Por Carolina Unzelte (carol.unzelte@gmail.com)
Victor Hugo escreveu que “amar outra pessoa é ver a face de Deus”, no clássico “Os miseráveis”. O amor, da mesma forma que a figura divina, desperta sentimentos ambíguos e, muitas vezes, conflitantes. Tal qual como acontece com Deus, podemos depositar fé (ou não) no amor. Ele é temido e querido, como o onipotente é; ambos são tangíveis porque estão em nós, mas misteriosos porque não sabemos defini-los ao certo. Os dois se unem por também terem explicações científicas, mas possuírem lados impossíveis de compreender completamente. Assim, solucionar “o que é amor?” se torna muito mais complexo do que o beijo entre o casal principal ao final do filme deixa transparecer.
Quando repito a pergunta para Patrícia Brandão, namorada de Caio há dois anos, há uma pausa. “Isso é difícil”, hesita. Depois, diz que amor é companheirismo, segurança e amizade. Ela conheceu Caio aos dezesseis anos, quando saiu de um relacionamento à distância. “Namorei pela internet por 16 meses com um menino do Rio de Janeiro. Eu era muito fiel”, explica. E ainda tinha um melhor amigo do Espírito Santo na equação, com quem Patrícia ficou cinco dias depois do fim do namoro com o carioca. Sentiu-se realizada. “Foi uma libertação”, afirma. O rapaz, no entanto, parou de falar com a amiga com quem “lia Baudelaire juntos” e só respondeu as mensagens dela dois anos depois “com uma desculpa ridícula”.
Esse era o contexto da vida de Patrícia em agosto de 2013, quando foi a um karaokê no bairro paulistano da Liberdade com um grupo de amigos (que também tinha feito pela internet). Caio estava lá. “Nós saímos e ele me olhava muito, mas não dizia nada”, conta. Como muitos dos romances modernos, o contato se estreitou por vias virtuais: “Ele me adicionou em todas as redes sociais e começou a falar comigo”. No feriado de 7 de setembro, eles saíram, num encontro que Patrícia define como “produtivo” — apesar de não terem ficado. Ao contrário das tendências de um mundo onde “ficar com alguém” é algo facilmente atingido após duas ou três frases e umas olhadelas para ver se o pretendente é bonito, para Patrícia, “a vontade de ficar vem depois de conhecer muito”.
Apesar de gostar do garoto, Patrícia parou de falar com ele. “Achei ele meio possessivo e estava me assustando um pouco. Eu não sabia como lidar com isso”, justifica. O medo de comprometimento não é exclusividade dela: faz parte do “amor líquido” que caracteriza as relações contemporâneas, segundo Zygmunt Bauman. Para o filósofo polonês, os vínculos humanos não são construídos de maneira sólida para que seja possível se desfazer deles caso outra oportunidade de romance apareça: “Se você deseja ‘relacionar-se’, mantenha distância; se quer usufruir do convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas”, afirma. E não há nada de errado nisso — é apenas como as “relações são feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna”.
Especialista em relacionamentos contemporâneos, diz a psicóloga Lígia Baruch: “Hoje, homens e mulheres priorizam mais as sensações do que os sentimentos, a satisfação do que a duração”. No entanto, ela não concorda com a visão de Bauman sobre o assunto e acredita que os ganhos superam as perdas nessas novas formas de se relacionar. “Não acredito na finitude do amor, nem que os amores de outrora eram melhores do que os de hoje”, afirma. “Hoje as pessoas estão com mais medo de se entregar à uma relação, mas também conseguem sair de relacionamentos ruins com mais facilidade. Não sou nostálgica como Bauman.”
O afastamento de Patrícia, contudo, durou pouco: em dezembro do mesmo ano, eles eram oficialmente namorados. “A gente se jogou pra valer, cada um do seu jeito”, conta. E foi assim, com cada um levando a seu modo, que o relacionamento floresceu. “Temos maneiras diferentes de gostar, mas o jeito como as pessoas encaram o amor não é uma coisa extremamente determinante para eu gostar delas”, explica. Durante esses dois anos, apesar de haverem momentos em que Patrícia achou “que os esforços eram demais”, o casal se mantém sólido em uma realidade líquida. “Nunca terminamos. A gente nunca brigou de verdade”, aponta.
O mesmo não aconteceu com João, que namorou Ana por “dois anos e dez ou onze meses”. Quando faço a mesma indagação que propus para Patrícia, “o que é amor?”, ele suspira e me responde que “é a força que move o Universo”. A história deles era típica dos romances que nascem entre as carteiras da escola: se conheceram aos doze anos (“quando ela entrou na minha sala e era feia para caramba”, como diz João) e começaram a namorar aos quinze, depois de se tornarem “cada vez mais próximos”. Depois de três meses ficando, João pediu Ana em namoro em uma viagem da escola: “Foi bem legal, tem até vídeo no YouTube. Altas visualizações. Foi fofo”, conta. Mais uma vez, o mundo virtual marca presença no decorrer dos amores.
Além de afeto, essa relação despertou uma série de sentimentos em João. “Tive medo de sentir amor. Sempre dá medo da pessoa não corresponder.” Esse comportamento é explicado por Bauman. “O amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento”, diz. A ideia de eternidade também provocou receio: “Pra sempre é muito tempo, eu sabia que não queria pra sempre assim que entrei no relacionamento”, explica João. “Mesmo que gostasse muito dela, ela era minha primeira namorada. Eu queria outras experiências.” Sobre esse desejo de João, a Dra. Lígia pontua que a experimentação amorosa é algo positivo, capaz de conduzir à maior vivência e enriquecimento pessoal: “A liberdade é uma conquista importante”.
As pessoas mudam e é implícito que seus modos de se ligar com os outros também. “No início do relacionamento, tudo é novo e você tem um ânimo gigante. A paixão é algo muito forte”, lembra João. “Vai desgastando com o tempo, é a rotina. Você vai se acomodando. É inevitável”. As coisas, no entanto, são diferentes para Patrícia, que afirma que o fim da euforia inicial não é algo negativo. “Essa sensação de estabilidade, segurança e compartilhamento de estar com a outra pessoa surge também e isso é tão legal quanto estar loucamente apaixonado”, diz.
Ao contrário dela, que sempre gostou da harmonia de se relacionar com pessoas semelhantes (“Eu e o Caio somos bem parecidos em vários pontos. E outras pessoas de quem eu já gostei, aquilo que eu gostava nelas, eu também tinha”), o ditado “os opostos se atraem” valeu para João e Ana. “Éramos realmente muito diferentes e isso não impedia que eu gostasse muito dela”, afirma. Apesar disso, a falta de tempo nas novas rotinas deu um fim ao casal. “Eu comecei a fazer cursinho e ela fazia um curso de artes”, conta João. “A gente se via pouco, e, quando se via, era meio ruim. Foi morrendo”.
Bauman aponta que os términos das relações são ocasionados, muitas vezes, pela simples falta de interesse em prosseguir, por causa do trabalho que envolve manter um relacionamento. “Constrói-se a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço”, diz. Assim, quando é necessário certo sacrifício para manter uma relação, ela se torna indesejável — e é descartada.
Além disso, também acredita que as relações se prolongam pelo tempo em que nenhum dos parceiros vê outras possibilidades de amor mais favoráveis no horizonte. Nesse sentido, os novos meios de comunicação, como a internet, abrem um leque quase que ilimitado de opções amorosas, com a conveniência de estarem todas a um like (ou seja, sem grande esforço) e a um delete da lista de contatos, já que se trata de uma relação líquida. O que, também, tem seus reveses. “Temos hoje muito mais opções de escolhas — e, quanto mais opções, mais dúvidas”, pontua a psicóloga Lígia Baruch.
Tenham acabado ou não, as conexões com as pessoas através do amor romântico deixam marcas, sejam elas um coração partido ou planos para o futuro. “Eu acho que quando você está com alguém, aprende muito sobre as pessoas, como elas são seres humanos complexos”, acredita Patrícia. João também cita o aprendizado com um fruto do relacionamento com Ana, que “mudou completamente sua cabeça”. “Pela interação constante com alguém, você compreende muito não só sobre a outra pessoa, mas sobre amor, sexo, amizade e forma ideias novas”.
Enquanto Patrícia afirma, com a voz convicta, que quer “ficar com o Caio pra sempre”, o vínculo de João e Ana nasceu com um prazo de validade. “O nosso futuro estava bem definido porque ela ia fazer faculdade em Londres”, fala rápido, quase não entendo as palavras. “Eu odeio relacionamento à distância, então disse que, se ela viajasse, nós íamos terminar.” E quando a conversa se encaminha para casamento e a noção de “juntos até que a morte os separe”, parece que Patrícia e João chegariam a um consenso, já que ambos se referem ao matrimônio como uma “convenção”. Mas as semelhanças terminam aí: ela diz que “estar com alguém é muito prazeroso, e às vezes eu penso que é um pouco angustiante eu não dividir esses momentos e sensações com ninguém além do Caio”, para logo completar que, apesar disso, quer “muito estar com ele pra sempre”. Já João afirma categoricamente que “as pessoas não foram feitas para ficar juntas pra sempre”.
Apesar de não estarem mais tão intrinsecamente ligados quanto em outras épocas, amor e sexo ainda têm suas intersecções. “Dá para eles existirem separados, mas quando estão juntos é melhor pra todo mundo”: essa concepção de João parece sintetizar bem a dinâmica entre os dois nos dias atuais. Patrícia opina que há casais que encaram sexo de modo bastante problemático e impulsivo, “como se não transar estivesse fora de cogitação”. Ambos convergem também na importância de uma vida sexual agradável dentro das relações românticas. “A gente curte muito e faz quando tá a fim”, diz Patrícia. “E quando estamos a fim, é a fim mesmo e fazemos muito bem”. João classifica sexo como “fundamental” e sempre ressaltou isso para a ex-namorada, afirmando que as bases para um relacionamento são “amizade, amor e sexo”.
Para Patrícia, desejo por outra pessoa que não seu objeto de amor é algo totalmente normal, já que “nós temos uma natureza”, apesar de, particularmente, não o sentir por ninguém além de Caio. “Mas isso é super possível, razoável e efêmero e não acho que destrói nenhum relacionamento”, explica. João, por sua vez, não vê a atração por terceiros com tanta naturalidade. “Você está num relacionamento e tem que controlar isso, porque é um instinto” acredita. “Sexo é momentâneo, amor não”. Para a Dra. Lígia Baruch, essa independência entre amor e sexo é positiva. “Nos relacionamentos contemporâneos, amor e sexo podem estar relacionados ou não. O que traz uma mudança importante, principalmente para as mulheres, mesmo que as mesmas não percebam essa mudança e maior liberdade como ganho”, diz.
O amor está, de uma forma ou outra, em todas essas histórias. Entre tantas (in)definições sobre essa emoção e todas as questões que a cercam, há, pelo menos, algumas certezas: por mais que seja um sentimento íntimo, o amor romântico é uma construção social que perpassa diversos fatores e é enraizada no imaginário coletivo. Como afirma a psicanalista Regina Navarro Lins, em “O livro do amor”, “a forma como amamos e praticamos sexo é construída socialmente. Crenças, valores, expectativas determinam a conduta íntima de homens e mulheres”. Assim, a forma como nos relacionamos diz não só sobre nossas preferências em relação a parceiros, mas características da sociedade da qual fazemos parte.
E viveram felizes para sempre
“Eu pedia desculpas mentalmente para Edward Cullen por gostar do menino do meu colégio”, diz Patrícia, entre risadas. Lembro da parede do meu quarto um dia estampada com a cara do vampiro e não posso deixar de rir com ela. Atrás desse infantil amor de fã, que eu, Patrícia e uma geração de meninas compartilhamos, há um arquétipo que aprendemos a perseguir até a vida adulta. “Eu queria alguém que me amasse tanto quanto o Edward ama a Bella”, continua ela. É esse amor montado para as câmeras que nosso subconsciente absorve como objetivo de vida.
Seja com a série “Crepúsculo”, com o novo hit da Taylor Swift ou com o clássico Mr. Darcy, a cultura que consumimos diariamente ajuda a construir o modelo social ideal de amor e compará-lo com os amores reais que vivemos. A namorada de João fazia isso, afinal, não é difícil se livrar da ideia do príncipe encantado com um cavalo branco, incutida em nós desde a primeira infância com os contos de fada. “Ela ficava idealizando, comparando. Me falava ‘por que você não é assim?’. E eu ‘porque eu não sou. Só’”, diz ele.
O amor, sendo encarado como o objeto que traz a completude, é utilizado pela indústria cultural para vender ideias e produtos. O encontro com a “alma gêmea” é a única coisa que pode trazer a real felicidade. Esse conceito é tão enraizado nas produções culturais que se repete de “…E o vento levou”, de 1939, até o recente “Como eu era antes de você”. “Isso gera muita ansiedade e expectativas irreais. Atendo pessoas que encontraram ótimas parcerias amorosas mas ainda ficam sonhando em encontrar ‘aquela paixão avassaladora’”, conta a Dra. Lígia. Além disso, a ideia de que o amor verdadeiro vence todos os obstáculos está presente nesses modelos de dramas românticos — ou seja, passam a ideia de que, se sua relação não sobreviveu aos momentos difíceis, ela não era feita de amor realmente.
Assim, é impossível adequar nossas expectativas moldadas por esses preceitos à vida de amores (e pessoas) reais. “Esse tipo de amor é calcado na idealização do outro e prega a fusão total entre os amantes”, diz Regina em “O livro do amor”. E completa, adicionando a ideia de monogamia a esse conceito: “Tem a ideia de que os amados se completam, nada mais lhes faltando; que cada um terá todas as suas necessidades satisfeitas pelo amado, que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo, que quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém”.
As fantasias provocam uma busca incessante e o sentimento de inadequação quando essa procura mostra-se em vão. O amor passa a ser associado ao sofrimento. “Quando não realizamos o ideal imaginário do amor, buscamos explicar a impossibilidade culpando a nós mesmos, aos outros ou ao mundo, mas nunca contestando as regras comportamentais, sentimentais ou cognitivas que interiorizamos quando aprendemos a amar”, explica Maria Thereza Toledo, psicanalista, em seu artigo “Uma discussão sobre o ideal de amor romântico na contemporaneidade”. Enquanto não encontramos a cara metade tão cultuada e prometida, procuramos subterfúgios em relacionamentos fugazes, muitas vezes baseados apenas em sexo, para suprir esse sentimento de solidão. E, se por um acaso, o happy end não chega, há a impressão de que nunca seremos completos.
Uma história de amor
Sendo um produto também social, o amor caminhou e se transformou com a história da humanidade. No contexto iluminista, foi rechaçado, como todos os outros sentimentos, em detrimento da razão e do intelecto. Era esperado que sexo e amor andassem separados, e amar era indesejado numa época de casamentos por interesse. Essa mentalidade se traduz bem no comentário de madame d’Esparbès ao terminar com seu amante, um conde: “Ser romântica não dá certo; torna a pessoa ridícula e nada mais”.
Grande parte da cultura ocidental contemporânea teve, fundamentalmente, a Revolução Francesa como mãe, e isso não é muito diferente com a concepção de amor. O casamento pós revolução (cada vez mais reivindicado como uma consequência do afeto mútuo) é um contrato não mais religioso, mas civil; o divórcio agora é uma possibilidade. Apesar dos avanços, ainda é esperado que a mulher tenha um papel passivo na conquista e não seja um ser sexual.
A reação à frieza iluminista é o sentimentalismo romântico: o próprio inaugurador do movimento literário, “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, é um exemplo do viver e morrer por amor da época. Apesar da mundança da visão sobre o sentimento, as regras do flerte ainda eram engessadas, como diz Regina Navarro Lins: “Na maior parte da Europa, a interação dos sexos via-se rigorosamente regulamentada, sendo excluída a espontaneidade”.
“Antes da modernidade, o amor não fazia parte dos casamentos burgueses”, diz a Dra. Lígia Baruch. “A aliança matrimonial era um contrato entre famílias visando o bem das mesmas, o sexo só era tolerado, mesmo dentro do casamento, para fins de procriação.” É no começo da Idade Moderna que se começa a esboçar conceitos, até hoje atuais, sobre o assunto, pelas mãos de Rousseau. Dentro das suas idéias, a família era a única coisa que evitava que o individualismo desmantelasse a sociedade. Assim, para constituir esse elo tão importante, era necessário que houvesse uma aliança entre amor e sexo. Segundo o filósofo francês, apenas a combinação das experiências amorosas e sexuais garantiria a felicidade plena — e a manutenção da unidade familiar.
Depois, Freud reduziu o amor à sublimação dos desejos sexuais, sob um olhar que pretendia ser científico. O correr do século passado mostrou-nos novas maneiras de amar: mais liberais, espontâneas e independentes. Os métodos contraceptivos, o fim de casamentos combinados pelos pais e a maior liberdade para os jovens prepararam o terreno para os relacionamentos nos anos 2000. Ter uma crush, flertar, dar match, ficar, beijar, transar, namorar, morar junto, casar: termos comuns para os millenials e que, em maior ou menor grau, têm a ver com essa coisa que é o amor.
*Todos os nomes das personagens desta reportagem são fictícios.