Em Barbie (2023) existem dois interesses em jogo, duas forças que ditam a progressão dessa história, não só nos 114 minutos de filme, mas também em toda sua divulgação, do momento em que foi anunciado, até agora. A primeira é a Mattel, a empresa responsável pela criação e consequente popularização da boneca mais famosa do mundo. A segunda é Greta Gerwig, a diretora que acolheu o desafio de trazer à vida um filme com uma premissa tão arriscada.
O legado da boneca é controverso e nem Greta nem a Mattel ignoram isso. A cineasta usa essa personagem complexa para fazer uma reflexão sobre a figura feminina, enquanto que a empresa aceita ser alvo de algumas piadas que, na prática, não a ferem, porque sabe que, no fim do dia, Barbie irá ressignificar a figura do brinquedo para as próximas gerações e render muito dinheiro em publicidade e incontáveis produtos. Vitória da cineasta de arte, vitória do conglomerado capitalista e vitória do público, o qual ganha um longa que, apesar de, em sua origem, ter sido pensado para vender, tem um coração pulsante e muito a dizer, ou, pelo menos, muitas ótimas piadas a contar.
Barbie (Margot Robbie) vive uma utopia na Barbielândia, um lugar onde as mulheres – as Barbies – comandam e todo dia é igualmente feliz. Um dia, no entanto e inexplicavelmente, seu paraíso deixa de ser tão perfeito assim. Para entender e consertar essas mudanças, Barbie deve visitar o mundo real e encontrar a humana a quem ela está conectada. A história é simples, mas Gerwig, que, além de dirigir, roteirizou o longa, em parceria com seu marido, o também diretor Noah Baumbach, se utiliza desse mote para brincar e refletir sobre o legado da boneca – as Barbies pensam ser exemplos de empoderamento feminino, mas a protagonista se choca ao perceber que não é bem assim.
Barbie é um filme camp, isto é, ele é propositalmente exagerado. Tem de tudo: números musicais elaborados, comentários metalinguísticos, referências ácidas a filmes da cultura pop, sátiras escancaradas e, o que chama atenção desde o início de sua divulgação, muito rosa. A ambientação da Barbielândia é de encher os olhos, mérito do cuidado aos detalhes da direção de arte. A referência visual à 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), o clássico cult de Stanley Kubrick, na primeira cena – vista no trailer, inclusive – é uma síntese do que é Barbie. Esse é um filme que sabe o contexto em que se encontra, de uma diretora que conhece quem veio antes e sabe brincar com isso da melhor forma possível. Além de 2001, entre outros grandes filmes referenciados estão Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952) e Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, 1967).
Apesar de parecer, Barbie não é um salto muito longe dos outros filmes de Greta Gerwig. A diretora do coming of age Lady Bird: A Hora de Voar (Lady Bird, 2017) e do drama de época Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019) também traz suas íntimas reflexões a esse longa tão colorido. Por vezes, o retrato da natureza feminina e do existencialismo humano lembra aquele de Frances Ha (2012), outro longa co-escrito pela dupla Gerwig-Baumbach, mas, dessa vez, dirigido pelo diretor. Cuidado, talvez você chore em um filme da Barbie.
No entanto, é quando Barbie abandona o sutil nos temas emocionais que ele quase perde a força. Existe um aspecto feminista no longa, claro. Esse é, sem dúvida, um filme sobre mulheres, produzido por mulheres e para mulheres. E que bom. Mas ao abandonar o sutil, o longa escancara sua superficialidade, como na cena em que Gloria (America Ferrera) faz um grande discurso sobre o que significa “ser mulher”. É interessante, porém, ver como o filme quase faz uma autocrítica quanto a isso através de suas piadas.
Margot Robbie está adorável no papel da Barbie-título, mas é Ryan Gosling quem rouba a cena com seu Ken ingênuo e domesticado. America Ferrera é uma ótima adição como Gloria, uma humana em crise. A população de Kens e Barbies contagia. A narração de Helen Mirren é luxuosa e metalinguística na medida certa. Allan (Michael Cera) é uma divertida diferenciação das outras figuras masculinas do filme e Midge (Emerald Fennell), a boneca grávida que foi descontinuada, cumpre o que se propõe em seu silêncio.
Barbie, o filme, assim como Barbie, a boneca, pode ser empoderador para uns e apenas divertido para outros. De qualquer forma, é uma experiência única. Não é um filme perfeito – algumas piadas lembram esquetes de programas de humor e o núcleo dos executivos da Mattel poderia ser melhor aproveitado – mas esses detalhes se perdem na inventividade e coragem do longa. Daqui a alguns anos, quando toda a repercussão tiver cessado, todos ainda vão querer dizer que se vestiram de rosa e foram ao cinema para assistir ao filme da Barbie.
O filme já está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação/Warner Bros. Pictures