapõe a de baixa renda. Isso não é de hoje e vem sempre com o mesmo olhar.”
Antonio Euzébios argumenta, também, que o motivo pelo nosso afastamento reside na crença de que boa parte dos políticos são, de fato, corruptos. “Há uma crise de representatividade endêmica. As pessoas não se sentem representadas porque não há uma efetividade, a política não serve ao bem comum e sim aos interesses privados dos envolvidos com ela.”
Esse afastamento também contribui para que nossa memória histórica seja lacunar e incompleta, porque nós não estamos vivendo determinadas coisas em sua totalidade. Essa vivência falha dá margem para o florescimento de discursos como os de pró-intervenção militar, gerando um ciclo que tende à implosão.
Desse modo, a crítica à nossa suposta memória histórica inexistente se dá na ideia de que nós não sabemos de onde viemos e para onde vamos, que estamos inertes e passíveis de manipulação, e isso não é verdade. Nossa memória histórica existe. Nos dias de hoje, a nossa política é um pêndulo que transita entre democracia e Estado de exceção – e é muito importante lembrarmos do porquê de haver uma luta desde 1964 pela liberdade e pela democracia e de como nós estamos acostumados a banalizar o regime democrático.
O legado remanescente das questões sócio-políticas levantadas no passado, transmitido a nós pela memória histórica de nosso corpo coletivo, é visível hoje em dia, com o crescimento das reivindicações das minorias sociais pelos seus direitos. “Quando as pessoas vão à rua para reclamar, é porque são pessoas que, apesar da seletividade de informação da imprensa, das injustiças cometidas pelo Judiciário e do temor que isso provoca, têm uma memória seletiva que puxa o que foi bom e está sendo perdido. Da mesma forma que a memória seletiva se dá nos setores dominantes, ela também existe nos setores dominados”, disse Maria Inês.
A grande questão é até que ponto esses movimentos podem chegar – esperamos que até onde for necessário para que seus direitos sejam, de fato, efetivados.
Nós, como corpo social e coletivo, somos dotados de uma memória longa, extensa, recheada de um passado que até hoje é estudado e questionado. Sentimos na nossa pele coletiva o que é viver em um Estado de exceção, ainda que as nossas peles individuais não tenham sentido, de fato, o que é estar em uma sala de tortura ou como é sentir a falta de ar ao saber de um “desaparecimento” de alguém que amamos. Nossa memória lembra, com dificuldade, do que passou, e nós respiramos, também com dificuldade, em um regime democrático de direito que merece ser mantido. Merece por nós e por todos aqueles que lutaram para que o tivéssemos. Que lembremos quem somos, como somos e o porquê de sermos como somos.
Como disseram os Novos Baianos, “é hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor”.
*Quem estudou essa relação direta foi Ecléa Bosi, psicóloga e professora emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), com base no trabalho de Maurice Halbwachs, sociólogo francês que analisou a síntese da memória coletiva.