O mar está subindo?
O planeta Terra é um grande sistema flexível e adaptável às condições climáticas. Ele já passou por diversas mudanças, e os oceanos acompanharam todas elas. O aumento do nível do mar, portanto, é natural. Se ocorre de forma lenta e gradual, ocasionado pelos ciclos orbitais da Terra — os quais resultam nas eras glaciais — a probabilidade de o sistema se adaptar às novas condições é grande, explica Yana Friedrich Germani, mestra em oceanografia física, química e geológica pela Universidade Federal do Rio Grande, no Rio Grande do Sul.
Contudo, ao passo que as mudanças naturais acontecem dentro de milhões de anos, as antropogênicas são muito mais rápidas e preocupantes. É essa rapidez que distingue o aumento atual do nível dos mares do registrado em períodos pré-históricos.
A causa do aquecimento dos oceanos é o próprio aquecimento do planeta, provocado pelo desmatamento, pela queima de combustíveis fósseis e pela emissão de gases que intensificam o efeito estufa, como o dióxido de carbono e o metano. Essas atividades resultam no derretimento de geleiras, como as da Antártica e Groenlândia, e na gradual expansão térmica das águas oceânicas, o que ocasiona o aumento do nível dos mares.
O futuro do planeta é incerto, mas estudos sobre o clima nos permitem prever alguns dados: estima-se que atividades humanas tenham causado cerca de 1,0ºC de aquecimento global acima dos níveis pré-industriais e é provável que esse aquecimento atinja 1,5ºC entre 2030 e 2052, caso continue a aumentar no ritmo atual, de acordo com relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2018.
Em relação ao aumento do nível das águas, Germani aponta um cenário pessimista, porém possível, segundo estudo da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. A pesquisa de 2016 prevê um aumento de cerca de 5ºC até 2100, com elevação média do nível dos oceanos de 86 cm. Um estudo mais recente de 2019, contudo, prevê um aumento entre 62 e 238 cm até 2100, se as emissões de poluentes continuarem na trajetória atual.
A água vai invadir as cidades?
Direta ou indiretamente, as águas já invadem. Trágico, o desaparecimento de cidades não ocorrerá de forma cinematográfica, com uma grande onda que incide sobre continentes e destrói prédios do dia para a noite.
“Uma pequena elevação dos oceanos é capaz de apresentar efeitos muito severos para micronações, como por exemplo as Maldivas, no Oceano Índico, e Tuvalu e Kiribati, no Oceano Pacífico”, comenta Germani. As ilhas em risco agora são chamadas de “novas atlântidas”, em comparação ao continente paradisíaco de origem desconhecida que estaria perdido no Oceano Atlântico após ter sua terra inundada pelo mar. A realidade atual, preocupante, não é nada fantástica.
Essas localidades planas, a poucos metros acima do nível do mar, estão suscetíveis ao aumento das águas. Suas populações têm no oceano um meio de subsistência e fonte de renda, mas as enchentes já têm afetado os cultivos locais e a obtenção de água potável. A maior parte do território das Maldivas está apenas a um metro de altitude e, considerando o aquecimento de 4 a 5ºC e uma elevação global média do nível dos oceanos, alguns governos locais cogitam remover sua população, temendo a submersão do território.
Contudo, não são apenas as ilhas que correm perigo. Em Veneza, permeada por canais, níveis altos de água estão cada vez mais comuns, chegando a inundar a cidade, como aconteceu em 2019. “Planícies costeiras, como o estado do Rio Grande do Sul, também são muito vulneráveis devido às baixas altitudes, assim como regiões de ilhas barreiras, muito presentes na costa leste dos Estados Unidos (EUA)”, comenta a oceanóloga. Ela complementa que cidades às margens de deltas, como o delta do Mekong, no Vietnã, e o delta do Mississipi, nos EUA, também estão muito vulneráveis, uma vez que dependem economicamente desses rios e concentram boa parte de sua população em seu entorno. Destaca-se que um percentual relevante da população mundial vive nas proximidades do litoral, sendo as zonas costeiras muito exploradas para fins turísticos.
No entanto, não é preciso ir longe para avaliar os impactos das mudanças climáticas. Germani explica que, no Brasil, o aumento de tempestades na região Sul e Sudeste reflete a variação do ciclo hidrológico, que faz com que estiagens e enchentes sejam mais duradouras e intensas. Se as temperaturas se mantiverem em elevação, regiões como Norte e Nordeste deverão presenciar períodos muito prolongados de seca, sem necessariamente uma compensação de um período chuvoso mais longo. A área agricultável do país será drasticamente reduzida. A Floresta Amazônica já demonstra estar sofrendo com os efeitos do aquecimento global, e quanto maiores as temperaturas, menor a umidade do bioma.
O aumento das temperaturas resulta, portanto, na alteração de padrões climáticos e meteorológicos e interfere nas correntes marítimas, sendo também a principal causa dos furacões, que provocam perdas econômicas e de vidas.
Outros efeitos severos do aquecimento global apontados pela oceanóloga incluem a acidificação e o aquecimento das águas, que levam à extinção de espécies e à antecipação de migrações, hibernações e reproduções; a elevação do nível dos oceanos, causando erosão e perda de ecossistemas costeiros; e a salinização e alteração da qualidade da água de estuários e aquíferos costeiros.
Impactos sociais e os refugiados do clima
Com tantas alterações no meio ambiente, os impactos sociais das mudanças climáticas são grandes. A dificuldade de obtenção de alimentos e água potável e de manutenção de moradias combina-se com desaparecimento de terras hoje habitadas, a níveis mais extremos.
Países como Índia e Bangladesh sofrem com fortes secas e chuvas que afetam os territórios e provocam deslocamentos internos, com eventos de inundações que deixam milhões de pessoas desabrigadas.
Da mesma forma que o governo de Kiribati, no Pacífico, estuda deslocar sua população para fora do território devido ao risco de submersão das ilhas, o presidente da Indonésia já anunciou a transferência da capital do país de Jacarta, cidade banhada pelo mar e extremamente vulnerável a inundações, para fora da ilha de Java, localizada no centro geográfico e econômico da Indonésia.
Às populações em risco, até agora, no Plano Internacional, não há nenhuma projeção de amparo. A Doutora em Direito Internacional e professora voluntária no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Carolina de A. B. Claro, explica que, internacionalmente, valem os tratados de direitos humanos e os princípios de direito à vida, à saúde, à alimentação, à moradia e a uma nacionalidade. Cabe às políticas públicas nacionais e às legislações domésticas a garantia de acesso aos direitos para as pessoas que se encontram no seu espaço territorial. No entanto, Estados que possuem instabilidade política, em geral, encontram dificuldades para prover amparo à população.
Nesse sentido, algumas localidades estão extremamente propensas a apresentar refugiados ambientais. Carolina Claro aponta que a Papua Nova Guiné e a Somália, por exemplo, já vivenciam situações de migração forçada relacionadas a aspectos ambientais de origem mista (causas naturais combinadas com ação antrópica), sem que as populações afetadas recebam amparo doméstico. Em contraste, o Japão possui alta capacidade de redução do risco de desastres por meio da sua legislação e organização político-institucional em atenção às pessoas vulneráveis social e ambientalmente.
A existência de refugiados do clima, contudo, não é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Claro comenta que o Estatuto dos Refugiados, que precisa ser preservado, não coloca as questões ambientais como causas do refúgio. “Considero que, mais importantes do que o nome que se dê a essa categoria de migrantes forçados, são as soluções jurídicas, políticas, econômicas e sociais que concretamente solucionem os problemas enfrentados por esses migrantes”, completa.
Se a questão migratória já é um tema sensível e, mesmo diante de instrumentos internacionais obrigatórios, os Estados desrespeitam os direitos das pessoas migrantes, “em se tratando de migrantes motivados por causas ambientais, o tema se torna um tabu ainda maior nas políticas domésticas e internacionais”, comenta a doutora.
2100 está logo ali – e o mar também
Poucos interlocutores de pequenos países insulares e de algumas instituições da sociedade civil contribuem com pesquisas, debates e propostas para inserir o tema das migrações motivadas por causas ambientais em acordos do clima, que inclusive geram diversos debates sobre a eficácia de suas propostas para mitigar os efeitos da ação humana nas mudanças climáticas.
Rumo a soluções para o problema dos danos ambientais, Recife, uma cidade costeira, tornou-se a primeira cidade brasileira a reconhecer a emergência climática global e estabeleceu diretrizes para atingir emissões de carbono zero até 2050. Para Germani, “iniciativas como essa se farão necessárias para todas as outras cidades, visto a urgência em reduzir as taxas de gases do efeito estufa”. A oceanóloga completa: “quando falamos de previsões mais catastróficas, não nos referimos a séculos, 2100 está logo ali.”
Com tantos exemplos de impactos sociais e ambientais que vão além do aumento do nível dos oceanos como consequência do aquecimento global, é possível que uma solução para os desastres ambientais que enfrentamos passe por descarbonizar a economia o quanto antes, visto que a destruição ambiental já está anunciada. Não será necessário esperar um século para testemunhar os estragos de uma aceleração das mudanças climáticas.