Por Renato Navarro (renatonavarro@usp.br)
Discriminados, mal vistos por grande parte da população e testemunhas da romantização e mercantilização de seus hábitos e cultura, os ciganos brasileiros são cercados por estereótipos e preconceitos construídos pela sociedade em seu entorno.
O primeiro sinal disso está na generalização, decorrente da falta de conhecimento sobre a cultura cigana: Este povo é extremamente complexo, constituído por diversos grupos e subgrupos oriundos de diferentes localidades. A religião ou crença dos ciganos também varia de família para família, de pessoa para pessoa, tanto quanto a dos não-ciganos. Até mesmo seu idioma, o romani, apresenta variações e paradialetos em todo o território nacional.
Outra amostra de implicância está na própria denominação do grupo: A palavra “cigano” surgiu devido à ideia de que este povo teria como origem o Egito. Porém, com o passar do tempo o termo adquiriu carga pejorativa, sendo associado a trapaceiros, enganadores nos negócios e boêmios. Isso motivou a adoção dos termos romani (que significa “homens” no idioma homônimo) e romá para o desígnio da comunidade a partir do Primeiro Congresso Romani, ocorrido em 1971 na cidade de Orpington, Inglaterra.
A língua, aliás, é um elemento importante para entender as origens dos romá. Por não cultivarem a tradição escrita e terem passado por grandes migrações ao longo da história, registros de seu passado são extremamente escassos. No entanto, as semelhanças entre as línguas romani e o hindi (língua indo-ariana derivada do sânscrito) indicam que os romani viviam ao norte da Índia antes de sua primeira diáspora.
De acordo com o antropólogo Nicolas Ramanush Leite, presidente da Embaixada Cigana do Brasil, os romani constituíam a casta pariah, a mais baixa da rígida hierarquia social indiana e considerada impura pelos hindus. Após a invasão do país pelo imperador mongol Tamerlão no ano de 1398, os pariah (termo que originou a palavra “pária”, em português) não aceitaram serem subjugados e deram início ao primeiro êxodo pela Europa, Leste Indiano, Oriente Médio e Norte da África.
Mas esta foi apenas a primeira de muitas situações a afligir os romá: Entre o fim do século XIV e a metade do século XIX, a etnia foi escravizada pela nobreza, pelo Estado e por monastérios cristãos ortodoxos da Romênia. Além disso, eles sofreram com políticas higienistas em diversos países europeus aos quais chegaram, países esses cujos governos visavam a extinção da etnia através do casamento entre romanis e não-romanis, proibição de seu idioma, entre outras práticas de xenofobia e racismo que persistem até os dias de hoje. A Inquisição promovida pela Igreja Católica também os perseguiu, desta vez utilizando o pretexto de suposta prática de bruxaria pelas mulheres e os obrigando a fugir. Da mesma forma, o terrível holocausto romani (denominado Porrajmos) provocou uma nova dispersão dos romani pelo mundo na tentativa de fuga do extermínio que Hitler e os nazistas promoveram: mais de 500 mil pessoas (metade da população romani europeia da época) morreram por meio de fuzilamentos, câmaras de gás, inanição, trabalho compulsório em campos de concentração e foram submetidas a cruéis experimentos pseudocientíficos.
Dentre os países que adotaram políticas de punição aos romani estava Portugal. Por não conseguir integrar este povo à sociedade portuguesa (ou seja, por enfrentar resistência na tentativa de descaracterizá-los e dissolver sua cultura característica), a Coroa decidiu por exilá-los às suas colônias no Brasil e na África, povoando as localidades então ocupadas predominantemente por nativos. As primeiras informações da chegada dos romá ao Brasil datam da metade do século XVI: Em 1549 o padre jesuíta Manoel da Nóbrega relata, em carta para a Companhia de Jesus, mulheres que andam em trajes de ciganas. Em 1562, João Gliciano teria vindo da Grécia com sua mulher e 14 filhos. No entanto, o registro mais conhecido e mencionado academicamente é de 1574, quando o casal João Torres e Angelina chega de navio entre diversos degredados.
Um Brasil de ciganos
Conforme dito anteriormente, os romani são uma comunidade heterogênea cujos componentes têm em comum uma ancestralidade linguística. Portanto, relatar apenas a data em que eles chegaram ao Brasil seria vago e impreciso. Ramanush explica que “quando a mídia se refere aos ciganos, fazendo uma pergunta como essa [quando os ciganos chegaram ao Brasil], é necessário acrescentar na pergunta o nome do grupo (…) porque, na realidade, no Brasil existem três grupos, o Rom, o Sinti e o Calon, e cada um chegou em uma época e em uma condição.”
Diferentemente dos dois casos citados previamente, que não apresentam informações sobre o subgrupo ao qual pertenceriam os romani relatados, é sabido que João Torres e Angelina foram os primeiros calons a chegar no país. E ainda mais calons originários da Península Ibérica desembarcariam no Brasil após a imposição da lei de degredo por Portugal no fim do século XVI. No final do século seguinte, um novo decreto determinou que os degredados fossem destinados à Bahia, Pernambuco, Maranhão, Paraíba e Rio de Janeiro, de onde acabaram migrando para São Paulo, conforme registros do século XVIII. Por sua vez, os roms (habitantes da Grécia, Turquia e Romênia) iniciaram sua vinda à América na segunda metade do século XIX, especialmente após a abolição da escravidão romena. No entanto, o fluxo em maior quantidade se deu como refugiados da 1ª Guerra Mundial, a partir de 1914, quando eles chegaram principalmente à região Sudeste brasileira. Os sintis, grupo menos numeroso no território brasileiro, emigraram para o Brasil por meio de poucas famílias sobreviventes do porrajmos, vindos principalmente da Alemanha e da França.
Devido à escassez e imprecisão de dados oficiais, decorrentes de possíveis falhas na metodologia de pesquisa do governo e da falta de atenção que essa minoria sofreu por muito tempo pelo Estado, é difícil saber exatamente a quantidade de romanis no Brasil nos dias de hoje. Por meio do cruzamento de informações fornecidas pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) de 2011 (promovida pelo IBGE), por levantamento realizado pela Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo trabalho do GT-Ciganos (grupo criado para acompanhar mudanças implementadas na educação escolar de populações itinerantes, especialmente ciganos) em 2014, estima-se que atualmente haja cerca de 800 mil romanis no país, distribuídos por 419 municípios em 21 estados do país. Para maior precisão nas próximas estimativas, o governo federal pretende incluir os “ciganos” como uma categoria demográfica a parte no próximo censo populacional, em 2020.
No universo dos romá brasileiros a quantidade de indivíduos varia muito de grupo para grupo: segundo Ramanush, cerca de 500 mil pessoas pertencem aos calons, enquanto aproximadamente 300 mil seriam roms. Já os sintis, constituintes de uma porcentagem muito pequena do população total, dificilmente passam de cem famílias.
Um grupo heterogêneo
Além das circunstâncias de imigração e número de componentes, os três grupos possuem diversas distinções entre si. Roms e sintis costumam ser microempreendedores ou profissionais liberais, são sedentários e mais integrados à sociedade que os calon. Já estes, em grande parte, são comerciantes de itens como ferramentas e enxovais que vivem em tendas de lona, tanto em acampamentos fixos próximo à estações ferroviárias (que facilitam o deslocamento e são centros de grande circulação de pessoas) quanto rodando Brasil afora em função de seu comércio. Mesmo não sendo a maioria do grupo, já há calons adaptados e presentes em âmbitos importantes da sociedade, como na política e no meio acadêmico.
Nota-se que, independente da área de atuação, os romani prezam pela independência e liberdade até em seu trabalho. Como aponta Elisa Costa, presidenta da AMSK/Brasil (Associação Internacional Maylê Sara Kalí Brasil), organização sem fins lucrativos que atua na defesa dos direitos humanos para o povo romani, trata-se de um reflexo da postura característica desse povo, de “não bater continência, não se dobrar”. Outra tradição em comum entre os três grupos é a prática de não carregar consigo memórias, sejam elas escritas, fotográficas ou em forma de objetos. Um exemplo disso é dona Rosa, de 67 anos, calon que mora com o filho em um acampamento em Itaquaquecetuba. Dona Rosa ficou viúva há 29 anos, quando ela, seu falecido marido e seu filho moravam no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ela conta que, após o ocorrido, todos os pertences do morto foram deixados para trás e ela se mudou com seu filho para Minas Gerais.
Dona Rosa diz que não há meios de comprar uma casa com o dinheiro que ganham, apesar dessa ser sua vontade. O mesmo é afirmado por Cláudio, 37 anos, do Itaim Paulista, que está há 15 anos no acampamento com a esposa e quatro filhos. O vendedor de roupas de cama, mesa e banho afirma que a quantia que recebe não é o bastante para uma habitação convencional.
Nem sempre morar em tendas se trata de uma opção pela manutenção de tradições. Muitas vezes é uma questão de necessidade, a única forma encontrada de se abrigar de acordo com a realidade financeira das famílias calons.
Os acampamentos visitados nas duas cidades não contam com rede de saneamento básico ou energia elétrica. Segundo os moradores, a água e a eletricidade vêm de instalações irregulares, os chamados “gatos”, e quando precisam ir ao banheiro costumam utilizar o mato presente nos terrenos onde se instalam, geralmente baldios ou não cuidados por seus donos.
Apesar da diferença de seus estilos de vida, não há qualquer espécie de inimizade ou hostilidade entre os grupos. De acordo com Elisa Costa, além de ser um povo pacífico, os romá não fazem essa distinção. Ao se cumprimentarem pode até haver referência ao grupo ou nação (subgrupo) que as pessoas em questão compõem, mas como uma forma de tratamento e reconhecimento da identidade do outro, e não com viés diferenciativo.
Segundo ela, os brasileiros em geral tem uma tradição de compartimentalizar os romá ao invés de abordá-los como uno, o que seria o ideal na estruturação da luta desta etnia por direitos e visibilidade.
Essa luta se desenrola em duas frentes: contra a ignorância e a negligência governamental.
O primeiro se manifesta de diversas formas, como na ênfase dada pela mídia sobre determinado indivíduo ser “cigano” ao noticiar fatos negativos, como ocorrências de crimes, atribuindo uma carga negativa a todo o grupo. Conforme aponta o professor Ramanush, diferentemente do que ocorre em casos envolvendo outras minorias étnicas, “quando um cigano estiver envolvido em um problema social que eventualmente gere uma notícia, via de regra ele perde o nome”. Essa generalização frente a população é preocupante, pois “não é feita pelo zé da esquina [sic], nem pelo quitandeiro, mas pelos órgãos de divulgação e pela mídia.”
Os meios de comunicação também são nocivos ao retratar estereótipos preconceituosos e romantizar o comportamento dos romani: uma vida de festas, pessoas sempre belas e sedutoras, trapaceiros que vagam de lugar em lugar se aproveitando da boa vontade alheia para dar golpes ou atrair jovens inocentes, místicas e quiromantes misteriosas, entre outros. Tudo isso impacta tanto nas vidas de quem é integrado à sociedade, que acaba tendo que esconder suas origens temendo a discriminação, quanto no dia-a-dia de quem vive à margem da sociedade e acaba ainda mais rechaçado por ela.
Elisa Costa observa também que a falta de conhecimento sobre a cultura romani abre espaço para “falsos ciganos”: pessoas que tiram proveito financeiro da curiosidade geral por meio da venda de roupas e chás supostamente típicos, adivinhos que se dizem ciganos para supostamente ler o futuro de terceiros, venda de fantasias caricatas e até a promoção de “festas ciganas”, que não têm relação alguma com a cultura romani. Segundo ela, “os ciganos são identificados pelos detalhes e costumes que adotam no dia-a-dia, e não por suas roupas e pertences”.
Ao longo da história brasileira, não houveram políticas públicas contundentes que promovessem a equidade e integração do povo romá à sociedade, mas que também respeitasse suas particularidades culturais. Isto colaborou para a marginalização da etnia — especialmente dos calons, cujo estilo de vida itinerante não era acompanhado por programas governamentais, o que dificultava o acesso deles a direitos básicos do cidadão como a documentação, saúde e educação adequados.
Na linha de frente contra as barreiras que afetam os romani estão organizações sem fins lucrativos como a Embaixada Cigana e a AMSK, parte de redes internacionais formadas por instituições que almejam a preservação cultural e a integração social dos romá ao redor do mundo. A Embaixada tem como objetivo o resgate, manutenção e valorização da história e tradições desse povo como forma de defesa de sua própria identidade. Para isso, eles têm realizado uma série de projetos e ações, especialmente junto aos calons, como oficinas de música e dança, atividades envolvendo histórias e lendas para estimular o aprendizado e uso do chib calon (paradialeto do romani) e orientações básicas de higiene e obtenção de documentação. A organização também abrange os não-ciganos em suas ações, utilizando de palestras, feiras e seminários, além da disponibilização de documentos, vídeos e áudios em seu site, para a difusão da cultura romá sem intermediários que a distorçam, contribuindo assim para a redução do preconceito e estigmatização.
A AMSK, por sua vez, age a nível nacional com o levantamento, sistematização e divulgação de informações sobre os romani que contribuam na elaboração e estruturação de políticas públicas voltadas para a afirmação e garantia dos direitos destes. Para isso que isso ocorra, a associação atua junto a agentes públicos, como a Comissão da Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF) do Ministério Público, departamentos do Ministério e o SEPPIR. Por meio de grupos de trabalho, publicação de cartilhas e livros, organização de eventos, oficinas e audiências públicas, a AMSK luta para que o Estado se atente para temas como a saúde da comunidade, seus idosos e suas mulheres.
Bravíssimo! Fortemente agradecida por toda essa contribuição de conhecimento. Abraços!