Jornalismo Júnior

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Às margens da adoção

— Ele está brincando comigo? Não é hora de brincar, humano, isso dói! Dizem que os gatinhos têm sete vidas, mas nem todos eles têm a mesma sorte, nem todos eles têm a chance de confiar de novo em um humano. Humano, isso dói… E por muito tempo, essa foi minha única lembrança. Eu estava …

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— Ele está brincando comigo? Não é hora de brincar, humano, isso dói!

Dizem que os gatinhos têm sete vidas, mas nem todos eles têm a mesma sorte, nem todos eles têm a chance de confiar de novo em um humano. Humano, isso dói… E por muito tempo, essa foi minha única lembrança.

Eu estava de novo tentando atravessar a rua. Naquele mesmo momento. Eu me distraí só por um segundo… E veio o impacto. 

Ouvi portas de carro batendo e pensei “vai ficar tudo bem”, mas não foi o que aconteceu. Eu sentia dor pelo meu corpo inteiro. Inteiro não, eu não sentia nas minhas pernas. Talvez o carro tenha batido só nas minhas patas da frente. Alguém me pega no colo e eu ronrono um pouquinho, só para avisar que estou com dor, mas que confio nele e sei que vai cuidar de mim. Sinto que posso descansar, mas então sinto o humano jogando meu corpo para cima. Ele está brincando comigo? Não é hora de brincar, humano, isso dói! E então eu sinto que estou caindo, e caindo. Tudo ainda dói, menos as minhas patas traseiras. Eu sinto o baque do chão frio e tudo fica escuro. 

De repente, tudo está claro de novo. Não era mais frio, meu corpo não doía mais, não tinha o mesmo cheiro. Sinto a Hina esfregar a cabeça em minhas costas e a Momo me dando tapinhas, tentando me acordar. Eu estava em casa e, para o meu conforto, aquilo era apenas um pesadelo. 

Essas eram minhas irmãs, Momo tem 5 anos e estamos juntas desde que chegamos na casa da nossa humana. Hina é a mais nova, tem apenas 1 aninho, já eu sou a mais velha. Tenho 7 anos e dizem por aí que temos a personalidade de super heroínas… As Gatinhas Super Poderosas: A Momo, assim como a Docinho, é tão arisca quanto doce. Com o tempo, ela teve que aprender novamente a confiar, principalmente nos humanos, ainda mais sendo uma gata preta, que sofre com tanto estigma. Confiar em mim nunca foi um problema para ela, foi assim que consegui meu papel de líder do grupo! 

Falando nisso, é aí que eu entro! Sou a Florzinha, a cabeça desse trio. É ser muito convencida se eu disser que elas não conseguem viver sem mim? Que seja! Tenho outras qualidades também… Sou carinhosa, adoro um colinho e meus pelos lembram outro personagem, o Frajola! Depois de nós duas, veio a Hina, ou melhor, a Lindinha. Por mais irônico que seja, ela é a única ruiva do grupo. Assim como nossa humana sempre diz, Hina é uma gatinha dócil, muito brincalhona, beijoqueira e ronronante. E cá entre nós, talvez sua idade explique a sua  energia, às vezes é até difícil acompanhar! 

Já deu pra notar que somos bem diferentes em personalidade e costumes, mas, além do fato de sermos irmãs, outra coisa nos une: somos gatinhas paraplégicas. Além delas, também tenho outros irmãos,  outros dois gatinhos e dois cachorros e sim, minha humana tem o coração grande, sempre tem espaço para mais um resgate 

Nós conhecemos bem a nossa deficiência. Ela foi causada de diferentes formas. Eu e Momo temos lesões na coluna. A da Momo é compatível com maus tratos, enquanto a minha aconteceu como no meu pesadelo: fui atropelada e jogada por cima de um muro, no quintal do humano que me resgatou e me deu uma segunda chance! No caso da Hina, é um mistério, ela já foi encontrada assim. Nós três fomos encaminhadas para uma ONG, em busca de alguém que pudesse nos dar um lar. 

A Momo foi a primeira a conquistar nossa humana. Acho que é o momento de contar sobre ela. Mesmo antes da gente, ela já adotava animais que tinham pouquíssimas chances de conseguir uma casa. Idosos, com deficiência, ela já conheceu e acolheu vários de nós. Mas então ela viu a Momo, uma gata preta, adulta, paraplégica e, que pelos maus tratos, não confiava em ninguém. Levou oito meses inteirinhos para que a Momo se aproximasse da humana. 

Até hoje, essa história é um orgulho para ela ― e para mim também, tenho orgulho das conquistas das minhas irmãs. Nossa humana estava sentada, em um momento não muito legal para ela. Então a Momo, que não chegava próximo de nenhum humano, pulou e sentou em seu colo. Para mim ela com certeza sentiu a emoção da nossa dela ― mas é muito durona para admitir isso ― e como a amava muito, quis confortá-la naquela situação. 

A minha adoção acontece simultaneamente à da Momo. Nós precisamos de alguns cuidados especiais e, um deles, é uma massagem que nos ajude a fazer as nossas “necessidades” (eu sou uma gatinha muito educada para falar disso!). A humana teve que aprender todo o processo na ONG em que nos adotou. Enquanto ela aprendia como cuidar da Momo, eu mostrei todo o amor e carinho que eu estava disposta a dar, conquistando o coração dela. Assim, chegamos juntas na casa que, hoje em dia, é totalmente nossa!

Depois de alguns anos ― eu não sou muito boa com datas ―, chegou nossa última irmãzinha: a Hina. Nossa família queria muito um gatinho que víamos sempre no quintal de casa, laranjinha, assim como a nossa irmã. Mas ele sumiu e nossa humana voltou à ONG, se apaixonou mais uma vez e trouxe nossa pequena ruiva para casa. Com ela foi tudo tranquilo! A beijoqueira vive há alguns meses junto de nós e já parece que nos conhecemos a vida toda. 

Apesar de ser a irmã mais nova e irritante (ela sabe disso), todos nós a amamos muito!

Yumi, Momo e Hina [Imagem: Reprodução/Instagram]

Apenas nesta introdução, minhas irmãs já reclamaram muito. Talvez tenha sido porque eu passei esse tempo inteiro falando e nem percebi que precisava me levantar do meu conforto para acompanhá-las em nossa aventura matinal: passear pela casa e esperar nossa humana para nossa rotina. 

Assim eu me ergui, ainda com um pouco de preguiça. Mexo meu corpo para lá e para cá, Momo ainda me dava alguns tapinhas com sua pata e Hina era insistente em esfregar seu rosto em mim e me empurrar para que despertasse logo. Normalmente a humana esvazia a gente ― os nossos humanos veterinários chamam de “massagem vesical”, utilizada para evacuar as necessidades dos animais ―, alguns, mesmo sem os movimentos das patinhas, podem conseguir usar o banheiro e outros podem até mesmo usar fraldas. Mas atenção: para isso é necessária muita higiene e acompanhamento.

Não é fácil cuidar de animais com deficiências, assim como nós, e esse pode ser um dos motivos que dificulta nossa adoção. Antes de morar na casa da nossa humana, todas nós viemos da mesma ONG. Lá, os nossos futuros humanos aprendem a lidar com a rotina de gatinhos com deficiência (ou não), e recebem as orientações necessárias para ter um animalzinho como nós em suas famílias. Também é importante que haja um acompanhamento com os tutores após a adoção, só assim dá pra saber se eles estão nos dando um lar adequado. 

Mas ter vontade e cuidados ainda não é o suficiente para adotar. Os humanos também precisam morar em ambientes que ajudem nosso desenvolvimento. Para os animais cegos, por exemplo, é muito importante que as casas tenham poucas escadas e que não haja muitas mudanças nos móveis, já que eles se guiam pelo cheiro e pelo que já conheceram do ambiente. Para os pets sem o movimento das patinhas, assim como eu, o local precisa ser de fácil acesso para que eu consiga me locomover. Uma dica veterinária é forrar o chão com papel E.V.A, porque assim, quando me arrasto para caminhar, não me machuco e nem fico com feridas em minha pele. Também podemos andar em cadeirinhas, mas não é recomendado que fiquemos nelas por mais de duas horas diárias, já que isso pode causar alterações e machucados. 

A minha história foi uma exceção entre muitos animais, não apenas deficientes, que sofrem com o abandono e cuidados inapropriados. Considero a minha jornada, assim como a das minhas irmãs, uma tacada de sorte. 

Não é à toa que me propus hoje a me tornar uma cronista ― ou quem sabe uma escritora ―, foi para que outros animais tenham a chance de viver com dignidade e respeito, mesmo após as dificuldades, os empecilhos. São, aproximadamente, 30 milhões de animais abandonados no Brasil. Trinta milhões de vidas sem lares. Trinta milhões de seres que sofrem com frio, com fome, com dor, sofrendo sem nem saber o porquê.

Quando começar a escurecer, minha humana vai brincar comigo, vai checar se tenho fome, se tenho dor. Vai me colocar para dormir em um lar seguro, vai me dar abrigo e não me deixar passar pelas dores que eu já passei quando estava nas ruas. Mas mesmo assim, 30 milhões de vidas ainda continuam deixadas à própria sorte. As adoções especiais são ainda mais raras e, por isso, sempre que acontecem, as tias da ONG vibram quando encontramos um humano. 

Parece que não, mas escrever uma crônica é bastante cansativo para uma gata. Talvez a Hina devesse assumir essa função e gastar um pouco da energia infinita dela. Daqui, seguimos prontas para uma nova aventura, esperando notícias de novos amigos em seus novos lares.

3 comentários em “Às margens da adoção”

  1. Olá… parabéns pela crônica, achei maravilhosa…até me emocionei rsrsr. Também achei muito interessante a maneira de explicar como tudo acontece nas ONGs e também as dificuldades encontradas para adotar um animal, principalmente os que possuem alguma deficiência.
    Parabéns, parabéns, parabéns 😻😻😻😻

  2. Olá… parabéns pela crônica, achei maravilhosa…até me emocionei rsrsr. Também achei muito interessante a maneira de explicar como tudo acontece nas ONGs e também as dificuldades encontradas para adotar um animal, principalmente os que possuem alguma deficiência.
    Parabéns, parabéns, parabéns 😻😻😻😻

  3. Que texto lindoo! Me emocionei e deixou meu coração quentinho em saber que Momo e Yumi apesar da deficiência e dos traumas que sofreram, encontraram um lugar com todo o amor que merecem.
    Muito obrigada por compartilhar essa história e por ressaltar que ainda existem 30 milhões de animais que não tiveram a mesma sorte delas. Precisamos apoiar nossos protetores e ONGs e buscar por um bom futuro para aqueles que restam.

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