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As novas Unidades de Conservação marinhas do Brasil: vitória ou derrota?

Por Caio Santana (caiosantana@usp.br) País ganha em áreas, mas perde em relação a fragilidade das modalidades de proteção   Na segunda quinzena de março de 2018 o governo brasileiro decretou a criação de importantes áreas marítimas. Trata-se das mais novas Unidades de Conservação (UCs), localizadas nos Arquipélagos de São Pedro e São Paulo (pertencente ao …

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Por Caio Santana (caiosantana@usp.br)

País ganha em áreas, mas perde em relação a fragilidade das modalidades de proteção

 

Na segunda quinzena de março de 2018 o governo brasileiro decretou a criação de importantes áreas marítimas. Trata-se das mais novas Unidades de Conservação (UCs), localizadas nos Arquipélagos de São Pedro e São Paulo (pertencente ao estado de Pernambuco) e de Trindade e Martim Vaz (território do estado do Espírito Santo).   

Com os decretos, o Brasil agora está em dia com parte da Meta 11 de Aichi, estabelecida em 2010 na cidade de Nagoya, na província japonesa de Aichi, durante a 10ª Conferência das Partes na Convenção da Diversidade Biológica.   

São duas Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e dois Monumentos Naturais (Monas) que juntos somam uma área de aproximadamente 90 milhões de hectares. Isso equivale a soma das áreas de todos os estados da Região Sudeste brasileira (ES, MG, RJ e SP), cerca de 920.000 km². Com isso, os dois conjuntos de ilhas mais isolados do Brasil — o Arquipélago de São Pedro e São Paulo está a 1010 km da costa nordeste brasileira, enquanto que Trindade e Martim Vaz está a 1000 km de distância de Vitória, município a qual pertence —, estão com o mínimo de proteção necessária.  

Mas tem um porém. Tudo poderia ter sido mais empolgante se fossem considerados os estudos de criação ao pé da letra, o que não ocorreu devido a modificações nos projetos após as consultas públicas realizadas nas cidades de Recife (PE) e Vitória (ES). Cientistas e ambientalistas lamentam a forma como foram tratados, em uma discussão que aparentemente representaria uma vitória para todos, se não fossem os bastidores e as jogadas políticas.   

 

Parte das ilhas do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Foto: Ronaldo Francini-Filho

 

O que foi criado   

 

De acordo com os decretos publicados no dia 20 de março, foram criadas a Área de Proteção Ambiental (APA) do Arquipélago de Trindade e Martim Vaz e o Monumento Natural (Mona) das Ilhas de Trindade e Martim Vaz, além da Área de Proteção Ambiental do Arquipélago de São Pedro e São Paulo e o Monumento Natural do Arquipélago de São Pedro e São Paulo.  

Mas o que faz um Mona e uma APA? Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA) “os monumentos naturais são unidades de proteção integral e teriam, entre outros objetivos, o de garantir sítios raros e recuperação dos recursos pesqueiros. Já as APAs são uma categoria menos restritiva, admitindo várias atividades sustentáveis nos seus limites”.

A APA é a categoria mais flexível que se tem e é de uso direto. Dentre as UCs, é a mais branda de todas. O Monumento Natural é uma UC de proteção integral que tem uma característica principal: proteger um sítio arqueológico ou uma beleza cênica. Não deve ser permitido mineração e demais usos muito agressivos.  

O pesquisador Ronaldo Francini-Filho diz que “APA é uma área de uso direto. Uma categoria que, teoricamente, qualquer coisa e tudo vai ser regulamentado por um plano de manejo. Historicamente no Brasil, não tem sido implementada. […] A gente tem precedente de Mona, no caso o de Cagarras (Ilhas situadas no Rio de Janeiro a 5 km da Praia de Ipanema), que permitem a pesca. Teoricamente são de proteção integral, mas temos exemplo dessas ilhas que estão desprotegidas [da pesca]. E os Monas das áreas de mar aberto, permitem a pesca [de subsistência] já em decreto”. E conclui que “em termos práticos, essas APAs e os Monas não servem para absolutamente nada para a conservação da biodiversidade”. Doutor pela USP, Francini é hoje docente da Universidade Federal da Paraíba e uma das principais figuras na defesa dos ambientes marinhos no Brasil.

 

Localização das novas UCs criadas. Fonte: ICMBio

 

Como ocorreram os estudos  

 

Os planos para criação dessas UCs estavam engavetados e isso causou uma movimentação de setores ambientalistas para a preservação de áreas marinhas. “Em final de 2015 e início de 2016, a Rede Pró UC e outras 4 organizações lançaram uma campanha para criação de áreas protegidas marinhas. Tentando chamar atenção de que o mundo inteiro estava conduzindo processos de criação de áreas marinhas, menos o Brasil. A nossa campanha era: ‘E o Brasil nada’.”, diz Angela Kuczach, bióloga formada pela Universidade Federal do Paraná, diretora executiva da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação e eleita em 2014 uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil, pela Revista Época.  

A bióloga afirma ainda que existiram “dois momentos de participação [das organizações] nessas áreas. O primeiro foi a questão da articulação política, estratégias para tentar chamar atenção do governo. E no segundo momento ajudar na mobilização que veio a criação do movimento #ÉaHoradoMar”.   

E o primeiro momento deu certo. Quando no final de 2017 e início de 2018 o Ministério do Meio Ambiente (MMA), juntamente com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foram levantadas em segundo plano as discussões para Estudos de Criação de UCs marinhas. Foram dois estudos: o da Cadeia Vitória-Trindade (CVT) e o do Arquipélago São Pedro e São Paulo (ASPSP).  

Alguns setores ligados ao meio já estavam alertas sobre a iniciação da elaboração dos estudos. É o caso do doutor e professor do Instituto Oceanográfico da USP (IOUSP), Alexander Turra: “Eu estava ciente do processo. Fui informado dele com certa antecedência em função dessa aproximação que o IOUSP tem com o MMA, cuja proximidade faz com que a gente atue de forma mais próxima, participando, apoiando e entendendo o que está acontecendo”.  

Nesse período de final de ano e ano novo, o MMA havia lançado edital para elaborar diagnósticos de criação dessas UCs. Com ressalva para a do Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP), que, segundo o cientista Ronaldo Francini-Filho, foi necessário ele mesmo fazer um trabalho voluntário, pois este não havia sido contemplado pelo edital do MMA.   

O processo de criação das UCs passa por um trabalho burocrático, em que precisa ser feito: um diagnóstico biológico, um diagnóstico socioeconômico das áreas e um diagnóstico fundiário (pessoas que moram na região). No caso de áreas marinhas, o diagnóstico fundiário não se aplica. Há o conhecimento tanto dos peixes quanto de organismos bentônicos, ou seja, organismos que estão no fundo do mar (algas, corais, esponjas, entre outros).   

 

Pesquisas anteriores foram cruciais para elaborar projetos. Foto cedida por: Sergio Ricardo Floeter

 

Alteração traçado das áreas

 

Mapa ideal das UCs da Cadeia Vitória-Trindade. Fonte: Estudo de Criação CVT

 

Mapa final das UCs do Arquipélago de Trindade e Martim vaz. Mapa cedido por: Sérgio Ricardo Floeter

 

Mapa final das UCs do ASPSP (Verde claro está a APA e verde escuro o Mona). Fonte: ICMBio

 

Tudo corria bem nas consultas públicas, sem nenhum setor mostrar oposição aos trabalhos elaborados pelos cientistas e que visariam maior proteção para as espécies da região. Ronaldo Francini-Filho, que conversou com o Laboratório a bordo do Navio Esperanza do Greenpeace na Foz do Rio Amazonas onde fazia pesquisas, disse que esteve em reunião com o secretário de Biodiversidade e com a equipe do MMA pouco tempo antes das últimas consultas públicas. “Dois dias antes […] fui informado que já havia a ideia de excluir parte das ilhas e que permitiriam a pesca dentro das áreas que teoricamente seria de proteção integral”, diz.  

Ainda segundo Ronaldo, estava claro para ele que “essa questão de manter a pesca no entorno das ilhas era para evitar conflitos com o Ministério da Defesa. Então essa não foi uma alteração”. E enfatiza que “essa era uma ideia desde o princípio e eles precisavam de documentos embasados pelos cientistas, [eles achavam] que poderiam usar os cientistas como marionetes”.  

A exclusão de áreas importantes frustrou bastante os pesquisadores. Foi perguntado ao pós-doutor e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Sergio Ricardo Floeter, como foi a recepção da notícia de não inclusão dessas áreas. Ele prontamente respondeu: “Foi um misto de decepção com tristeza. Porque a gente vem trabalhando há anos, e quando faz uma UC no entorno, com áreas gigantes, mas exclui grandes porções das próprias ilhas, que são os centros das atenções em termos de biodiversidade, fica complicado”.  

Apesar de toda a decepção, Kuczach salienta que “saímos de um cenário muito ruim de conservação marinha para um cenário um pouco melhor”. E fez um questionamento seguido de resposta: “Teve descontentamento? Teve. Mas eu considero que teve um avanço significativo. A gente ampliou muito a proteção oceânica, a proteção marinha do Brasil e agora temos que trabalhar através de outras ferramentas”.   

Turra ressalta que “isso causou consternação, mas quando você trabalha com gestão, você entende que o ótimo é inimigo do bom. A gente tem a perspectiva de que deu um passo para frente e agora a gente precisa dar outros. Então não foi necessariamente o ideal em termos biológicos, em termos ecológicos, mas talvez tenha sido o ideal possível de ser acordado com os diferentes interesses existentes hoje lá. E isso pode e vai mudar ao longo do tempo”.

 

A beleza cênica foi um dos critérios para criação das novas UCs. Foto cedida por: Sergio Ricardo Floeter

 

A pesca que ocorre nos limites dos arquipélagos   

 

No Estudo de Criação das UCs da Cadeia Trindade Vitória, há a citação da pesca recreacional feita por militares, que se tornou uma das principais atividades de lazer destes na Ilha de Trindade. Entretanto, fala-se sobre o prejuízo que essa pesca trouxe ao arquipélago — somada a pesca comercial desmedida e a pesca internacional ilegal —, como o impacto que as espécies exclusivas dali sofrem ao terem sua população diminuída por essa pescaria.  

De acordo com esse estudo, que foi encomendado pelo próprio MMA, a cota de peixe autorizada a ser pescada, limpa e levada ao continente varia de comandante para comandante, sendo reportadas de 15 kg até 100 kg, por militar. Considerando que 40 militares ficam na ilha, o número de pescado levado ao continente por temporada pode ser de 600 kg até 4 toneladas, quantidade comparada a dos pescadores da plataforma continental brasileira.  

 

Fonte: Estudo de Criação Cadeia Vitória-Trindade

 

Questionada sobre a pesca feita por militares e suas quantidades, a Marinha se limitou a dizer que “é inverídica a informação de que os militares estejam autorizados a levar 100 kg de peixe limpo da Ilha de Trindade”. Indagada ainda se a pesca recreacional foi um dos motivos que levou a alteração do projeto, teve-se a resposta: “Não, tendo em vista que os Ministérios da Defesa e do Meio Ambiente seguiram parâmetros técnicos e científicos, estabelecidos de comum acordo”.   

Há quem não seja tão crítico em relação a essa pesca, alegando a alimentação dos militares por meio da pesca de subsistência, a qual se mostra polêmica por poder ser realizada até mesmo nas áreas de proteção integral. Para o professor Alexander Turra “são poucas pessoas que ficam na ilha é claro que elas têm que comer. Peixe é uma coisa importante e lá tem muito peixe.Por que não pegar? Mas quanto de peixe vai se pegar? É pouco”.

Esse foi o grande ponto de discussão e que causou um tremor enorme e repentino negado pela Marinha — nas negociações. A suposta retirada de áreas importantes por conta da pesca ocorreu muito em cima da hora, a poucos dias do decreto, como já foi citado. Kuczach fala que “não temos a menor ideia de porque dois terços do mar em volta dos arquipélagos tem que estar envolvido nisso (na questão da pesca e soberania da Marinha). […] Tem a ver com a pesca”, finaliza.  

Francini-Filho relata que o peixe limpo e armazenado pelos militares ainda é vendido nas voltas para casa. “Eles capturam espécies ameaçadas e ainda comercializam esses peixes no continente. O único erro que eu tenho visto recorrentemente nas reportagens sobre esse assunto, é que quando toda essa história começou a cheirar mal (a pesca dos militares), o próprio MMA colocou toda a culpa na Marinha, dizendo que só a Marinha fez questão de manter as ilhas protegidas por conta da soberania nacional”. E conclui: “Mas esse foi um acordo feito também por pessoas da alta cúpula do MMA”.  

No ASPSP essa pesca acontece pelas próprias embarcações que levam os pesquisadores à Estação Científica. Francini conta, mais uma vez: “Os pescadores não têm interesse em manter essa pescaria lá. Eles cuidam dos pesquisadores, que muitas vezes são jovens e tem dificuldade com o mar. Eu já vi várias vezes pescadores medindo peixes, coletando amostras para os pesquisadores. Eles ajudam nos mergulhos, nas saídas com os botes. Então a pesca acontece de noite. Se esses pescadores tivessem salários dignos dentro do programa [científico, PROARQUIPÉLAGO], eles não iriam pescar, pois eles querem ter o recurso deles, sobreviver e não ter jornada dupla de trabalho”. O pesquisador completa: “Além de todo impacto que é causado no ambiente e da falta de bom senso do programa científico que promove a pesca lá, temos a questão da jornada dupla de trabalho dos pescadores que atuam nas embarcações”.

 

Estação científica localizada no Arquipélago de São Pedro e São Paulo: Foto: Ronaldo Francini-Filho

 

Seres únicos e exclusivos localmente

 

Ambos arquipélagos possuem uma quantidade de espécies endêmicas enorme. Seres endêmicos são aqueles que vivem e pertencem única e exclusivamente em determinada localidade e são muito presentes em  ilhas isoladas como as dos Arquipélagos de São Pedro e São Paulo e de Trindade e Martim Vaz.

Hoje são conhecidas em Trindade e Martim Vaz 200 espécies de plantas, sendo 15 endêmicas, como a samambaia gigante Cyathea copelandii. Já o ASPSP, menor e mais isolado arquipélago tropical do planeta, não possui vegetação perene.

A fauna é extremamente rica e importante nos dois arquipélagos. A Ilha de Trindade, por exemplo, é de grande significância para a ameaçada tartaruga verde, com suas pequenas praias constituindo o maior sítio reprodutivo da espécie no Brasil e a sétima maior colônia reprodutiva no Atlântico. Cerca de 270 espécies de peixes recifais são registradas na CVT, sendo 22 endêmicas do Brasil e outras 13 exclusivas da CVT. O arquipélago possui ao menos 76 tipos de insetos. Entre os endêmicos, destacam-se uma vespa caçadora de aranhas, quatro moluscos terrestres (sendo três desaparecidos há uma década) e um besouro (também sumido há uma década).

 

Fonte: Estudo de Criação UCs da CVT

 

A reprodução de aves também deve ser lembrada. No ASPSP, três espécies desovam lá e há presença esporádica de espécies vindas da Europa. Em Trindade e Martim Vaz se registram sete reproduções, sendo importantíssima a do grazina-de-trindade, ave marinha considerada ameaçada de extinção e que se reproduz apenas na Ilha da Trindade e nas Ilhas Round (Oceano Índico).

A exclusão de áreas de proteção integral põe em risco todas essas espécies. Ronaldo explica a importância dessas regiões e assume postura crítica: “Essas ilhas são verdadeiros laboratórios de evolução. A gente tem o isolamento geográfico como principal fator que leva ao surgimento de espécies em escala evolutiva. […] O surgimento de espécies endêmicas no Brasil ocorre nas ilhas. É uma tragédia deixar de fora exatamente áreas que contém essas espécies que são únicas desses ecossistemas. As APAs possuem espécies que ocorrem em todo o Atlântico. Deixou-se de proteger aquilo que era único e insubstituível, e criou-se uma área de ‘conservação’ permitindo a pesca, para regiões que ocorrem espécies cosmopolitas. As espécies endêmicas possuem genes únicos. E o potencial de perdê-las se perpetua, mesmo com todo esforço feito até hoje. Uma tragédia”.

 

Peixe Halichoeres rubrovirens fotografado nos arredores da ilha de Martim Vaz, ES, Brasil. Foto: Ronaldo Francini-Filho

 

Fonte: Estudo de criação UCs ASPSP

 

Aichi usada como artifício político?

 

Segundo o recorte das obrigações internacionais da Meta 11 de Aichi para a conservação marinha, assinadas em outubro de 2010 no Japão, “até 2020, pelo menos […] 10% de áreas marinhas e costeiras, especialmente áreas de especial importância para a biodiversidade e serviços ecossistêmicos, terão sido conservados por meio de sistemas de áreas protegidas geridas de maneira efetiva e equitativa, ecologicamente representativas e satisfatoriamente interligadas e por outras medidas espaciais de conservação, e integradas em paisagens terrestres e marinhas mais amplas”.  

A “corrida do ouro” (como bem definiu a bióloga Angela) para a conservação das áreas marinhas não acontece à toa. O prazo já está acabando e muitos países desejam exibir orgulhosamente suas enormes porcentagens nas convenções ambientais globais. O Brasil não fez diferente, apesar da demora. É importante ressaltar que devem ser protegidas áreas que pertencem a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), de cada nação, haja vista a existência das “águas internacionais”.

Tudo seria mais ecologicamente correto e plausível de se aplaudir se os países preservassem áreas de necessidade efetiva de proteção: com conflitos de explorações, com espécies endêmicas e ameaçadas e com paisagens únicas e raras. Acontece que grande parte dos países optaram pelo contrário: protegeram áreas sem conflitos, grandes áreas pelágicas (mar aberto) e até mesmo abrandaram as unidades de conservação.

 

Dados encontrados de países que já atingiram a Meta 11 de Aichi no recorte marinho que pede 10% de proteção do mar | Imagem: Caio Santana

 

Países como EUA, México e Chile apresentam números superiores aos exigidos na Meta 11 de Aichi. Assim como no Brasil, eles se assemelham por terem criado proteção em zonas pelágicas. “Isso ocorreu para cumprir as metas de Aichi, que o Brasil estava devendo ao mundo. Deveria proteger até 10%, e o Brasil tinha apenas 1,5%. Então, tivemos que fazer essas áreas gigantes para compensar. Só fazer APA não resolve muita coisa, pois dá para pescar”, explica Sergio Floeter.

“Esse modelo [de criar proteção em extensas áreas de mar aberto] que está sendo praticado no mundo inteiro é extremamente criticado pela comunidade científica, tentando atingir essas metas que tem um viés mais político que científico”, afirma Francini. Ronaldo acrescenta: “Nesse momento político que a gente está vivendo de ano eleitoral, o que importa é colocar números na mídia”. Cabe lembrar que à época da criação dessas UCs brasileiras, o então Ministro do Meio Ambiente era José Sarney Filho, que pediu exoneração do cargo no início de abril para disputar o Senado pelo estado do Maranhão nas eleições de outubro.

Apesar de tudo, o legado não deve ser deixado de lado. Angela Kuczach declara que “esse momento é o grande momento do mar. É a hora do mar mundial. É a hora em que a maior parte dos países estão realmente preocupados em criar essas áreas protegidas. Isso significa três coisas: oportunidade, menos conflitos e cumprir seu papel. Cumprir seu papel diante dos acordos firmados”.

 

Muitas ilhas oceânicas estão sendo preservadas no mundo. Foto cedida por: Sergio Ricardo Floeter

 

O desafio da fiscalização

 

Foi citado no início do texto o tamanho das UCs criadas. Questiona-se como ocorrerá a fiscalização de tudo isso, visto que a própria fiscalização de desobrigações de leis ambientais terrestres é difícil de ser feita. Tratam-se de áreas pelágicas, de mar aberto. São 90 milhões de hectares.  

Todavia, a Marinha do Brasil (MB) respondeu que já possui planos para a realização dessa difícil missão. “Para o monitoramento das áreas, a Marinha do Brasil dispõe do Sistema de Informações Sobre o Tráfego Marítimo para acompanhar, em forma gráfica e em tempo real, as embarcações nacionais e estrangeiras navegando no longo do curso, na cabotagem, na navegação interior e no apoio marítimo”.  

Além disso, a MB informou que realiza ações regulares com os Navios-Patrulha na região (não especificada) e, quando necessário, também faz abordagem, inspeção e apreensão de embarcações irregulares no mar territorial e na ZEE do Brasil, com o objetivo de proteger “nossas riquezas e o nosso ecossistema”.  

Porém, Francini-Filho dá sua opinião sobre a ocorrência das futuras fiscalizações e discorda: “O argumento do governo [e MB] é que eles vão monitorar isso via satélite. Mas para nós que conhecemos a realidade do mar, a forma como acontece, a gente sabe que isso é uma piada de mal gosto”.

“A fiscalização vai se efetivar sim. Isso não depende do mapa. Depende de ter equipe, recurso e vontade”, opina a Diretora Executiva da Rede Pró UC, que continua: “O que fica complicado é o que pode e o que não pode. Se o plano de manejo não for muito claro em dizer se pode pescar, como, quando e porque a pesca pode ser feita dentro de uma APA [e Mona], o risco que temos é a fragilidade da categoria. E não da fiscalização”. E completa dizendo que “não é o mapa [os 90 milhões de hectares] que definirá a fiscalização, e sim os recursos para tal”.

 

Por serem os locais mais remotos do Brasil, a fiscalização será um desafio. Foto: João Luiz Gasparini

 

Apesar dos pesares

 

Foi extremamente satisfatória toda movimentação causada para que fossem criadas essas UCs, mesmo com todos os intermédios que foram citados acimas. A comunidade científica, acadêmica, ambientalistas, artistas, esportistas, sociedade civil, gente de fora do Brasil, estão todos unidos na luta pela preservação ambiental. Apesar do que ocorreu e do silenciamento de muitos sobre os fatos (segundo Ronaldo Francini), não se deve deixar de lado o legado que esses dois arquipélagos deixaram para todos.

Angela Kuczach resume: “O ótimo não pode ser inimigo do bom nesse cenário que a gente está, mundial, de muita destruição do planeta. Eu considero que é melhor que nada. Demos passos importantes, colocamos no mapa do Brasil essas áreas que a maioria dos brasileiros nem sabia que existia. […] Só Trindade e Martim Vaz é quase três vezes a maior UC de proteção integral terrestre, que é o Parque Nacional de Tumucumaque localizada nos estados do Amapá e Pará. A gente não pode desconsiderar e dizer que não é bom. Não é o ótimo que a gente queria. Mas é um avanço e tanto”.

Outros demonstram ainda um pouco de frustração, como Sergio Floeter, que se disse “parcialmente satisfeito”. Em seguida se justifica: “Eu achei bom ter a iniciativa de criar, mas como foi feito teve uma série de problemas. Então estou só metade satisfeito. A parte boa foi toda movimentação que teve”, termina.

Houve ainda o lembrete de que a Marinha do Brasil trabalha como aliada dos pesquisadores, por parte de Alexander Turra. “A gente fez esse apoio e é importante que ele seja feito. Mas tem um momento que vai a um nível em que esse diálogo para de existir (que se deu quando chegou na Casa Civil). Temos que entender nesses processos que não é a pessoa ser resignada nem conformada. Hoje é melhor ter essas UCs ou não ter? Eu tenho convicção que é melhor ter. […]Ela [a Marinha] tem que ser vista como aliada porque ela é a Marinha do Brasil. Temos que trabalhar juntos e entender nossas diferenças, as semelhanças e tentar caminhar em um caminho que leve a sustentabilidade do uso desses recursos.”

A Marinha do Brasil reforça seu papel de parceria e de resguardar a preservação ambiental. Cita a “Amazônia Azul”, que segundo a mesma é um conceito político-estratégico que a Marinha vem consolidado, com o propósito de inserir os espaços oceânicos e ribeirinhos em posição decisiva sobre os destinos do povo brasileiro e na dinâmica das relações internacionais do país. “Este conceito abarca a preocupação que a MB sempre atribuiu à necessidade inquestionável de preservação e uso sustentável do meio ambiente”, diz.  

A MB destaca ainda que “em um cenário mais amplo, a consolidação do conceito ‘Amazônia Azul’ reforça a ideia de fomento do emprego dos oceanos e das hidrovias em prol do desenvolvimento nacional, mediante a implementação de políticas públicas que possam ampliar o atendimento dos justos anseios de prosperidade da sociedade brasileira. Assim como, sempre que necessário, defender a soberania nacional nessas áreas”.

Dos entrevistados, Ronaldo Bastos Francini-Filho foi o único que não mediu suas palavras para demonstrar o quão desagradado ficou, quando perguntado se mesmo com as mudanças, ele estava satisfeito com a criação das UCs: “Não, nem um pouco. Eu fiquei altamente insatisfeito. Foi uma frustração e agora o que resta é primeiro escrever o quanto de retrocesso que isso gera, em termos científicos. E depois erguer a cabeça e continuar lutando para que a gente tenha as ilhas protegidas de fato”.

Ele conta ainda que está em curso a elaboração de artigos científicos que dirão “claramente que isso foi uma jogada política e que abre precedentes perigosos”. Esses precedentes se dão pelo fato de ter uma área de proteção integral (Mona) que permite a pesca em decreto e que isso pode servir para que criações futuras de parques nacionais, reservas ecológicas e outros meios protegidos integralmente, tenham pesca. Outro fator que ele levantará será o fato do cumprimento da Meta 11 de Aichi dificultar a criação de novas UCs, citando que alguns estados brasileiros sequer tem proteção marinha, como a Paraíba.

Definitivamente, 2018 foi um ano que começou forte e que o atual governo levará como troféu a importante ação que foi a proteção dessas áreas marinhas. Resta saber como eles tratarão esse feito. Realmente chegou a hora do mar mundial e o desejo de todos é que a preservação se faça efetiva e que o Brasil não seja apenas um exemplo nos números, nos papéis e nos encontros internacionais.Que a nação brasileira saiba mostrar respeito com o privilégio da biodiversidade única que que ela detém.

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