Por Laura Castanho (laura.castanho.c@gmail.com)
O teatro musical brasileiro vive seus dias de ouro.
Ainda que o musical — peça na qual os atores cantam e dançam de maneira a levar adiante a narrativa — esteja presente na cultura do país desde o século 19, foi na década passada que o gênero entrou de vez no circuito cultural das grandes capitais brasileiras. Isso se deu largamente devido à importação de franquias da Broadway, em Nova York (EUA), e do West End, em Londres (Inglaterra).

De três anos para cá, o boom dos musicais nacionais parece caminhar rumo à consolidação: são abertos cada vez mais cursos específicos para atores, e as peças têm migrado para fora do eixo Rio-São Paulo. Também surgiram duas premiações nacionais para profissionais de musical: o Reverência e o Bibi Ferreira — este último em homenagem à atriz e cantora que, viva e ativa desde 1940, estrelou nos grandes musicais das décadas de 50 e 60.
“Atualmente um musical sai e outro já entra no lugar”, diz a atriz Carol Fung, atuante no eixo. “Não existe só uma ou duas empresas que trazem musicais pro Brasil, como antigamente.” De fato, somente em São Paulo há sete musicais em cartaz no circuito mainstream, e ainda muitos outros por companhias alternativas, amadoras ou profissionais.
Problemas
No entanto — assim como qualquer coisa que cresce muito rápido —, o musical brasileiro enfrenta dificuldades próprias. Entre elas, está a complexidade da performance: cantar, dançar e atuar ao mesmo tempo exige uma dedicação que poucas gerações anteriores de artistas chegaram a conhecer. Muitos atores, especialmente fora do eixo, ainda estão se adaptando às técnicas desse universo. “Antigamente não tínhamos atores de musical”, diz Carol. Ela, que estudou em Nova York, encara as academias brasileiras de teatro musical com otimismo. “Nós desvalorizamos muito o mercado brasileiro, até termos uma experiência no exterior. Hoje em dia, estudar aqui está sendo tão vantajoso e importante quanto estudar lá.”
A atriz formada em educação física Cíntia Ferrer tem uma visão diferente. “Os artistas não estão preparados para atuarem nas três áreas com qualidade técnica homogênea, nem os diretores estão preparados para uma direção interligada”, diz. Ela abriu, no ano passado, a primeira academia para atores de musical no Rio Grande do Sul — atividade que definiu como “trabalho de formiguinha”, pelo desconhecimento local do gênero — e conta que, assim como em outras artes, “os artistas necessitam de outros trabalhos para se manterem”, fator que prejudica a performance. “No teatro musical, seu tempo é triplicado em exigências e, mesmo assim, não recebem para tanto. Esse é o maior responsável pela falta de qualidade, onde os artistas não conseguem se manter focados apenas em um trabalho”, destaca.
A mais de quatro mil quilômetros de distância, em São Luís do Maranhão, a atriz Mariana Farias lida com os mesmos empecilhos. Na academia que frequenta — também a única no estado —, boa parte dos estudantes trabalha durante o dia e tem aulas à noite; ela própria cursa direito, que considera seu “plano A”. Apesar da dupla jornada, Mariana acredita que a execução é a parte mais difícil: “Você tem que dançar de uma forma, e cantar ao mesmo tempo, e encontrar alguma forma de respirar pra não perder a voz, pra não perder o ritmo. E não dá pra fazer nada disso com cara de paisagem. Tem que ficar no personagem o tempo todo”.

Mariana também nota a forte tendência à sobrecarga dos artistas. “O ator, especialmente o brasileiro — isso é uma coisa que eu percebi —, ele é muito multifuncional. Nunca faz só a função dele, tem que fazer a função dele e de mais três. É sempre muita coisa ao mesmo tempo.” Sobre as qualidades que o ator de musical deve ter, ela é categórica: “Tem que dar a cara a tapa”.
O compositor curitibano Enzo Veiga — que criou canções para dois musicais nacionais entre o ano passado e o atual — também enfrentou sobrecarga, mas considera isso parte de qualquer trabalho original. “Quando você tá criando uma coisa, é difícil dividir bem as funções. Às vezes elas aparecem do nada, ou são desequilibradas em questão de empenho de trabalho”, diz. Recém-formado em música, ele também dá aulas de técnica musical e nota que é comum que os professores locais cobrem preços abusivos por esse tipo de lição — que, em geral, é procurada por atores mais jovens: “Se o preço não for acessível, é muito difícil, né? A situação financeira não está favorável, tem muita gente desempregada. Ninguém pode ficar indo pra São Paulo pra fazer curso”.
Dinheiro
A falta de recursos não se limita aos atores: ela também atinge as academias e estúdios, e reflete a situação do país. “Nos viramos com o pouco que temos — salas inadequadas, figurinos e cenário básicos, cachês arroxados, equipamentos de segunda, teatros inacessíveis. São processos sofridos”, conta Cíntia Ferrer. “Com dinheiro, tudo se resolve.” É nesse ponto — a obtenção de capital para a realização de projetos artísticos — que a discussão em torno de musicais adentra um terreno espinhoso. É lugar-comum na indústria do musical que se recorra à Lei Rouanet, que vigora nacionalmente e reverte parte do imposto de renda de pessoas e empresas em fundos de incentivo às artes.
No entanto, produtores menores como Cíntia alegam que há uma desigualdade na captação de dinheiro: como as grandes empresas optam pelo patrocínio — isto é, expor seu nome em troca da renúncia fiscal efetuada —, elas têm uma preferência clara por megaproduções que chamem muito público, quase sempre nas grandes cidades. Assim, pequenos produtores raramente conseguem captar a quantia desejada, e recorrem a editais, leis locais — como o Proac, em São Paulo — ou a empréstimos privados. “Os valores [captados] ainda são mínimos”, diz Cíntia. “Deveria ter um incentivo direto para o teatro musical, pois o valor de produção é triplicado. Pela Lei Rouanet, teria que se saber exatamente o que as empresas querem, pois estão mais preocupadas com os produtos que chamarão a atenção para a visualização de sua marca. Por isso é difícil [para artistas locais] competir com artistas nacionais.”
No que toca os musicais, há um consenso entre os membros dessa indústria de que esses espetáculos dependem fortemente da lei. “Se a Lei Rouanet acabar, acabou o musical no Brasil”, diz a jornalista e atriz mineira Suellen Ogando, que recentemente se mudou para São Paulo para tentar a escalação em grandes musicais. Quando ainda morava em Belo Horizonte, sua companhia de teatro conseguiu captar recursos pela Lei Rouanet para uma montagem de “A pequena sereia”, mas ela garante que não foi fácil. “Por mais que você tenha uma Lei Rouanet em Minas, a possibilidade de disputar com a Time4Fun, Aventura, Chaim Produções, Cláudia Raia Produções é bem maior. Não tem como competir com eles, é impossível”, desabafa, citando as maiores produtoras paulistanas de musicais.

Suellen também nota que “maquiar” as notas fiscais das produções é uma prática comum nessa indústria — por exemplo, superfaturar o orçamento do cenário e utilizar os recursos captados para esse fim com divulgação na mídia. “A gente não pode provar, mas ninguém é idiota. A gente sabe que pra sobreviver tem que gastar uma puta de uma grana em mídia. Além de ter um global [na peça].” Irregularidades desse tipo na Lei Rouanet têm vindo à tona este ano: recentemente, a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Boca Livre, que apura fraudes de R$180 milhões em captações pela lei. Ela deve ter sua própria CPI em breve, protocolada por deputados do Democratas (DEM).
Ainda há outras controvérsias em torno da lei. “Acho muito estranho uma coisa ser tão distante a ponto de ter que ir pra um ministério pra ser aceita, eu acho que isso burocratiza demais as coisas”, diz Veiga. Apesar disso, ele é fortemente a favor da lei e diz não ter recorrido a ela somente devido à falta de planejamento prévio. “Acho estranho ainda cobrarem ingressos caríssimos — especialmente dos musicais comprados do estrangeiro, como O Rei Leão — quando eles já tiveram incentivo da Lei Rouanet”, completa. Nesse sentido, a narrativa em torno da lei pode parecer contraditória: ela é importante e necessária, porém repleta de imperfeições; o teatro precisa de mais incentivo, ainda que seja a categoria que mais capte recursos, e por aí vai.
“Eu acho que a captação é dificultada pelo interesse dos patrocinadores em um ou outro projeto, mas não pelo processo burocrático“, diz a advogada Flávia Manso, especializada em leis de incentivo. Ela acredita que a maior parte das críticas dirigidas à lei se originam da falta de informação. “Não é porque uma pessoa é famosa que ela vá facilmente conseguir um patrocínio, hoje em dia não é assim. As pessoas imaginam que é assim e por isso criticam.”
Brasileiros
Em meio a esses empecilhos, o teatro musical continua se expandindo no país e abre cada vez mais espaço para produções 100% nacionais — em oposição à simples reprodução de franquias londrinas e nova-iorquinas. Entre as grandes produtoras do eixo, o primeiro instinto, nesse sentido, foi criar musicais sobre a vida de artistas já consolidados. Assim, em um curto espaço de tempo, o circuito teatral dessas cidades acolheu produções sobre Elis Regina, Cazuza, Tim Maia e os Mamonas Assassinas, entre outros. A expectativa atual é que as peças nacionais transcendam essa categoria.
“Acho que talvez estejamos no fim disso, no fim de uma era de musicais biográficos. Ainda vai ter, com certeza, porque é lucrativo”, comenta Veiga. “Mas é uma fase de transição, sabe? É necessário, é interessante pra muita gente, mas acho que agora mais portas estão se abrindo para as composições originais também.” Ele apontou “O beijo no asfalto”, adaptado a partir da peça de mesmo nome de Nelson Rodrigues, como um de seus musicais nacionais favoritos.

Ainda sobre esse tema, o professor de inglês Rafael Nogueira — natural de Cascavel (PR) e criador do Musical Cast, um podcast sobre musicais — é um pouco mais pessimista. “O Brasil ainda peca muito na parte de produções nacionais. Quando é algo 100% brasileiro, dá para perceber que tudo é muito feito às pressas para estrear o mais rápido possível”, opina. “Vai chegar num ponto que essa produção frenética de musicais pode parar, ainda mais se as produções continuarem a depender do que está parcialmente pronto. Já não há mais bons artistas brasileiros que merecem um musical.”