Há 20 atrás era lançado O Auto da Compadecida (2000), um filme adaptado da peça teatral homônima de Ariano Suassuna. Dirigido por Guel Arraes, o longa-metragem foi sucesso de crítica e de bilheteria, atingindo um público de mais de duas milhões de pessoas nos cinemas. Mas o que pouca gente sabe é que a história, ou melhor, as histórias que inspiraram essa comédia datam de muitos anos antes e podem ser rastreadas para países de outro continente.
Influenciado sobretudo pelos folhetos de cordel, Ariano Suassuna juntou histórias e personagens do conto popular para chegar na obra-prima Auto da Compadecida, lançada em 1955 como uma peça de três atos. Para a adaptação cinematográfica viriam a ser incorporadas ainda mais histórias nessa combinação.
O Auto da Compadecida (2000)
Última e mais bem sucedida adaptação da obra de Ariano para os cinemas, esse filme foi um marco para as comédias brasileiras. Além do próprio Auto da Compadecida, para a composição desse longa foram adicionadas outras obras de Suassuna ao roteiro.
Da peça A Pena e a Lei saíram os personagens Vicentão (Bruno Garcia), Rosinha (Virginia Cavendish) e Cabo Setenta (Aramis Trindade), bem como suas respectivas histórias. Esse espetáculo deveria começar sendo interpretado como se fosse um mamulengo — teatro de fantoches típico do Nordeste —, que é também de onde vêm os próprios personagens das histórias.
No decorrer da trama, o personagem Benedito arruma briga com o valentão da cidade, Vicentão, e com o delegado, Cabo Setenta, para conquistar o coração de Rosinha. Na adaptação para o filme, João Grilo (Matheus Nachtergaele) é quem arranja a confusão com os dois, mas quem pretende namorar com a moça é Chicó (Selton Mello).
A história foi em grande parte alterada para caber na adaptação, porém a essência dela permaneceu, mesmo que em personagens diferentes. Inclusive algumas das falas foram mantidas sem alteração, isso é possível perceber na conversa entre João Grilo e Cabo Setenta na delegacia, em que o “amarelo” termina as frases com “é ou num é?”, fala marcante de Benedito.
A outra peça usada para agregar no filme foi O santo e a Porca, que conta a história de um homem obcecado por uma porquinha na qual ele guardou seu dinheiro por anos e faz de tudo para protegê-la. Mas, ao fim, descobre-se que aquele dinheiro já havia sido recolhido e não valia mais nada.
Segundo o autor, essa história retrataria a “traição que a vida, de forma ou de outra, termina fazendo a todos nós”.
Na opinião de Marco Haurélio — pesquisador, poeta cordelista e autor do livro Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo (Editora Luzeiro, 2016) — as outras adaptações do filme foram “superficiais”, mas essa última lhe agradou bastante. Ele dá créditos ao diretor por isso: “o Guel foi o mestre, o artesão que conseguiu essa liga”.
Curioso notar que, na verdade, a relação entre Suassuna e Guel Arraes começou muitos anos antes da produção do filme. Os dois se conheciam desde que o diretor era criança, pois sua família morava de frente para a casa de Ariano em Recife. No programa Conversa com Bial, ele conta um pouco dessa relação e afirma que frequentava a casa do escritor, com quem conversava bastante.
Suassuna chegou, inclusive, a ser Secretário da Cultura de Pernambuco do governador Miguel Arraes, pai do diretor. Assim, toda vivência ao longo dos anos junto do dramaturgo permitiram que Guel conhecesse bem suas peculiaridades e entendesse seu pensamento, o que com certeza facilitou na hora de adaptar e produzir o filme.
Apesar de terem sido retirados vários elementos do texto original, até alguns personagens — como o vigário e o Encourado, uma incorporação do Diabo na forma de vaqueiro —, o resultado final agradou ao próprio Suassuna e fez jus às produções e ao pensamento do escritor.
O longa-metragem teve grande sucesso no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e ganhou nas categorias de melhor diretor, ator, roteiro e lançamento.
É uma comédia que faz todos rirem, mas que, ao mesmo tempo, exerce uma função crítica e busca representar alguns elementos da cultura popular nordestina, da qual Ariano era ferrenho defensor.
O conto popular e o cordel
Nascido em João Pessoa, Ariano Suassuna cresceu em Taperoá, no sertão paraibano, onde tem contato direto com o teatro, conto e a cultura popular do Nordeste. É a partir dessa vivência que o autor irá escrever a maior parte de suas obras.
O Auto da Compadecida foi escrito baseado em três folhetos da literatura de cordel. Para o pesquisador e poeta cordelista Marco Haurélio, “ele conseguiu fazer uma síntese perfeita, que de tão boa você não consegue ver que são textos que, a princípio, não dialogam”.
O primeiro ato começa a partir da história de Leandro Gomes de Barros, O Dinheiro ou O Testamento do Cachorro.
“Porque o dinheiro na terra
É capa que tudo encobre
Cubra um cachorro com ouro
Que ele tem que ficar nobre
É superior ao dono
Se acaso o dono for pobre
Eu já vi narrar um fato
Que fiquei admirado
Um sertanejo me disse
Que nesse século passado
Viu enterrar um cachorro
Com honras de potentado
Um inglês tinha um cachorro
De grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
— Mim enterra esse cachorro
Inda que gaste um milhão
(…)
Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês findar
O vigário suspirou
— Coitado! — disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento mais nobre!
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre”
-Trecho de O Dinheiro ou O Testamento do Cachorro
Na peça de Suassuna, João Grilo, um dos protagonistas, é quem convence o vigário, o padre e o bispo a aceitarem enterrar o cachorro da mulher do padeiro. A princípio, recusam-se afirmando ser contra o Código Canônico, mas ao saberem do testamento prontamente mudam de ideia. Nessa parte, Ariano inclusive manteve as falas dos três quando afirmam: “Que animal inteligente! Que sentimento mais nobre!”.
Vale notar também que, apesar de criticar esses representantes da Igreja, o autor não pretende criticar a religião ou suas instituições. Ariano afirma que se fosse contra a Igreja ele nem teria escrito sobre esses personagens, mas o fez porque defende os bons padres e bispos.
No texto original, a peça é apresentada por um palhaço, influência do teatro popular, que é quem introduz o espetáculo e conversa com o público. Em uma de suas falas, o palhaço diz o seguinte:
“Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua Igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimidades”.
O segundo ato da peça é baseado no cordel História do Cavalo que Defecava Dinheiro, também de Leandro Gomes de Barros, a qual se transforma no gato que “descome dinheiro”. Veja um trecho deste folheto:
“Se vendo o compadre pobre
Naquela vida privada
Foi trabalhar nuns engenhos
Longe de sua morada
Na volta trouxe um cavalo
Que não servida pra nada
Disse o pobre à mulher:
— Como havemos de passar?
O cavalo é magro e velho
Não pode mais trabalhar
Vamos inventar um quengo
Pra ver se o querem comprar
Foi na venda e de lá trouxe
Três moedas de cruzado
Sem dizer nada a ninguém
Para não ser censurado
No fiofó do cavalo
Foi o dinheiro guardado
Do fiofó do cavalo
Ele fez um mealheiro
Saiu dizendo: — Sou rico
Inda mais que um fazendeiro
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro”
-Trecho de História do Cavalo que Defecava Dinheiro
Após a morte do cachorro de seus patrões, João Grilo (Matheus Nachtergaele) decide então vender um gato, afirmando que ele “descome” dinheiro, isto é, come ao contrário. A mulher do padeiro, no filme nomeada de Dora, cai na invenção de João, e compra o bicho.
Ainda baseado nessa história, pensando em um caso futuro de necessidade, João Grilo enche uma bexiga de sangue, tal qual no cordel, para fingir morrer e dá para Chicó (Selton Mello). Na peça de Ariano, a história toma um rumo diferente, mas sempre se inspira no conto popular.
E, para terminar o auto, Suassuna se baseou no cordel O Castigo da Soberba, do cantador Silvino Pirauá de Lima, que traz a história de uma alma sendo julgada no tribunal celestial. A alma então pede salvação a Maria, a Compadecida, que atende a seu pedido e a salva do Diabo.
Segue abaixo uma parte desse folheto, em que consta inclusive a reza que João Grilo faz para Maria:
“Vamos todos nós embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro…
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.
(…)
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer:
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé…
Já fui barco, fui navio
E hoje sou escaler…
Já fui linha de meada,
Hoje sou de carreté…
Já fui menino, sou homem,
Só me falta ser mulher…
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!”
-Trecho de O Castigo da Soberba
Na peça e no filme, Maria pede pela salvação de João Grilo a Manuel, Jesus, que não nega a súplica de sua mãe.
Todas essas histórias — e a própria Literatura de Cordel, que vem da tradição dos romanceiros renascentistas e dos trovadores — podem ser rastreadas para suas origens de outras terras. Como Ariano mesmo disse sobre a história do Testamento do Cachorro, “é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.
João Grilo e Chicó
A história inteira gira em torno das figuras de Chicó e João Grilo. A origem por trás desses dois personagens é bastante diferente, mas na narrativa de Ariano eles se encontram. Como conta Marco Haurélio, autor do livro Presepadas de Chicó e astúcias de João Grilo, “você tem o sabichão [João Grilo] e o mentiroso por excelência [Chicó]. Aí que tá a maior riqueza, eu acho que eles dois se completam. O equilíbrio está aí”.
O surgimento de João Grilo pode ser rastreado para os contos populares de Portugal, onde ele ganha suas características que serão trazidas para as terras do Nordeste. Segundo o pesquisador Marco Haurélio, o personagem imortalizado no Auto da Compadecida é assemelhado a outro protagonista das histórias da Península Ibérica, chamado Pedro Malazarte. Ele ainda relata que o primeiro registro surge com Consiglieri Pedroso, no livro Contos populares portugueses, em 1910.
Mais antigo ainda, Marco conta também sobre a presença de um personagem chamado de Maestro Grillo, na obra Pentamerone, de Giambattista Basile, escrito entre 1634 e 1636. Para o pesquisador, essa é talvez a aparição mais antiga do personagem.
É somente em 1932 que o João Grilo irá aparecer nos folhetos de cordel do Nordeste, em Palhaçadas de João Grilo, escrito por João Ferreira de Lima:
“João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.
(…)
João perdeu o seu pai
com sete anos de idade
morava perto de um rio
Ia pescar toda tarde
um dia fez uma cena
que admirou a cidade.
O rio estava de nado
vinha um vaqueiro de fora
perguntou: dará passagem?
João Grilo disse: inda agora
o gadinho do meu pai
passou com o lombo de fora.
O vaqueiro bota o cavalo
com uma braça deu nado
foi sair já muito embaixo
quase que morre afogado
voltou e disse ao menino:
você é um desgraçado.
João Grilo foi ver o gado
pra provar aquele ato
veio trazendo na frente
um bom rebanho de pato
os pássaros passaram n’água
João provou que era exato.”
-Trecho de Palhaçadas de João Grilo
Desde suas origens europeias, o personagem João Grilo é marcado pela sua esperteza e astúcia, “ele é o falso adivinhão, é o sujeito que prega peças e pela sorte acaba se dando bem”, conta Marco Haurélio.
Já Chicó tem uma história bastante distinta, pois foi uma pessoa real que o próprio Ariano Suassuna conheceu. Em entrevista para o Programa do Jô Soares, ele conta sobre o personagem: “O Chicó do Auto da Compadecida existiu, morava em Taperoá, minha terra no Sertão da Paraíba, e se chamava Chicó, era o nome dele mesmo”.
Segundo o autor, Chicó era um contador de histórias, desses que toda cidade do Sertão tem. Para Ariano, as mentiras que ele contava eram inofensivas e afirma que simpatiza com os mentirosos, mas faz uma ressalva: “Eu não gosto do mentiroso que mente para prejudicar os outros, eu gosto do mentiroso que mente pelo amor à arte”. É o “direito do sonho e da fantasia sobre a realidade”, afirma o autor do Auto da Compadecida.
Durante a peça inteira, assim como no filme, acompanhamos esses dois personagens carismáticos se envolvendo em enrascadas e dando seus jeitos de sobreviver. A dupla, com todas suas mentiras e artimanhas, conquista o público, que fica sempre à espera da próxima proeza.
O cordelista Marco Haurélio vê uma ligação entre Chicó e João Grilo e outros duos do imaginário popular, como Mateus e Bastião, personagens do Bumba Meu Boi, e também com Dom Quixote e Sancho Pança, da obra de Miguel de Cervantes, o qual Ariano era grande admirador.
Em sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, Suassuna foi questionado sobre o que ele teria de João Grilo, ao que o paraibano respondeu que “todos os personagens tem um parentesco com o autor”. Ariano ainda continua e afirma que, na verdade, gostaria de ser mais como João Grilo, mas que é “mais um mentiroso fantasista como Chicó”.
Outras adaptações
Apesar de o filme de 2000 ser a versão mais conhecida, o Auto da Compadecida teve outras duas adaptações anteriores.
A Compadecida (1969), dirigido por George Jonas, foi a primeira vez que a peça foi adaptada para as telas de cinema. Nesse filme foram mantidas várias das características originais do espetáculo, sendo retratado como uma peça de teatro mesmo. Até o palhaço que apresenta os atos foi preservado, o qual termina o filme, junto com todos os atores, em cima do palco pedindo os aplausos finais: “E, se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso”.
Além do caráter de teatro buscado no filme, em várias cenas são retratadas manifestações típicas da cultura popular, como o Bumba Meu Boi, o violeiro, e outros folguedos, que vão se apresentando nas ruas da cidade de Taperoá enquanto os personagens desenvolvem a trama.
Diferente da versão de Guel Arraes, o julgamento acontece no próprio sertão, em meio a pedras e à paisagem árida da região.
Já a segunda adaptação com o nome de Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987) foi feita sob direção de Roberto Farias. O filme contou com os quatro trapalhões, com Renato Aragão no papel de João Grilo, Dedé Santana como Chicó, Mussum como Manuel, Jesus Cristo, e Zacarias como o Padeiro. Sucesso de público, o longa alcançou mais de dois milhões e meio de espectadores, sendo lançado até em Portugal.
Nessa produção também foram mantidas algumas características do teatro, mas com menor intensidade. O início e o fim são marcados pela presença do palhaço, que, assim como na adaptação de 1969, pede os aplausos da plateia. É ele inclusive quem anuncia o começo da história, acompanhado de um espetáculo de rua.