O som capta as falas, alguns burburinhos externos e insere a trilha sonora. A câmera filma a cenografia, os atores e seus figurinos. Juntando elementos audíveis e visíveis, o cinema acontece. Simples assim? É o que parece ser, afinal, é isso que é mostrado pelos holofotes. Quando a obra é apresentada para o espectador, o foco não é a imensa maquinaria do audiovisual. Muito menos as condições de trabalho dos funcionários que labutam exaustivamente para que essa obra se projete nas telas.
São, no mínimo, 12 horas de trabalho. Essa jornada, já com quatro horas a mais do que a prevista pela Constituição Brasileira, em muitos casos não é nem respeitada pela produção e chega a ultrapassar 20 horas. “Produtora me liga para fazer som direto num job ‘documental’ […] Diária foi das 3 da manhã às 23. Chamada do dia seguinte: 3 da manhã novamente. Peço um assistente para a próxima diária. Resposta: se quiser assistente, você que pague”, esse é um dos relatos de técnicos do audiovisual para a página do Instagram BrCrewStories, que utiliza a rede social como espaço de denúncia anônima à violência trabalhista que ocorre no setor.
Um cenário insustentável
O crescimento acelerado das produções audiovisuais para os Streamings no período da pandemia do Covid-19, ao tensionar os sets de filmagem com jornadas exaustivas que sobrecarregam os trabalhadores, motivou a criação da página. Os idealizadores explicam que o prazo e o orçamento são pequenos demais para o tamanho do trabalho requerido pelas produtoras, o que força os técnicos a ampliarem suas cargas horárias. “Em 2022, só a Netflix vai investir em mais de 40 projetos aqui [Brasil]. Se não existe uma pré-produção bem feita e planejada, a equipe que está nessa preparação fica sobrecarregada e trabalha mais do que as 12 horas previstas, porque existe uma demanda de entrega do canal e da produtora. Durante as filmagens os técnicos são afetados porque se filmam muitas páginas de roteiro em um mesmo dia para enxugar o número total de diárias, então é comum que as 12 horas de filmagens não sejam suficientes”, explicam.
Eles também comentam que a pós produção é igualmente desgastante. Devido à demanda elevada, o tempo máximo de trabalho não é respeitado e novamente os técnicos enfrentam o excesso de deveres. Estrutura-se uma conjuntura insustentável, em que até os horários livres dos trabalhadores são voltados ao trabalho: “Muitos departamentos precisam usar o tempo da sua folga para negociar com produção, ou ler o roteiro do episódio novo que chegou, produzir algo urgente de rua para a próxima diária. Ou seja, imagina o técnico que sai de uma série traumatizante, vai para outra, na terceira o sujeito está doente e isso não é exagero”.
E não são apenas os técnicos do audiovisual que trabalham para a concretização da obra. Há outros trabalhadores da base que também são essenciais para o funcionamento da indústria cinematográfica, como os faxineiros, seguranças e motoristas. Com a recente onda de terceirização do trabalho, esses funcionários são ainda mais explorados. Os administradores da BrCrewStories relatam que essas funções são as mais prejudicadas porque “muitas vezes são as primeiras a chegar, as últimas a irem embora e não existe nenhum tipo de respaldo para a garantia desses direitos”.
Lutar é necessário, articular a luta é mais ainda
Além do contexto pandêmico, o corte de verbas para a cultura, promovido durante o Governo Bolsonaro, também foi prejudicial ao trabalho dos técnicos, pontuam os elaboradores da BrCrewStories: “Estamos totalmente à mercê dos serviços de streaming porque a ANCINE produz pouquíssimo hoje em dia”. Esse é mais um fator que os motiva a lutar por dignidade no audiovisual brasileiro. Eles ressaltam que, além das denúncias feitas via Instagram, uma forma de fortalecer essa luta é a organização sindical. “Seria muito importante se a cultura do sindicato ficasse mais forte entre os trabalhadores. Nosso mercado criou uma mentalidade neoliberal do cada um por si que é realmente difícil quebrar a barreira”, expressam.
A equipe da BrCrewStories também assinala a possibilidade de interferências externas na desmobilização dos trabalhadores do audiovisual: “Acreditamos que exista uma intimidação principalmente nos cargos no topo da hierarquia. É realmente sintomático que não exista no Brasil uma associação dos diretores de cena, não é? Como essa classe nunca se juntou?”. Eles acrescentam que a exaustão física e mental também desmotiva a luta, pois “depois de uma diária de 12 horas, tendo uma casa e uma vida para cuidar, que tempo sobra para militar?”.
Mesmo com os obstáculos, a sindicalização é crucial para a garantia dos direitos. Por isso, o Cinéfilos também entrevistou Sônia Santana, presidente do Sindcine desde 2015 e uma das mais importantes lideranças sindicais do audiovisual brasileiro.
O Sindcine e a organização das causas dos trabalhadores do audiovisual
O Sindcine nasce em 1986 como o ressurgimento de organizações sindicais que haviam sido cassadas durante a Ditadura Militar. Antes do golpe, foram formadas associações que visavam proteger o trabalhador do audiovisual da agressiva indústria cinematográfica estrangeira que penetrava no país. Uma conjuntura similar à atual, em que o cinema brasileiro, sucateado, perde sua autoralidade para as plataformas de streaming estadunidenses.
Em meados da década de 1980, então, trabalhadores do audiovisual voltam a se sindicalizar e esse fenômeno resiste até os dias atuais. Hoje, o Sindcine batalha na campanha Jornada Justa, que objetiva reduzir a jornada, atualmente de 12 horas, para 10 horas. “A gente encara o excesso de jornada como uma violência no trabalho”, afirma Sônia. A presidente explica que a campanha, iniciada no final de 2021, começou com uma reivindicação dos assistentes de direção, que queixavam de uma enorme pressão e sobrecarga: “Quando eu fazia cinema diziam o seguinte: ‘quantas sequências nós vamos rodar hoje?’ Agora, é ‘quantas páginas vamos rodar hoje?’. Então é uma pressão enorme em cima daquela equipe e os sets, até pela Covid, também estão muito tensos. Isso te prejudica fisicamente na sua saúde”.
A intimidação das forças empresariais é um fator que amedronta os técnicos e por isso, enfraquece a causa. “Se você reivindicou alguma coisa que a produtora não achou legal: geladeira para você. Você vai para um freezer que você nem sabe em quanto tempo você sai. Então existe um medo grande de exposição dos técnicos diante do patronal”, aponta a líder do sindicato. Mas ela reforça a necessidade dos trabalhadores lutarem por seus direitos: “Você tem que conhecer. Você tem que ler, entender a sua função, a sua atividade”.
Embora exigir direitos básicos para a classe trabalhadora em um contexto neoliberal seja uma tarefa árdua, o Sindcine obteve êxitos relevantes em seus 34 anos de história. A possibilidade de realizar Convenções Coletivas, reuniões que determinam as regras entre os patrões e empregados, foi a mais importante conquista do sindicato dos trabalhadores do audiovisual, de acordo com Sônia. “A função do sindicato é isso. O sindicato está aí para intermediar. Toda vez que o set dá uma descumprida, dá um B.O, a gente vai lá puxar a orelha de novo, porque tudo tem que ser relembrado o tempo inteiro”, ela expressa. Além disso, foram feitos seminários de segurança, processos de registros profissionais, especializações de ajudantes de set, seguros, assistência médica, relatórios sobre produtoras, cestas de alimentos para a garantia da segurança alimentar dos associados na pandemia, e a recente Campanha Salarial.

Quando procurar o sindicato?
Sobre isso, Sônia é bem direta – o quanto antes: “Quando você começa a sua carreira profissional, o correto é já se aproximar de um sindicato para entender como você vai trabalhar. Para saber os seus direitos, como é que você se protege e o que você tem que entregar”. Mas não é isso que ocorre na realidade brasileira. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que, de 2012 a 2019, os sindicatos perderam cerca de 3,8 milhões de filiados no Brasil. Em uma sociedade capitalista, em que a perda do senso coletivo é predominante, esse dado é sintomático.
A despolitização dos técnicos é, de fato, um problema a se enfrentar. “Você tem que ter consciência, consciência de classe. Consciência do seu trabalho, consciência dos seus direitos, e é muito difícil colocar isso na cabeça das pessoas”, manifesta a presidente do Sindcine. Segundo ela, essa falta de consciência é extremamente prejudicial à vida profissional dos trabalhadores do audiovisual, pois se não há conhecimento dos direitos e normas de contrato pelos técnicos, “qualquer um te enrola”, diz.
No sindicato, existem cursos que ensinam o técnico a calcular as horas extras — uma vez que muitas não são pagas pelas produtoras — e a calcular o tamanho das jornadas de trabalho. Ademais, nas palavras de Sônia, “você vai entender a hierarquia do set, a ética, as questões de assédio, como você se relaciona, como você calcula o seu cachê”. Participar da vida sindical deixa o trabalhador a par do que acontece no mercado de trabalho. Em uma conjuntura em que os direitos trabalhistas estão cada vez mais frágeis, a sindicalização é urgente.

Muito boa matéria, clara e objetiva. Parabéns!
Sou produtora de objetos e decoradora de set há 35 anos.
Adorei a matéria, importantíssima para esclarecer e orientar os novos ou futuros profissionais da área do audiovisual.
Parabéns!!!