Pagar boletos. Fazer tarefas de casa. Regar as plantas. O que fazer para o almoço? Não esquecer de estudar aquele assunto. Cuidar do pet. Entregar bons resultados para o chefe. Superar expectativas. Mandar aquele e-mail. Se preparar para a reunião. Descansar? Não, não há tempo para isso. Trabalhar mais e torcer para que a saúde segure as pontas mais um pouquinho, só enquanto é preciso alcançar certo objetivo. E então, dormir mal para iniciar tudo de novo.
Se você se identifica em partes com essa rotina, provavelmente já seja mais uma vítima da superprodutividade do século XXI. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han escreveu sobre essa e outras “enfermidades neuronais” em seu livro “Sociedade do cansaço”, onde ele discute sobre como estamos passando por uma transição de estilo de vida, de uma sociedade disciplinar (aquela que é cobrada por resultados pela escola, família e trabalho) para uma sociedade de desempenho (a qual pratica a autocobrança). Não é preciso ler a obra inteira e talvez nem conhecê-la para compreender que estamos passando por tempos psicologicamente delicados (ainda mais depois do abalo da pandemia de COVID-19) e é essa discussão que vamos abordar nessa reportagem.
Nosso dia a dia e a normalização do alto desempenho
A J.Press procurou duas pessoas comuns para falar sobre o tema e entender melhor esse quadro a partir desses pontos de vista. Uma dessas fontes foi Samuel Henrique, ele tem 22 anos, trabalha como analista de dados e não se considera uma pessoa produtiva porque geralmente se sente cansado ou faz mais de uma tarefa ao mesmo tempo, além de acreditar que as vezes procrastina. “A gente tem essa dificuldade de ser produtivo, mas até que ponto a gente está sendo produtivo e até que ponto a gente está trabalhando demais, levando a gente ao limite? Porque nem sempre a gente precisa ir no limite”, relata. Já buscou ajuda de um psicólogo, o qual o aconselhou que não precisava cronometrar tudo o que faz. Atualmente, Samuel escreve um livro, trabalha, faz faculdade de Análise e Desenvolvimento de Sistemas, precisa estudar para completar um artigo além de estar estudando em um curso de inglês.
Priscila Ferreira tem 23 anos e também trabalha na área de Tecnologia da Informação, é Analista e Desenvolvedora de Sistemas, formada em 2021. Quando questionada se se considera uma pessoa produtiva respondeu que sim, “o cansaço geralmente é o que atrapalha a produtividade”, mas tirando esse fator Priscila relata que consegue alcançar seus objetivos. Já viu páginas e redes sociais que passam métodos ou costumes que ajudam a melhorar a produtividade, mas manteve somente os que funcionaram, por exemplo, eliminar tarefas mais curtas primeiro. “Antes o que dificultava era não saber por onde começar”.
Falamos também com o psicólogo, filósofo e pedagogo Alexandre Cavaliere, ele confirma que a primeira queixa de Priscila e Samuel é uma das principais questões que atende em seu consultório: o cansaço das pessoas. Depois da quarentena forçada devido à pandemia de COVID-19, as pessoas tiveram maior dificuldade de se desconectar do trabalho e consequentemente lidaram com uma maior demanda, “as empresas estão exigindo cada vez mais dos funcionários”. Cavaliere relata que já teve um paciente que desenvolveu Síndrome de Burnout por trabalhar cerca de 13 a 14 horas por dia. “Quem tem SB quando tenta parar não consegue, então o sentimento de culpa é comum, porque ele tem medo de não conseguir voltar”, relata o psicólogo.
A negligência do cansaço e o sentimento de culpa por não produzir
Se o sentimento de culpa ao tentar descansar é comum na SB, então é preciso se policiar ainda mais quanto ao momento de descanso, uma vez que separamos cada vez menos tempo para relaxar na “sociedade do alto desempenho”. Priscila diz que varia muito, mas na maior parte do tempo não descansa, geralmente é um dia no final de semana ou pelo menos 3 horas, mas depende muito das atividades que precisam ser resolvidas no trabalho. “Quando eu fazia faculdade e trabalhava, praticamente esse tempo de descanso não existia”. Perguntamos se já sentiu o sentimento de culpa nesses momentos e ela relata: “Ah bastante, na verdade, na maior parte do tempo […], aquele tempo de descanso é como se eu estivesse perdendo um tempo em que eu poderia ser produtiva”.
Já, Samuel, diz que separa pelo menos uma hora por dia para jogar e ter seu tempo de lazer. “Mesmo eu fazendo o que faço nesse tempo que eu separo, eu não descanso […]. Eu estou jogando, mas minha cabeça está no trabalho[…]. Eu deveria estar ‘botando’ pra frente as coisas que eu quero colocar em dia”. Por várias vezes, Samuel já se privou dos momentos de lazer para voltar a produtividade, e por isso hoje se considera muito “pavio curto”, ele diz que tenta não externalizar nem internalizar muito isso para não prejudicar sua saúde, mas já vê efeitos negativos provindos disso, como por exemplo, ter febres internas somente em metade do corpo.
O mercado de trabalho, o ambiente educacional e a saúde mental
Assim como Priscila declara que teve consciência da importância da produtividade depois que entrou no mercado de trabalho, algumas pessoas podem se identificar com essa constatação. A questão é que essa exigência do ambiente de trabalho foi intensificada no período de pandemia com o aumento da adoção do trabalho remoto, conforme já falamos. “Uma ‘férias’ de 30 dias por ano não é suficiente para recuperar um funcionário bom”, aponta Samuel. Um dos relatos mais chocantes de Priscila é de quando precisou passar por uma carga muito grande de estresse para perceber que devia mudar, caso contrário, não chegaria a lugar nenhum, pois sua produtividade no trabalho começou a cair devido à falta de descanso. “Ser produtiva é o resultado de várias outras ações”, conclui.
Falamos sobre a questão do trabalho remoto que se expandiu durante o isolamento social com o pesquisador e mestre em psicologia social, Gustavo Pereira, que destacou que essa modalidade pode trazer diversas consequências e talvez uma das principais é a constante quebra da barreira entre vida pessoal e trabalho, “se o seu trabalho fica na sua casa, teoricamente você está 24h por dia no seu trabalho”. Além disso, ele faz uma relação com a transferência de responsabilidade pela produção, que passou a ser do próprio funcionário, cobrança que antes era da empresa, o que gera uma pressão indireta causada pela autonomia, aparentemente positiva, que na realidade é ampliada e terceirizada para o próprio funcionário.
Já no ambiente educacional, a pandemia também afetou o ritmo e a produtividade dos alunos da mesma forma em que sua saúde mental foi afetada: “eu mesmo como professor me cansei muito mais na pandemia”, menciona Cavaliere, além de citar o surto coletivo que ocorreu em uma escola de Recife esse ano, em que cerca de 26 alunos passaram por uma histeria coletiva motivada pela semana de provas. O psicólogo aponta que o retorno ao presencial pós pandemia pode ter desencadeado essa entre outras reações, pois os alunos estavam desacostumados, e consequentemente “assustados” com uma prova, por exemplo.
No livro de Byung-Chul Han, o autor afirma que a causa da depressão é a pressão de desempenho, e essa pressão se tornou tão presente no nosso dia a dia que todos estamos suscetíveis à ela, o que pode acarretar outros distúrbios e surtos que já discutiremos por aqui.
Sobre a pausa dessa alta pressão, o filósofo denomina como “dia do cansaço” e “tempo de cura do trabalho” os dias de descanso, mas Cavaliere chama atenção para os curtos momentos de relaxamento que precisam existir ao longo da rotina, sendo o principal deles o momento de se alimentar. O alto desempenho abala vários pilares de nossa vida, as pessoas geralmente não comem bem, ou se alimentam enquanto trabalham, além de ignorarem sinais de negatividade, como desconforto, angústia, e até mesmo luto.
O excesso de positividade e a influência dos avanços tecnológicos na área da comunicação
Han aponta em seu livro que esses sintomas de negligência à negatividade se devem ao excesso de positividade ao qual estamos expostos constantemente na sociedade do desempenho. O famoso “Yes, we can!” ou “Sim, nós podemos!” se tornou tóxico a ponto de provocar o “esquecimento” da negatividade, tanto que precisamos ser lembrados que não somos máquinas e às vezes “está tudo bem não estar bem”.
Levantamos esse debate com o pesquisador Gustavo Pereira. Ele acredita que atualmente haja um processo de heroificação do indivíduo, no qual cada um seja visto ou levado a ser visto como o responsável pelo próprio sucesso e o herói da própria jornada, “o indivíduo acaba se enxergando como empreendedor de si próprio”.
A positividade mencionada por Han se deve principalmente à facilidade e quantidade excessiva de informações à nossa disposição, graças aos avanços das tecnologias da comunicação. Parte dessa positividade é disseminada pela internet em páginas ou perfis de conteúdo motivacional, um movimento que é seguido por diversas postagens positivas e momentos compartilhados com a #gratidão. É claro que as pessoas não podem ser consideradas culpadas por compartilharem momentos felizes em suas redes sociais, mas o fator decisivo está em quem consome esse conteúdo conseguir discernir a realidade daquilo que é postado pelos outros.
O pesquisador informa que na relação da positividade nas redes sociais, os sentimentos positivos acabam ocultando qualquer negatividade e, consequentemente, apaga o conhecimento do processo importante para o crescimento, o fracasso, conforme Byung-Chul Han também menciona em seu livro . Gustavo opina que atualmente há uma deturpação de conceitos como felicidade e produtividade, movimento fortalecido pela comparação cega com o outro, que cria um ciclo vicioso de pressões sociais baseadas em representações distorcidas da realidade. Graças ao movimento de equiparação e comparação com o próximo, essa pressão social acabaria sendo mantida pelos dois lados, tanto por quem impulsiona a positivação excessiva, quanto por quem a busca. “Ao romantizar eu mesmo essa situação [de superprodutividade e sucesso], eu mostro só esse lado para os outros”, e ainda complementa: “essa busca pelo sucesso é inalcançável pois você sempre pode, de acordo com a régua do mercado, ser mais bem sucedido. Se trata de uma busca fadada à frustração”.
Depressão, Tdah, SB e outras doenças/transtornos do século XXI
De volta ao livro “Sociedade do cansaço”, Han em sua primeira página já afirma que as doenças que marcam o século XXI são patologias neuronais, entre elas a SB, depressão, Tdah (Transtorno de déficit de Atenção e Hiperatividade) e TPL(Transtorno de personalidade limítrofe). Alguns dados já podem confirmar essa teoria:
- mais de 300 milhões de pessoas no mundo sofrem com depressão;
- A OMS classificou a SB como fenômeno ocupacional em 2019, mudança que só foi oficializada a partir de 2022, mas o Brasil já ocupa o segundo lugar no ranking de países com mais casos de SB;
- Cerca de 5% das crianças já são diagnosticadas com Tdah;
- Enquanto a proporção de pessoas diagnosticadas com TPL é cerca de 6%.
Vale ressaltar também que com o isolamento social, casos de ansiedade de depressão aumentaram cerca de 25% somente no primeiro ano da pandemia, o que já caracteriza um cenário alarmante para a saúde mental das pessoas. Esse aumento é devido a vários fatores causadores de estresse, e alguns países já incluíram planos voltados à restauração da saúde mental das pessoas como resposta à pandemia de COVID-19.
“Trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles se divertem e lute enquanto eles descansam”
A frase mais comum em conteúdos motivacionais, inclusive promovida por alguns coaches. Questionamos sobre o papel dos coaches e a famosa frase “trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles se divertem e lute enquanto eles descansam” para todos os entrevistados, Samuel diz que concorda com a frase, mas depende se está “valendo a pena” no momento. “Eu sou a favor de: ‘durma enquanto eles trabalham, durma enquanto eles se divertem’, enfim, eu estou dormindo 4 horas por dia”, acrescenta.
Alexandre Cavaliere menciona que “todo coach deveria fazer psicologia”, pois treinar uma pessoa a “dar grandes voos” é algo maravilhoso, mas se ela não estiver preparada para a queda pode ser uma realidade muito pior. Para ele, o principal erro é que essa motivação é feita sem ser trabalhada, ou seja, de forma muito rápida e “tudo que é rápido é muito perigoso”. O psicólogo exemplifica o seu processo de análise vocacional o qual trabalha maturidade, exigência, necessidade e vocação, diferentemente dos testes vocacionais rápidos disponíveis online, é possível esperar excelência no final dele.
Já Priscila fala que “no começo acreditava muito nisso, que devemos criar nossas oportunidades, mas hoje em dia as pessoas que pensam assim geralmente têm crises de ansiedade”. Além disso, acha que esse pensamento influencia as pessoas a considerarem que elas não merecem descansar e induz a descuidarem da sua saúde mental. “Uma hora o corpo cede, não tem como”.
Gustavo Pereira diz que essa frase resume esse contexto, afinal, esse não é um fenômeno tão novo assim. Cita que é uma característica do próprio capitalismo em que estamos acostumados com a ideia de que podemos ser substituídos no mercado a qualquer momento, o famoso “se eu não fizer, haverá alguém que faça”.
Nesse ponto já conseguimos compreender a importância de discernir o que é aplicável em nossa vida ou não. Conteúdos motivacionais podem ser excelentes para inspiração em algum momento difícil, mas sem dúvidas não deve ser nossa única fonte de ajuda. É essencial entender que os momentos difíceis e desafiadores existem, e que nem sempre daremos conta de fazer tudo ao mesmo tempo, estamos suscetíveis aos altos e baixos que compõem – e devem compor – nossas vidas.
Mas e você? Como está sua saúde mental hoje?