Por Mariana Ricci (mariana.ricci@usp.br) e Samuel Cerri (samuel.cerri@usp.br)
O longa-metragem mais aguardado do ano pelo público brasileiro, Ainda Estou Aqui (2024) foi exibido pela primeira vez no país no último dia 18. No Espaço Augusta de Cinema, o público lotou a sala, no que a diretora da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Renata de Almeida, chamou de “sessão mais disputada que vi em minha carreira”.
Ainda Estou Aqui é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva e escritor premiado no Brasil, autor de Feliz Ano Velho (Objetiva, 1989). Murilo Hauser e Heitor Lorega são responsáveis por roteirizar para as telas a narrativa que se passa em 1971, durante a Ditadura Militar no Brasil, sob o governo de Emílio Garrastazu Médici, na cidade do Rio de Janeiro. O filme criou muita expectativa no público por estrear com Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro nos papéis principais, além da boa recepção nos festivais de cinema ao redor do mundo.
A estreia
Antes da sessão, Renata contou que há muito tempo não via uma bandeira do Brasil estendida na exibição de um filme brasileiro em festivais internacionais com tanto orgulho, e então chamou “o culpado disso tudo”: o diretor do longa, Walter Salles. O também produtor de Ainda Estou Aqui disse que o filme foi pensado exatamente para aquele momento, a apresentação ao público brasileiro. Após a sua fala, convidou os “coautores dessa conspiração que fizemos”: Fernanda Torres e Selton Mello, protagonistas do longa.
Após serem ovacionados, cada um dos atores principais tomou a liberdade de contar sua própria anedota sobre o filme. Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva, citou o diretor britânico Mike Leigh brincando que “não há nada pior que um diretor que fala sobre o próprio filme antes dele ser exibido… e não há nada pior do que um diretor que fala do próprio filme depois dele ser exibido”.
Selton Mello seguiu no tom de Walter Salles dizendo que era naquele momento em que o filme se tornava completo: com o público. “Começamos a chegar onde interessa: o Brasil”, afirmou o ator que interpretou Rubens Paiva. Selton também relembrou uma situação inusitada que aconteceu no Festival de Veneza: “Quando a Fernanda Montenegro apareceu, ouvi pessoas dizendo ‘Mas que trabalho de maquiagem impecável! Deixaram a Fernanda Torres parecendo uma senhora!”. Aos risos e aplausos, a sessão iniciou.
Excelência brasileira
Walter Salles mais uma vez mostra ser um excelente diretor. Além de produtor executivo de Cidade de Deus (2002), também dirigiu o aclamado Central do Brasil (1998), o que explica sua maestria em retratar as nuances e a acidez da sociedade brasileira. Seu sucesso em captar a essência dos cenários, como o Brasil carioca ditatorial da década de 70, não seria possível sem se aliar à fotografia de Adrian Teijido, responsável por Marighella (2019), e à direção de arte de Carlos Conti, cenografista de Diários de Motocicleta (2003).
A primeira beleza do filme surge fora das telas ao ser lançado nesse momento sensível do cinema brasileiro. Após um período de tamanho descaso com a produção cultural nacional, Ainda Estou Aqui dá um ar de respiro ao povo brasileiro. Com todas as dificuldades do setor, a produção reúne grandes nomes do cinema brasileiro e marca para sempre o nome do país no cenário internacional. E essa resiliência tem muito a ver com o próprio longa-metragem.
A história de Ainda Estou Aqui gira em torno da família Paiva, uma representação fiel da classe média carioca da época: o casal Eunice Paiva (Fernanda Torres) e Rubens Paiva (Selton Mello) seus cinco filhos, Vera (Valentina Herszage), Eliana (Luiza Kosovski), Nalu (Bárbara Luz), Maria Beatriz (Cora Mora) e Marcelo Rubens Paiva (Guilherme Silveira). A história atinge seu clímax quando Rubens Paiva, ex-deputado federal cassado durante o golpe de 1964, é levado a interrogatório e desaparece.
A cinematografia de Teijido em Ainda Estou Aqui transporta o espectador ao Rio de Janeiro da década de 70. Cor, praia, vinil e Tropicália juntam-se em harmonia ao início do filme, quando os Paiva são apresentados como uma tradicional família carioca.
Vera, a filha mais velha de Rubens, carrega consigo uma câmera Kodak durante todo o filme e o espectador é convidado a adentrar nas memórias da família registradas por meio dela. Os frames do longa intercalam-se com as gravações caseiras da personagem, o que traz um aspecto retrô e único à obra.
Um dos pontos que Ainda Estou Aqui acerta em cheio é na retratação ambígua da Ditadura Militar. A obra de Walter Salles não cai no ostracismo de mostrar o período como uma espécie de idade das trevas, mas sim um momento histórico em que as pessoas viviam: crianças brincavam na praia, pessoas dançavam nas ruas e festas ao som de Bossa Nova, famílias saiam para tomar sorvete, jovens se apaixonavam e outros saiam de carro ouvindo Tropicália enquanto fumavam.
Mas, ao mesmo tempo, é possível sentir a opressão e a vigilância militar a todo momento. O exército sempre está no cenário de alguma forma, há sempre o som de algum helicóptero ou viatura, o controle opressivo é sempre aparente, ainda que sutil. Pois era assim a sociedade brasileira entre 1964 e 1985, não sufocada pelo aparato repressivo do exército, mas permeada e perpassada por ele.
Essa dicotomia é marcada logo no início, quando Eunice Paiva descansa boiando no mar, mas entra em alerta ao ver um helicóptero do exército sobrevoando a praia. As pessoas estavam na orla, se divertindo, mas os militares estavam lá, também.
Dentro da casa Paiva
Construído a partir de um modelo de narrativa clássico, Ainda Estou Aqui convida o espectador a entrar na casa dos Paiva e conhecê-los de forma íntima e singular. Ao final do primeiro terço do filme, o público já está cativado com a dinâmica familiar e, em especial, pela figura de Rubens Paiva como pai.
O filme faz questão de destacar a relação de troca que Rubens compartilha com cada um de seus filhos. As cenas intercalam-se entre pebolim de madrugada com seu menino, a despedida de sua primogênita que viaja para Londres, e o emotivo ritual que faz com a caçula quando ela perde seu primeiro dente.
São estes momentos cotidianos montados tão perfeitamente por Salles que aproximam o público à família e fazem com que o próximo bloco do filme seja tão doloroso.
Quando os policiais à paisana entram na casa da família Paiva e de forma truculenta fecham as cortinas com suas armas em punho, o espectador entende o que está por vir.
Novamente, a dicotomia entre subjetividade e objetividade entra em cena: percebe-se que aquela era a despedida de Rubens por meio dos frenéticos movimentos de câmera e a serenidade da atuação de Selton Mello, que parece já saber e se conformar com seu destino.
“Um filme feminista sem ser feminista”
Outro belo processo capturado no longa é o da transformação de uma mulher. Como Fernanda Torres disse no Festival de Londres: “[Ainda Estou Aqui] é uma história muito feminista”, mas o que o torna ainda mais interessante é que o filme faz isso sem cair num feminismo óbvio. A personagem principal é, sem sombra de dúvidas, Eunice Paiva, e o ponto-chave do decorrer da obra é observar como essa mulher, mãe e esposa tenta e é forçada a se reinventar no processo do desaparecimento do marido.
Ao mesmo tempo em que Eunice se vê diante da angústia e do luto de não saber o paradeiro do esposo, ela tenta cuidar da sua própria casa, arranjar meios jurídicos de forçar o governo militar a admitir alguma informação, lidar com questões financeiras e parecer bem para os cinco filhos para poupá-los da agonia e da tragédia.
Ela não consegue ter acesso a certos documentos porque eles estão no nome de Rubens Paiva, ela mente aos filhos sobre o pai estar viajando, ela se força a ter esperanças do retorno dele com as histórias que seus amigos contam, de colegas que foram levados para depor e depois retornaram.
A força e a fragilidade de Eunice complementam-se O sorriso que ela esboça em momentos do longa sempre passam a angústia, a ternura e a confiança de uma mulher determinada a encontrar seu marido, proteger sua família e não deixar sua vida ser destruída.
A memória também é ponto-chave da construção da narrativa, possivelmente o mais importante. O filme por ser a adaptação de um livro que registra esse momento histórico já é um início, e ele ser lançado em 2024, 60 anos depois do Golpe de 64, reforça isso. Ainda Estou Aqui trabalha a todo momento pela preservação da memória.
Ao longo do filme o espectador é bombardeado por fotos da família, vídeos sendo gravados em câmeras Kodak, cartas escritas pelos personagens, tudo para preservar o passado e não esquecê-lo. O momento que mais escancara esse movimento é quando em coletiva de imprensa Eunice Paiva declara: “É uma sensação esquisita, né? Sentir alívio com um atestado de óbito”.
O elenco e diretor do filme antes da sessão deixaram claro que Ainda Estou Aqui foi produzido pensando em sua exibição no Brasil, para além de qualquer outro motivo. A tentativa de relembrar a Ditadura Militar, num período de ascensão da extrema-direita, é muito certeira. O resultado se desdobrou logo após a sessão com gritos de “Ditadura nunca mais!” pelo público.
O filme está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação / 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo