Por Leticia Yamakami (leticiayamakami@usp.br)
Não se sabe ao certo quando o ditado de que “a arte imita a vida e a vida imita a arte” se espalhou pelo imaginário popular. Mesmo assim, o clichê comprova-se verdadeiro no que tange à tendência de famosos filmes brasileiros a exibir a crua realidade de seus cidadãos, transformá-las em narrativas cinematográficas e exibi-las nas telonas.
Nos anos 2000, essa prática se mostrou bastante frequente. Em entrevista ao Cinéfilos, Rubens Rewald, roteirista e professor de dramaturgia na Universidade de São Paulo, informa que, nesse período, criou-se o subgênero “favela-movie”. A categoria engloba produções cinematográficas brasileiras que expunham a realidade das favelas do país a partir de cenas explícitas de violência, montadas em ritmo frenético como nos blockbusters de ação hollywoodianos.
Diversas obras produzidas durante esse meio tempo tiveram como motor principal os desafios enfrentados por indivíduos em situação de vulnerabilidade no Brasil. Bicho de Sete Cabeças (2000), Cidade de Deus (2002), Cidade Baixa (2005), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Jogo de Cena (2007) são somente alguns exemplos que utilizam esse espectro como fio condutor.
O reflexo do contexto sociopolítico na arte
Fora da ficção — que não deixa de ser uma representação da realidade — a década foi marcada por icônicas mudanças no cenário social do país. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, funcionou como um aval para que cineastas brasileiros também direcionassem seus olhares para as populações menos privilegiadas.
Segundo Rubens Rewald, os anos 2000 reacenderam o desejo de colocar as classes menos favorecidas em foco tanto politica quanto artisticamente: “O Brasil elegeu um presidente cujo principal discurso é o da inclusão dos mais pobres em um mundo da classe média e do consumo”. Dessa forma, as reivindicações do povo se mostraram claras em diferentes áreas da sociedade.
As variadas formas de se criticar o sistema
O que não faltam são filmes dessa época que incentivam o espectador a refletir sobre a história que acabaram de assistir. Isso é escancarado em Bicho de Sete Cabeças, que serve de cartilha a favor da luta antimanicomial no Brasil.
Dirigido por Laís Bodanzky e inspirado no livro O Canto dos Malditos (Editora Rocco, 1990) de Austregésilo Carrano, ele aborda a terrível relação entre o jovem Neto e seus pais. Quando todos atingem o seu limite de estresse, a família de Neto o encaminha à força para um hospital psiquiátrico. Lá, ele passa por cruéis formas de tortura, como isolamento e tratamento de choque.
Através da mostra dessa dura realidade, o filme condena o tratamento desumano e criminoso que essas instituições tinham com seus pacientes. Desde dependentes químicos até portadores de doenças mentais, todos eram tratados como sub-humanos e não merecedores de direitos.
Já Estômago (2007) tem Raimundo Nonato, interpretado por João Miguel, como personagem principal. Ele é um homem nordestino que migra para Curitiba somente com a roupa do corpo em busca de melhores condições de vida. A sua carta na manga é o seu talento para cozinhar.
O longa emparelha a rotina de cozinheiro de Nonato em bares de esquina e, posteriormente, o seu cotidiano na prisão dividindo uma pequena cela com outros seis homens. Ao passar do tempo, o público descobre o que o levou a cometer um crime. Essa consequência dos atos da personagem tem a ver com a forma desdenhosa e xenofóbica que foi tratada por seus chefes e por pessoas ao seu redor.
O filme é uma alegoria da pirâmide social e um debate acerca do sistema carcerário brasileiro. Em entrevista ao jornal DW, o seu diretor Marcos Jorge afirma que explorou a temática do poder porque é uma das mais fascinantes nas relações humanas. “Aparentemente, Estômago é um filme sobre a história de um cozinheiro, mas, na verdade, é um filme sobre como se obtém poder através da comida. Pois a comida pode ser uma metáfora de diversas outras coisas”.
Diferente dos outros dois filmes anteriores, Cidade Baixa não possui uma crítica social tão aparente. Todavia, ele coloca nos holofotes o cotidiano pulsante de personagens desfavorecidos de dinheiro, que representam a maioria dos cidadãos do país.
Os golpistas Naldinho e Deco conhecem a prostituta Karinna e ambos desenvolvem uma paixão fervorosa por ela. A narrativa acompanha o trio, residente da periferia de Salvador, e suas aventuras. Sobretudo, há a exibição das formas com que eles precisam “se virar” para sobreviver, seja enganar o seu consumidor ou oferecer sexo em troca de um pagamento.
Para o professor Rubens, essa produção pode ser a exploração da consciência de culpa que cineastas mais privilegiados têm ao olharem para os mais pobres. “Geralmente, esses filmes são realizados por pessoas que não pertencem às classes sociais que retratam. Cidade Baixa é feito por Sérgio Machado, um cara da elite baiana”.
Os resquícios do passado no presente
“Um filme de época acaba sempre falando sobre sua própria realidade. Você usa outra época para falar da época atual.”
Rubens Rewald
Algumas obras que seguem esse movimento se passam em anos mais distantes de quando foram produzidas. O Auto da Compadecida (2000) é o exemplo mais conhecido. Embora se situe na década de 1930, retrata protagonistas universais e atemporais: dois pobres comerciantes, João Grilo e Chicó, que vivem no sertão nordestino aplicando pequenos golpes em seus clientes. Assim, o fato do filme ter sido recebido com grande aclamação no seu ano de lançamento indica que esse tipo de temática nunca deixou de existir e agradar os brasileiros.
Cinema, Aspirinas e Urubus é outro que não fala sobre sua própria época. A história se passa em 1942, quando Johann, um homem alemão fugido da guerra, encontra Rudolph, um sertanejo fugindo das péssimas condições de vida em que se encontrava. Juntos, eles exploram a aridez do interior do Nordeste vendendo aspirinas e compartilhando sua paixão por filmes.
Rewald analisa que o filme é resultado da descoberta da região, conjuntura em que se tem um boom de produções nordestinas. Além disso, aborda a transição do fim dos filmes em película para as filmagens digitais. “[Nos anos 2000] se tinha uma nostalgia por aquele tipo de projeção”, afirma Rubens.
Borrando as barreiras entre a verdade e a ficção
O ato de documentar também fez-se presente naquele momento. Jogo de Cena, dirigido por Eduardo Coutinho, mistura mulheres contando seus relatos reais e atrizes os reencenando. Ao narrarem sobre casamento, maternidade, morte e discriminações, elas dão uma dimensão do que é ser mulher no Brasil.
Há, ainda, a interseccionalidade. Quando as entrevistadas são pretas e/ou lésbicas, suas histórias também englobam ainda mais a falta de oportunidades que têm no dia a dia. Uma delas, Jaqueline Ferreira Gonçalves, conhecida como Jackie Brown, relembra em sua fala: “Eu tinha o sonho de ser Paquita do Show da Xuxa. Mas que ilusão! Não tinha pele clara, não era loira e nem cabelo bom”.
O cinema brasileiro vinte anos depois
Quando questionado sobre as diferenças que vê em relação às obras dos anos 2000 e às contemporâneas, Rubens acredita que hoje se tem uma diversidade maior em todos os sentidos. Agora, não são só as personagens retratadas que vêm de condições menos privilegiadas, mas os indivíduos por detrás das câmeras também.
Além de se produzir mais, há a possibilidade de se fazer filmes em quase todos os estados do país — o que não existia anteriormente — e tem-se mais cineastas não-brancos e de classes populares em ativa.
Mesmo assim, a indústria cinematográfica no Brasil nunca deixou de representar a realidade do seu povo e provavelmente nunca deixará. “Os grandes temas ainda permanecem; as grandes mazelas do país: a luta de classes, a violência e a situação precária que muita gente vive. Eu acho que são temas que sempre acabam voltando”, finaliza o professor.