Às vezes, leva algumas horas, ou até mesmo minutos para amar alguém. Mas leva metade de uma vida para amar a si mesma (ou uma parte de si).
– Você me conhece? – pergunto
Essa simples pergunta me atormentava há mais tempo do que gostaria. Mas também, como não? Há mais de um ano juntos, será que ele realmente sabia quem eu era? Ou o interesse pelo meu corpo tinha ofuscado, até mesmo, minha identidade?
Namorar na adolescência pode ser uma experiência linda de aprendizagem, mas, pela falta de autoconhecimento, também pode te levar a fazer coisas que nunca imaginou suportar.
Eu e Tomás éramos muito unidos. O início do nosso namoro foi muito conturbado — eu estava sofrendo bullying na escola e ele era meu porto seguro. Talvez esse tenha sido o meu maior erro: transformá-lo em meu porto seguro; no que me trazia segurança. Ele era tão indispensável que eu carregava comigo o número dele na carteira em um papelzinho, para caso precisasse. Nós até tínhamos um eu te amo só nosso. Todas as noites, dizíamos um ao outro neoqeav (“nunca esqueça o quanto eu te amo”). Éramos um só.
Não sei em que momento isso aconteceu, mas as conversas diminuíram e nossos passatempos tornaram-se tanto os mesmos que eu nem pensava no que queria fazer. Ele vinha sempre em primeiro lugar. Conhecia toda a minha história, cada machucado e cada ponto fraco. Eu sentia que casaria com ele e sabia que tinha encontrado minha alma gêmea.
Mas, talvez, aí esteja outro problema: eu havia encontrado minha metade, mas ele não. Olhando agora, tenho certeza de que ele nunca me amou como eu o amei. E que bom que não amou. Porque, senão, ele teria sofrido o tanto que eu sofri e, honestamente, não desejo isso para ninguém.
– Você me conhece? – pergunto
Deitados na cama assistindo a um desenho bobo qualquer, ele me olhou surpreso e riu de mim:
– Óbvio que conheço, que pergunta é essa?
Mas era algo extremamente sério. Continuei olhando pra ele firmemente. Precisava saber de uma vez por todas se eu fui resumida a um corpo, ou a uma pessoa que fica ao lado e faz tudo por ele. Que o apoia nos seus sonhos, o ajuda com a escola, representa toda a família na formatura porque eles estão viajando, e que o aplaude de pé como se fosse a própria vitória. Que desafia os pais, sai de casa quando não pode, e anda quilômetros para ir encontrá-lo. Que seria capaz de subir o Everest se ele pedisse.
– Quem sou eu pra você? – eu precisava saber. E a resposta conseguiu ser tão vazia quanto imaginei.
– Você é minha namorada linda, maravilhosa, gostosa. Que fica linda com cara de brava.
Acredito que ele também citou que meu brigadeiro é incrível e que eu tenho um ótimo senso de humor.
Eu era pouco mais de quatro adjetivos para o homem que eu queria passar o resto da minha vida.
Minha mãe tem um ótimo faro. E, na primeira vez que eu e ele brigamos, ela pisou o pé no chão e disse que não confiava nele. Mas claro que ela estava errada. Não estava?
Mesmo com todas as inseguranças e sentindo que, lá no fundo, não havia mais nós, eu continuei. O problema não era o amor, e sim eu ter solidificado minha vida nele. Mesmo assim, continuei fazendo de tudo por ele. Íamos às festas juntos e curtíamos cada momento; saíamos para comer; passávamos as tardes e as noites dos fins de semana assistindo desenhos e filmes bobos. Ele tinha virado amigo dos meus melhores amigos; estávamos sempre juntos nos encontros de família (e eu quase deixei meu pai sozinho numa virada de ano novo só para ficar com ele).
Obviamente, eu continuava ignorando o que sentia. Eu perdi completamente a habilidade de dizer não. Como negar qualquer coisa a ele? Mesmo que isso me machucasse profundamente. Éramos inseparáveis e eu sempre ouvia como todos achavam que éramos perfeitos um para outro e como queriam um romance assim.. Mas, o que ninguém sabia, é que ele estava fadado.
Tom nunca foi um mau namorado. Ele sempre foi extremamente atencioso, sempre me ouvia, sempre me abraçava e me fazia carinho. Sempre esteve ali, sempre desejou o meu melhor. O sorriso dele perto de mim era a única coisa que importava no mundo e minha galeria de fotos era recheada dele. Inclusive, os amigos do Tom sempre falavam que nossos filhos seriam dentuços, porque os dois têm sorrisos maiores que o rosto.
Mas, eu ultrapassei meus limites e não é meu lugar culpá-lo por algo assim. Afinal, quem foi que amou demais? Quem foi que, suprindo a falta de amor próprio, transbordou por outro alguém? E, mesmo me descrevendo de forma tão superficial, ele foi o único que me viu em crise. Ah, existe esse lado do desequilíbrio mental. Mesmo com remédios, as crises ansiosas e depressivas eram constantes. Elas nunca aconteciam com ele por perto. Nunca.
Até o Carnaval.
Meus amigos iam à minha casa assistir a um filme durante a tarde e Tom estava passando a semana em casa comigo. Mas, ao invés do filme, ele queria ficar na cama o tempo todo e meu corpo virou a atração principal. Eu não conseguia mais negar as vontades dele, embora quisesse muito ver meus amigos. Eles foram nos ver, dei atenção a eles e, mais tarde, Tom brigou comigo. Foi neste momento, quando ele me cobrou algo que eu não aguentava mais dar a ele por estar ultrapassando todas as minhas barreiras, que eu tive a pior crise da minha vida.
Sabe aquele choro que entope todas as veias que ligam o coração e você realmente acha que vai morrer?
Eu só me lembro de gritar
“saí
de
perto
de
mim”
e de chorar.
Em algum momento ele conseguiu me acalmar e me levou até a cama, me deitou e fez exercícios de respiração comigo.
Naquele dia, eu percebi o quão ferrada, dependente e perturbada eu estava. Sair desse círculo parecia impossível. Tão impossível que eu segui com o nosso relacionamento. Éramos perfeitos. Eu realmente acreditava que éramos.
Penso que o universo percebeu que, por iniciativa própria, eu nunca terminaria nosso relacionamento. Já estava impregnado na minha pele. Marcado para sempre. Como arrancar uma parte de mim, mesmo sabendo que está podre?
O momento da separação chegou, inevitavelmente. Olhando para trás, vejo que ele também sentia que nós não duraríamos. Ele poderia ter se mudado para algum lugar mais próximo, poderia ter vindo mais vezes, poderia ter tentado. Mas acho que ele se cansou e precisou voar longe para conseguir se ver livre de mim.
E, enquanto ele voava, eu percebi que tinha perdido minhas asas há muito tempo.
– Amor, eu consegui um emprego. No Espírito Santo
Sabe quando você se divide? Eu não sabia se ficava feliz pela conquista, ou se ficava desesperada com a separação. O orgulho dele gritou mais alto e eu o apoiei. Nos amávamos e resolvemos continuar juntos, mesmo longe um do outro — na época, terminar parecia algo inviável. Repeti “se nós quisermos, o namoro a distância vai dar certo” para ele e para mim mais vezes do que me recordo.
Tom deixou nossas fotos e todos os presentes que dei a ele para trás. Ah, ele quer deixar guardado aqui para não perder.
Até que minha vó me manda uma mensagem. “Querida, você e o Tom terminaram? Ele postou uma foto sem aliança..”.
Óbvio que ele tinha uma ótima resposta pra isso. Afinal, ele estava comendo sanduíche e não queria engordurar a aliança. Claro que eu confio nele, a aliança é só um símbolo. Não é?
Pouco mais de um mês fora e nos falávamos cada vez menos. Minha saúde mental se deteriorava e eu precisava dele, ou pelo menos acreditava que sim, como um dependente químico. Pedi para ele que conversássemos mais e ele gentilmente disse que tinha tempo disponível para mim apenas no domingo.
Eu realmente devo ser muito entediante para meu namorado precisar reservar um dia, o domingo, para mim. Certo?
Eu, temperamental, completamente intensa e desequilibrada, não aguentei. Em certo dia, liguei aos prantos porque eu queria que ele visse o quanto eu estava sofrendo e falei que não dava mais. Depois de tanto chorar a noite voltando para casa, depois de todo esse tempo, eu esperava qualquer coisa, menos o tudo bem dele.
Ele ficou me encarando, como se já esperasse isso, enquanto eu morria por dentro.
Ali, uma grande parte de mim realmente morreu, apunhalada pela indiferença dele.
A questão é que ele também não queria (ou não conseguia?) desgrudar de uma fonte de carinho e de amor tão entregue e fácil como eu era. Então, conversávamos de vez em quando e eu sempre acabava chorando. Meus amigos tentavam me lembrar do quanto eu havia sofrido, de como ele forçava minhas vontades, mas tudo aquilo parecia ser tão distante…
Ele voltou nas férias para nossa cidade. Eu havia sofrido por 4 meses. Chorado como nunca e sentido a falta dele como se tivesse tido um braço arrancado. Quando nos reencontramos e olhei aqueles olhos que me lembram o pôr do sol, tudo virou pó. Era ele; sempre seria ele quem teria a chave e o meu coração inteiro. Em seu primeiro aniversário que passamos juntos, dei de presente dois chaveiros combinando. Naquele momento eu não percebi, mas não dei só a chave pra ele: dei todo o coração. Em seus braços novamente, percebi que nada era meu, era tudo dele. Os planetas estavam novamente em órbita, eu estava segura, eu era feliz. A vida era tão mais gostosa ao lado dele. Por que mesmo nós terminamos?
Mas eu descobri que amar por dois é impossível. Tom tinha aproveitado muito sua vida de solteiro, e reatar não era uma opção. E foi aí que eu tomei a pior decisão da minha vida.
“Nós não precisamos voltar a namorar, podemos só ficar quando você vier, um relacionamento aberto, mas tudo bem você ficar com outras meninas e eu com outros”.
A questão é que eu não queria mais ninguém, e nem iria querer. Mas me agarrei nessa última chance de ter ele novamente e aceitei algo que eu sabia que iria me machucar. Por ele. Sempre por ele. Tudo por ele.
O mundo voltou ao normal, conversávamos sempre, nosso neoqeav estava mais vivo do que nunca, e eu o amava mais a cada dia.
Até o pior fim de semana de aniversário da minha vida.
Naquele ano, meu aniversário caiu em uma sexta-feira, e comemorei com meu pai. Ao final do dia, conversei com Tom por mensagem de texto e ele me disse que estava indo a um bar com alguns amigos.
“Amor, estou entrando no bar, depois a gente se fala.
aproveita aí, te amo,
neoqeav”
Durante a noite, mandei várias mensagens contando como o aniversário estava sendo, feliz de ter ele ali. Mas eu não via que não o tinha. Na manhã seguinte, acordo com um áudio dele, às 7 da manhã:
– Bom dia, meu bem. Então, só pra te falar, ontem eu fiquei com uma menina. A gente nem precisa falar sobre isso, mas só pra te avisar, beijo
E meu mundo acabou.
Como uma pessoa diz que te ama e beija outra? No dia do seu aniversário? Como ele pôde achar que estava tudo bem? Que eu não ligaria? O que eu sou pra ele?
De novo, essa pergunta me assombrava.
Doía em cada parte do meu corpo, mas eu finalmente tive coragem de não responder mais nada e de me afastar. Eu não conseguia entender como ele estava bem com aquela situação. Estávamos em um relacionamento aberto, mas para mim foi só da boca pra fora. Eu era só dele. Não havia a possibilidade de existir outra pessoa enquanto eu o amava tanto assim.
Mas era uma amando por dois.
É óbvio que não consegui ficar afastada por muito tempo. Quando você se envolve e doa tanto de si quanto eu, é difícil se afastar.
Até as outras férias.
Até ele voltar.
E, embora eu quisesse fingir que só existia ele e mais nada, havia algo ali. Uma mudança que não tinha percebido, mas que tinha acontecido em mim. E ele finalmente disse o que eu temia ouvir:
– Tom, o que eu sou pra você? O que a gente tem?
– A gente não tem nada.
Eu queria quebrar a cara dele. Causar um pouco de sofrimento só para ele ter noção de como é estar com o coração e o corpo inteiro sangrando. Como é não conseguir dormir ou comer. Mas não doía nele e nem iria doer. Ficou por minha conta cada curativo e cada cicatriz que não parava de sangrar.
4 meses depois
– Hm.. seu caso é bem curioso, na verdade. As idas e vindas depressivas, a baixa autoestima, as tentativas de suicídio, os transtornos.. me parece que você é bipolar.
Nunca imaginei que um simples diagnóstico fosse mudar tanta coisa. Nunca me imaginei como bipolar. Meio perturbada? Óbvio, mas bipolar já era demais. Mas, enquanto a médica me explicava as características do transtorno, as nuances e as fases, tudo começou a fazer sentido. No final, eu não era doida, eu só tenho falhas químicas mentais que me fazem sentir coisas intensas demais.
É muito difícil viver inconstante, não saber o porquê há momentos de uma tristeza imensa e, em outros, misturar antidepressivos com bebidas tendo a certeza absoluta de que nada acontecerá, porque eu sou “invencível”. E mais difícil ainda é não ter explicação. Então sim, lidar com a novidade: “ei, agora eu tenho um rótulo de bipolaridade” facilitou muito minha vida.
Isso não significa que não há mais crises e recaídas, mas agora eu sei lidar com elas. Sei o que está acontecendo e sei me acalmar. São poucos meses após o término, ainda não consigo entender completamente tudo que aconteceu. Sei que ele segue com a vida dele e fico feliz.
Mesmo assim, na maior parte dos dias, me pergunto se algum dia vou ser capaz de amar alguém tanto assim de novo. Se conseguirei me entregar tanto. Nem sei se quero isso. Aquela felicidade era tão genuína e completa que me parece única. Daquelas que dizem existir uma vez na vida. Será que perdi minha única chance de ser feliz? E mesmo entendendo, agora, que mudamos e não combinamos mais, não entendo porque dói tanto. Talvez porque eu tenha materializado todas as minhas certezas em alguém — e as pessoas não são estáveis.
O diagnóstico não anula a culpa de nós dois por tudo que aconteceu. Mas me faz entender, ao menos em partes, porque eu senti tanto enquanto ele sentia tão pouco.
Minha própria companhia tem sido cultivada diariamente. Cada momento que posso, aproveito para saber quem eu sou, do que eu gosto, como gosto, quando gosto. A bipolaridade tirou isso de mim, mas o namoro também. Tem sido um processo tão lento — muitas vezes acabo chorando, olhando para o espelho e não sabendo quem é aquela pessoa. Sei que um dia vai passar, que meu amor próprio será mais do que o suficiente para me deixar tranquila e contente, e que não vou mais sangrar querendo uma felicidade que me matava. Mas ainda não consigo fazer isso. É pesaroso e cansativo demais lidar com tantas oscilações enquanto curo um coração espancado. Sabe o que é pior? Fui eu quem o maltratei.
O amor ainda não é uma realidade, nem uma constância. Os primeiros passos até me amar foram dados após meses de terapia e ainda é difícil aceitar tudo isso. Não é fácil sentir, por motivo nenhum, uma tristeza tão profunda que parece impregnada na pele, no ar, e, depois de um tempo em luto pela minha própria alma, querer viver, como se o amanhã não existisse. É exaustivo, na maior parte do tempo, mas é minha realidade e eu tento vivê-la. Só não consigo imaginar ninguém vivendo-a comigo, nem me imaginar amando alguém novamente. Não sei se isso é possível. Até porque, qual a linha entre o amor bom e o amor que vai me matar novamente? Não posso correr o risco. Além do mais, que garantia terei de que serei tão feliz quanto fui com ele? Isto é, se fui realmente feliz. O passado continua uma penumbra entre momentos extremamente felizes e apaixonantes, e outros em que eu queria morrer, mas eu sou assim, e pelo visto, não mudarei. Não agora, pelo menos.
Ele conseguiu, no fim das contas, encontrar alguém que o ame na mesma proporção que ele. Fico me perguntando se um dia isso acontecerá comigo ou se ficarei para sempre presa a uma felicidade idealizada.