O amor pela moda me acompanha desde pequena e foi um dos pontos basilares para a formação da minha personalidade. Mas não é nisso que estamos interessados hoje. O foco é o descobrimento do que realmente é moda. Para você, caro leitor, pode ser apenas um tópico fútil e sem sentido, que envolve palpites sobre roupas, cores, texturas e passarelas. Mas o glamour da moda é apenas uma pequena parte de um contexto que molda vidas. Nunca serei capaz de esquecer o momento em que percebi isso.
Esta é a história de um dia normal no quinto ano do Ensino Fundamental, em que uma menina, com seus 10 anos de idade, na aula de História, assistiria ao filme que mudaria para sempre sua visão de mundo.
Nós nunca conseguimos prever a chegada desses momentos. Mas eles sempre vêm e nos marcam com brasas.
A professora — que por sinal era a própria mãe da menina — contava sobre a ditadura civil-militar do Brasil e exibia o filme Zuzu Angel (2006). A felicidade ao saber que a protagonista era uma estilista foi logo substituída por uma sensação de desespero ao ver o rumo que a história tomava. O filme retrata a trajetória fatal do filho de Zuzu, Stuart Angel, no movimento contra a ditadura. O jovem foi preso aos 25 anos na companhia da mulher, Sônia, e foi torturado e dado como desaparecido pelos militares. Desde o instante da prisão, Zuzu, por meio de sua influência no Brasil e no exterior, lutou bravamente pela libertação do filho e, posteriormente, pela libertação do corpo morto e pelas explicações do assassinato – quem eram os assassinos, quais eram os motivos. Mas não adiantou.
As cenas violentas e emocionantes impactaram de maneira indescritível a mente de uma menina que mal completara uma década de vida. Mas o maior símbolo da luta de Zuzu ainda estava por vir: sua nova coleção de roupas em protesto ao regime civil-militar. Todas as peças em branco, com bordados à mão de pássaros em gaiolas, de armas, de chapéus militares, de guardas e de canhões. A coleção, que passou pela censura, era um protesto em alto e bom som contra a repressão e o assassinato em massa.
Você pode se perguntar qual era o significado tão importante e especial de roupas que representam o regime ditatorial. Mas, para mim, é tão claro quanto o tecido ao fundo da barbárie. Era a moda, a futilidade, como uma arma poderosa de protesto contra tudo que asfixiava qualquer manifestação libertária. Era uma peça de roupa representando o assassinato de uma nação.
A coleção ganhou o mundo e Zuzu conseguiu atrair a atenção mundial para a barbárie local. Ela fez grandes esforços, contatou, inclusive, os EUA na tentativa de recuperar o corpo do filho e de descobrir quais eram os responsáveis pela morte dele. Zuzu fez bagunça para escapar de uma gaiola continental cercada de cassetetes. O fim não é muito misterioso. Ela sabia que corria perigo. Sabia que estava sendo perseguida e ameaçada constantemente. Em seus últimos dias de vida, levou a Chico Buarque um documento que, caso algo ocorresse a ela, deveria ser publicado mundialmente para denunciar, mais uma vez, as atrocidades do governo brasileiro. No documento, ela escreve: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”. Pouco mais de uma semana depois, ao atravessar o Túnel Dois Irmãos (Estrada Lagoa-Barra), no Rio de Janeiro, Zuzu sofreu um acidente de carro fatal.
Para a Comissão da Verdade — colegiado designado a investigar os crimes contra os direitos humanos no contexto da ditadura civil-militar — o “acidente” não foi acidental e há, inclusive, indícios do envolvimento de um Coronel do Exército.
A grandiosidade de Zuzu, sua força e garra, mudaram para sempre minha mente, ainda em formação. Moda é protesto. Moda é representação social. Zuzu está marcada eternamente entre bordados de pássaros e bombas. Zuzu lembra que o medo não deve ser maior que a justiça nem a vontade de superar os desafios — mesmo que esses desafios sejam os próprios agentes no poder. Zuzu marcou em mim brasas de resistência, às quais eu recorro quando penso nas situações catastróficas para as quais o país caminha. E me lembra e relembra, incontáveis vezes, de que a luta nunca acaba. Seja por um bordado, seja por uma roupa, seja por uma música, viver é resistir. Viver é relembrar. Que os cem anos do nascimento de Zuzu aqueçam as brasas quase apagadas em vocês também.
*Imagem de capa: Reprodução/Instituto Zuzu Angel/Acervo