Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Cães: relações de afetos e proveitos

Dizemos: “O cachorro é o melhor amigo do homem”, mas, se os cães pudessem falar, será que diriam que representamos o mesmo para eles?

Os aspectos que envolvem a relação entre o homem e os cachorros são variados. Data-se que, entre 33 mil e 14 mil anos atrás esse contato já era existente. Como descendentes de lobos, os cães domesticados buscavam por comida nas habitações humanas. Atualmente, a interação do humano com os animais mudou e esses animais passaram a desempenhar papéis cada vez mais significativos. Assim, olhar para as formas de afeto que desenvolvemos e para o modo como tratamos os animais passa a ser também um exercício autorreflexivo, que acaba nos mostrando certos comportamentos humanos que revelam muito sobre a sociedade na qual vivemos.

 

Por que temos cachorros?

Essa é uma pergunta cujas respostas podem ser das mais diversas. Miriam da Silva Sobrinho, Goiânia/GO, conta que ter um cachorro não foi algo planejado. Para ela, Bobby, como nomeou o cão, apareceu em sua vida quando a cachorra de uma vizinha teve filhotes e uma amiga foi mostrar eles para Miriam, que decidiu então adotar um. “Foi amor à primeira vista”, conta ela. 

Para Miriam, ter um cão foi algo essencial em sua vida. Ela lembra que era muito estressada por conta do trabalho e que a chegada de Bobby a fez ser uma pessoa mais alegre. A história de Leiliane Carvalho, Viamão/RS, com os cachorros começou na infância. “Desde que me conheço por gente sempre tive um cachorrinho de estimação. Na infância, eles eram minhas companhias durante as brincadeiras, as refeições, eram os amiguinhos que me esperavam voltar da escola no portão”, relata. Atualmente, Leiliane tem três cachorros: Biscoito — que foi um presente de sua avó —, Coockie e Murphy — que foram recolhidos da rua.

A psicóloga clínica, Helenara Sironi de Moraes, explica que os animais sempre fizeram parte de nossas vidas. Segundo ela, à medida que as relações foram evoluindo, eles passaram a ocupar um lugar cada vez mais importante no imaginário humano, ao fornecer acolhimento e certa sustentação psíquica.

 

Qual é o lugar dos animais na sociedade?

Eles estão por toda parte, dentro ou fora de nossas casas ou nas telas do cinema, por exemplo. Em cada lugar, eles ocupam uma função e são tratados de formas diferentes. Em entrevista, Kênia Mara Gaedtke, doutora em Sociologia Política, nos contou mais sobre a relação entre humanos e animais. Para ela, não é possível dizer que façamos parte de um sociedade unicamente humana. Sobre essa forma de interação, Gaedtke coloca que “a relação da espécie humana com as demais espécies animais é, historicamente, permeada por um senso de utilidade”. É partindo desse senso de utilidade que cada animal é encaixado em seu respectivo lugar. 

 

Brasil e o mercado pet 

Quando falamos de animais de estimação no Brasil, olhar para o mercado pet torna-se uma etapa essencial. Segundo dados do IPB (Instituto Pet Brasil), em 2019, a indústria pet — serviços (veterinário e gerais) e venda de animais — faturou 35,4 bilhões de reais, um aumento de 3% em relação ao ano anterior. No cenário mundial, o faturamento do setor foi de 131,1 bilhões de dólares. Desse total, 4,7% correspondem ao Brasil, que passou a ocupar a 4ª colocação, atrás apenas dos EUA (40,1%), China (7,2%) e Reino Unido (4,7%), conforme as informações da ABINPET (Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação).

Sobre isso, a socióloga Gaedtke reitera a visão utilitarista dos animais, a qual não está restrita aos de estimação. Ela nos conta que embora haja a questão do afeto, da simbologia e da espiritualidade, por exemplo, “a perspectiva de utilidade de animais tem se intensificado, vide a indústria mundial da carne que se complexificou e se consolidou ao longo do século 20”. 

Dos 141,6 milhões de pets no Brasil — entre cães, gatos, peixes, répteis, pequenos mamíferos e outros —, 55,1 milhões são cães, de acordo com os dados mais recentes da ABINPET (2019). Ao olhar para esse nicho enquanto mercadoria é possível notar algumas características relevantes sobre nossa interação com os animais de estimação.

Sim, os cachorros se encontram em situação de mercadoria,“filhotes em gaiolas de pet shops com preços afixados são mercadorias, não há como negar isso, por mais que se queira desvincular essas ideias”, afirma Kênia. Para ela, trocar o termo “dono” ou “proprietário” por “responsável pelo animal” é um exemplo da busca por essa desassociação, “mas a mudança dos termos não garante por si só a mudança nessa relação mercadológica”, completa. Essa dinâmica, que permite a análise da situação dos cachorros como produto, vai além da realização da compra.

Anúncio de venda de cachorro
Anúncio de venda de cachorro [Imagem: Reprodução/Facebook]

Cães: status e ostentação

Grande parte dos proprietários de pets buscam oferecer as condições necessárias para que seus animais se desenvolvam de maneira saudável. Porém, certas condutas humanas mostram que, mais do que satisfazer o animal, fornecer e consumir os mais variados produtos e serviços para pets também é a busca pela satisfação e autoafirmação do próprio dono. Kênia explica que “um cachorro tosado, com laços bem colocados e com odor de perfume demonstra ter recebido recentemente os cuidados de um profissional. Isso é um elemento de distinção, um atestado de que o seu humano consumiu do mercado pet”.

Segundo o IPB 2019, o gasto mensal médio com cães é de 338,76 reais. Esse valor varia de acordo com o porte do animal, podendo chegar a 422,59 reais no caso de cães grandes, de 26 kg a 45 kg. Há despesas que são necessárias para a saúde e bem-estar do animal, por outro lado a possibilidade de se alcançar certo status, isto é, um determinado prestígio social através desses animais de estimação faz com que esses gastos sejam maiores. 

Laços, colares e as mais variadas peças de roupas. Por quais motivos os donos colocam esses acessórios em seus cães? Kênia explica que isso está “bastante relacionado com o conceito de distinção proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu: há uma busca, deliberada ou não, de distinguir aquele indivíduo dos demais”. A antropomorfização dos cachorros — tratar e conceber os animais tal como humanos, atribuindo-lhes nossas características e comportamentos — também é uma forma de explicar essa ação. 

Talvez um dos exemplos mais claros de como se dá o prestígio social por meio dos cães sejam as exposições. No Brasil, as competições de cães são realizadas pelos mais de 80 clubes associados à CBKC (Confederação Brasileira de Cinofilia). O objetivo da confederação é promover a criação e o aprimoramento de cães de raça pura. A instituição é responsável também pela emissão de pedigrees — concedido aos filhotes dos cães que já possuem o registro de raça pura. Nas competições, os árbitros avaliam o temperamento, condicionamento e as características físicas do cão. Caso o animal possua algum atributo que o descaracterize do padrão de sua raça, ele é desclassificado da competição.

Exposição de cães
Exposição das Américas e Caribe realizada pela CBKC em 2018 [Imagem: Reprodução/Facebook]
Exposição de cães
Exposição das Américas e Caribe realizada pela CBKC em 2018 [Imagem: Reprodução/Facebook]
Exposição de cães
Exposição das Américas e Caribe realizada pela CBKC em 2018 [Imagem: Reprodução/Facebook]
Exposição de cães
Exposição das Américas e Caribe realizada pela CBKC em 2018 [Imagem: Reprodução/Facebook]
Exposição de cães
Exposição das Américas e Caribe realizada pela CBKC em 2018 [Imagem: Reprodução/Facebook]

Nessas competições, a valorização das raças dos cães fica clara. Fora delas, o prestígio desses cães permanece. “Se para algumas pessoas o animal tem um lugar, uma marca para além de uma posição de objeto, reconhecido a partir de suas necessidades e de sua diferença, para outros sujeitos ele é mero objeto, podendo sim representar certo status social”, diz Helenara. Segundo ela, isso pode ser verificado na escolha por determinadas raças de cães que, por vezes, têm a sua genética alterada em laboratório para atender a um determinado poder de consumo. Como mostrado na reportagem visual da Jornalismo Júnior: Sob Medida.

E é aí que a exibição dos animais ganha significado, seja nas ruas, com os melhores cuidados, ou nas redes sociais, ostentar que o mercado pet foi consumido, assim como explica Helenara, pode sugerir uma forma de ser aceito em certos espaços sociais. A análise da psicóloga não se restringe aos cães de raça, para ela, da mesma forma que a compra dos cães de raça pode atribuir certo status social, a adoção também pode ser uma forma utilizada para ser bem visto, o que leva o dono a também exibir seu animal.

 

Petshismo

Petshismo: “termo cunhado pelo etnólogo francês Jean-Pierre Digard para descrever uma espécie de fetiche que as sociedades urbanas contemporâneas têm com os animais de estimação”, nos explica Kênia Gaedtke. Ela nos conta que esse conceito ajuda a compreender condutas humanas contraditórias, pois esse fetiche é composto por duas faces: a da adoração e do consumismo de produtos e serviços para o bem-estar do animal e também a faceta inversa, caracterizada pelo abandono ou maltrato.

Lei 9.605/98 artigo 32:

“Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa”.

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), dos 30 milhões de animais abandonados nas ruas do Brasil, entre cães e gatos, 20 milhões são cães. Embora haja penalidade para este crime, essa rejeição ainda é uma realidade que marca mais um traço de nossa interação com os animais. A história de dois dos três cães de Leiliane, Murphy e Coockie, é marcada pelo abandono. Murphy foi encontrado dentro de uma caixa de papelão e deveria ter cerca de 30 dias de vida. Ela conta que resolveu levá-lo pois sua mãe disse que ele poderia ser uma companhia para o outro filhote que tinha ganhado, Biscoito. 

Sobre Cookie, Leiliane diz que o encontrou em uma área rural de Viamão/RS. “Apareceu um cachorrinho magro e muito assustado que de longe nos observava. Ofereci a ele um prato com comida. Todo desconfiado e tremendo muito ele foi até o prato, comeu e saiu, mas ficou rondando a casa”, relata. Quando foi embora do lugar, esse mesmo cão começou a correr atrás do carro. Após conversar com seus pais, resolveu levar o animal para casa: “era muito triste ver aquela situação”, diz ela. Um dia após tirá-lo das ruas, Leiliane levou seu novo cão ao veterinário para tratá-lo e recuperar sua pelagem. “Ele ficou lindo, bem pretinho, dei a ele o nome de Coockie”.

Cachorro
Coockie [Imagem: Arquivo Pessoal]
Seria nosso afeto seletivo? Por que amamos uns e com tanta facilidade nos desfazemos de outros? A socióloga Kênia explica: “aquilo que sentimos pelos animais segue modelos sociais de afeto. Nem tudo é amor nas relações entre humanos e animais. O animal cresce, a criança cresce, já não o quer mais. A família muda de residência, e o novo espaço já não comporta mais aquele animal”. Ou seja, a contradição presente nessa interação é uma das características que marcam esse modelo social de afeto.

Durante sua pesquisa para a tese de doutorado, “Quem não tem filho caça com cão”: animais de estimação e as configurações sociais de cuidado e afeto”, Kênia ouviu de veterinários relatos de que durante as férias escolares a busca por eutanásia (sacrifício indolor do animal) aumenta consideravelmente. De acordo com o artigo 3º Resolução nº 1000, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, a eutanásia pode ser indicada nas situações em que:

“I – o bem-estar do animal estiver comprometido de forma irreversível, sendo um meio de eliminar a dor ou o sofrimento dos animais, os quais não podem ser controlados por meio de analgésicos, de sedativos ou de outros tratamentos; […]

V – o tratamento representar custos incompatíveis com a atividade produtiva a que o animal se destina ou com os recursos financeiros do proprietário”.

E por qual motivo essa busca acontece? “As famílias vão viajar, e não querem ter a preocupação com aquele animal que já está envelhecido, adoentado. É claro que isso não ocorre em todos os casos, mas demonstra a complexidade do fenômeno”, completa Kênia. 

Ao tratar das maneiras de afeto dessa relação interespecífica, isto é, entre indivíduos de espécies distintas, é possível traçar um paralelo com uma questão já abordada neste texto: a humanização dos cachorros. A dificuldade dos humanos em conviver com as diferenças talvez seja uma das razões para isso, aponta Helenara. “Precisamos aproximar o ser daquilo que consideramos o mais perfeito: o humano. A ordem, a pureza, a beleza estão relacionadas ao que é humano, por isso não suportamos o cheiro de um animal, por exemplo, e lhes passamos perfume. Ou não admitimos a sua natureza fisiológica, colocando-lhes fraldas, roupas e outros acessórios”, diz a psicóloga. 

Post sobre cachorro
[Imagem: Reprodução/Facebook]
Comentários como o da imagem acima são comuns e, embora por muitas vezes busquem reforçar o afeto que se tem por um cachorro, também são passíveis de questionamento. De fato, não se nega o carinho e a importância dada os cachorros na vida de seus proprietários, mas é importante reconhecer de mesmo modo, tal como já explicado por Kênia, que essa relação envolve um modelo social de afeto. 

O que pode haver por trás de comentários como o da publicação acima? “No par homem-animal, há a ausência da palavra. Onde não há palavra nós preenchemos este espaço com as nossas fantasias. Por isso que o animal se torna este potencial acolhedor de nossas projeções”. A socióloga exemplifica: “posso chegar em casa e achar que meu cão está triste, quando na realidade eu estou triste e não consigo lidar com isso naquele momento. Posso supor que meu animal se sente sozinho ou que precisa de uma companhia, quando na realidade quem se sente sozinho sou eu”. 

 

A questão do tráfico animal no Brasil 

Status e ostentação, ambos tópicos já tratados quando a abordagem estava restrita aos cães, também podem ser vistos de uma perspectiva ampliada, desta vez, relacionados ao tráfico de animais no Brasil. Bem como com os cachorros, esse recorte expõe mais da relação humano-animal. Para isso, traçaremos aqui um breve panorama dessa atividade ilegal.

De acordo com o RENCTAS (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), o tráfico de animais é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de armas e de drogas. Embora considerados separadamente, o 1° Relatório Nacional sobre o Tráfico da Fauna Silvestre da Renctas mostrou que o tráfico de drogas e de animais também podem se interligar. Como mostrado pelo relatório, é por meio dos próprios animais que cartéis de drogas da América do Sul transportam seus produtos. Um dos exemplos que se tem registrado aconteceu em 1988, no Rio de Janeiro, onde foram encontrados sacos de cocaína dentro do estômago de jibóias apreendidas. Estima-se que esse comércio movimente anualmente de 10 a 20 bilhões de dólares por todo o mundo. 

Foi durante o século 16, com a exploração europeia do mundo, que o tráfico de animais começou a se caracterizar. De acordo com o levantamento da Renctas, os animais — que levantavam curiosidade — passaram a ser comercializados, pois eram vistos como prova de que o viajante esteve em nova terras. “Possuir animais silvestres sempre foi símbolo de riqueza, poder e nobreza, conferindo um certo status ao seu dono perante a sociedade (Kleiman et al., 1996)“.

A raridade dos animais se estabelece como um dos principais critérios para o tráfico: quanto mais rara a espécie, mais cara ela passa a ser. Talvez seja nesse momento que a relação desse recorte com a apreciação dos cães de raça pura fique mais evidente.

No Brasil, um país cuja biodiversidade é abundante, a atuação do tráfico de animais silvestres deixa sua marca. Conforme dados do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), essa atividade retira anualmente 38 milhões de exemplares do país.

A psicóloga Helenara explica que, para além da questão do status, uma outra maneira de entender a busca por animais silvestres, que em alguns casos podem oferecer riscos à própria pessoa, é por meio das fantasias relacionadas aos superpoderes. A Mística de X-men e o personagem Homem-Aranha são exemplos usados por ela. “Talvez haja uma sensação de poder tanto social-econômico, quanto imaginário-fantasístico em relação a animais que possuem capacidades letais, como determinadas espécies de cobras, por exemplo”, explica ela.

Homem-Aranha
Homem-Aranha [Imagem: Reprodução/ Pixabay]

 Os cães  nas histórias de seus  donos

Qual é a importância do seu cachorro na sua vida? “Posso dizer, com toda a convicção, que pra mim eles são meus filhos, aqueles pelos quais eu busco forças para sair naqueles dias em que não tenho vontade de levantar da cama. São a alegria dos meus dias”, declara Leiliane.”Acho que eu não saberia viver sem ele”, afirma Miriam.

Cachorro e dona
Bobby ao lado de Miriam [Imagem: Arquivo Pessoal]
Nessa interação tão controversa, os cachorros deixam sua marca na vida de seus donos. Leiliane comenta sobre isso: “creio que o único ponto negativo seja o fato de eles não serem eternos ou pelo menos não nos acompanharem até o final de nossas vidas. Eles nunca poderão ser substituídos”. 

Para elas, a responsabilidade é um dos principais requisitos necessários para criar um cachorro. Miriam comenta que a criação envolve desafios, e os donos devem ter condições de lidar com cada situação junto ao animal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima