por Juliana Brocanelli
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A história do samba e de boa parte da música brasileira se encontra em Cartola – Música para os olhos. O documentário, lançado em 2006, é dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda e, em pouco menos de 90 minutos, se propõe a desenhar a vida de Cartola e o início das agremiações carnavalescas do Brasil.
Angenor de Oliveira, o Cartola, nasceu em 1908 na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, não é por aí que começa o filme. A abordagem inusitada é justificada com o primeiro capítulo da aclamada obra de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O longa, assim como acontece com no livro, inverte a ordem cronológica e principia com o enterro do cantor e compositor multitarefas, em 1980.
Apesar de o cenário ser determinante na formação do mais típico “malandro carioca”, esse não é muito explorado no filme. A cidade fluminense faz sua participação de forma natural e aparece por si só no desenrolar do documentário. Seu gosto pela farra e malandragem, aliás, surgiu muito cedo. Amante da boa vida e das peripécias noturnas foi expulso de casa, pelo pai, ainda menino. Desde então, foi foi peixeiro, sorveteiro, cavalariço, vendedor de queijos, cambone de macumba. Sem nunca se distanciar da bebida, dos amores e de sua veia poética.
Produzido de um modo um tanto quanto rústico, ele não deixa de ser, no fundo, uma grande roda de samba e conversa. Um de seus principais componentes são os depoentes: os amigos, vizinhos, historiadores, produtores e grandes nomes da música popular brasileira se reúnem – com gravações atuais e antigas – para celebrar Cartola e o samba. Aparecem em cena nomes como Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Nara Leão e Beth Carvalho, que contribuem para traduzir o modo de vida boêmio e despreocupado do grande compositor.
Sempre com seu cigarrinho entre os dedos, a viola sob o braço e os amigos ao redor, o músico construiu grandes amizades e, também, muitas parcerias. Carlos Cachaça, por exemplo, passou muitas tarde ao lado de Cartola a compor por prazer.
Um dos pontos mais interessantes do roteiro é perceber como a escola de samba “Estação Primeira de Mangueira”, o samba e Cartola são indissociáveis. Apesar de ser um dos sete fundadores de uma das mais tradicionais agremiações de samba do Rio de Janeiro e ter composto o primeiro samba-enredo dela, Angenor não teve sucesso garantido.
Assim como previu em sua mais famosa composição, o músico constatou que “o mundo é um moinho” e passou por muitas turbulências em sua vida pessoal, como a contração de meningite, e foi considerado morto no mundo da música. Afastado do cenário musical, levou a vida trabalhando como lavador de carros, porteiro e fazendo pequenos trabalhos temporários. Essa passagem de sua vida é mostrada através de trechos de entrevistas e depoimentos.
A “ressurreição” acontece por volta da década de 60, com a fundação do Zicartola, uma casa de samba que unia a melodia e a culinária de sua última esposa, Zica. Ainda que seja um dos maiores expoentes da música e cultura carioca, Cartola é pouco valorizado ainda hoje e obteve sucesso tardiamente. Prova disso é que seu primeiro disco solo é lançado apenas quando o poeta está prestes a completar 66 anos, em 1974. Considerado pelos críticos um dos melhores discos do ano, ele reúne grandes sucessos como “O Sol Nascerá” e “Quem me vê sorrindo”.
Parte do registro histórico do documentário fica por conta da criminalização do violeiro, que era visto como vagabundo. Essa perseguição rendeu ao violão a alcunha de “instrumento marginal”. Assim como ele, o samba e as religiões africanas eram vistas com maus olhos e se faziam presente, quase exclusivamente, nos morros periféricos da Cidade Maravilhosa. O filme sugere que é Cartola, o poeta que fez as rosas falarem, um dos responsáveis por quebrar estes paradigmas e exportar a música negra carioca para as demais cidades do país.
Embora a trajetória do poeta seja bela e de grande relevância, o documentário pouco explora os recursos visuais e, ao propor a concomitância entre a história de Cartola e da Mangueira, não deixa claro a quem se refere em alguns momentos. A confusão também é propiciada pela baixa qualidade dos áudios antigos, requerendo um certo esforço por parte do espectador.