Por Maria Luiza Negrão (marialuizacnegrao@usp.br)
Chick flick, ou “filme de mulherzinha”, é o termo pejorativo pelo qual são chamados filmes com protagonistas femininas e têm mulheres como o público-alvo. Pertencentes ao subgênero das comédias românticas, acompanham a personagem principal ao longo de uma jornada que muda sua vida em um sentido sentimental ou romântico. Essas produções passaram por transformações tanto na forma de construir personagens quanto na elaboração dos enredos, mas ainda são estigmatizados, vistos como fúteis e de baixo valor cultural.
Filmes de mulherzinha
Um clássico exemplo de chick flick é o filme De Repente 30 (30 Going on 13, 2004). Na trama, a protagonista Jenna (Jennifer Garner) deseja, em sua festa de aniversário de treze anos, ter trinta anos. No dia seguinte, a personagem acorda num corpo adulto ainda com uma mente de adolescente, além de não saber o que aconteceu em sua vida durante os anos que foram pulados.
Para ajudá-la a descobrir o que aconteceu e a se adaptar ao novo modo de vida, Jenna procura Matt (Mark Ruffalo), que costumava ser seu melhor amigo aos treze anos. Mas ela descobre não ter mais contato com ele desde o ensino médio. Bingo! Protagonista feminina, comédia romântica e sentimental — o combo ideal para um chick flick.
O longa Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019), tem a mesma ideia. A história acompanha a trajetória de quatro irmãs — Beth (Eliza Scanlen), Meg (Emma Watson), Amy (Florence Pugh) e Jo (Saoirse Ronan) — entre a adolescência e o início da vida adulta. Porém, o protagonismo de quatro mulheres somado à presença de outras coadjuvantes importantes e o romance presente no enredo não restringem a abrangência da narrativa.
Sob roteiro e direção de Greta Gerwig, a adaptação cinematográfica do livro de Louisa May Alcott retrata também conflitos internos das personagens, o luto e questões feministas. Por isso, é evidente que os chick flicks, quando bem produzidos, têm a capacidade de trabalhar com uma vasta gama de temas e características para as mulheres que visam retratar.
Male Gaze
A professora Ludmila Carvalho, pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, estuda a história do cinema, autoria feminina e representação. Ela explica que a presença feminina nas produções audiovisuais tradicionalmente eram proporcionais ao prestígio social que os filmes tinham. Por isso, nos primórdios do cinema, era comum que mulheres ocupassem cargos de produção. O primeiro filme narrativo ficcional da história, inclusive, foi criado e produzido por Alice Guy-Blaché: A Fada do Repolho (La Fée aux Choux, 1896).
Mas, conforme o cinema foi se expandindo, a presença masculina também se ampliou: desde a criação do Oscar em 1929, apenas 3 mulheres conquistaram o prêmio de Melhor Direção — Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008); Chloé Zhao, por Nomadland (Nomadland, 2020); e Jane Campion, por Ataque dos Cães (The Power of the Dog, 2021).
Com produções audiovisuais repletas de homens, é comum encontrar em filmes personagens mulheres que são pensadas apenas para agradar o público masculino. É o conceito de male gaze, termo cunhado por Laura Mulvey em seu livro Prazer Visual e Cinema Narrativo (Afterall Books, 2016).Além disso, para averiguar a real presença de mulheres em narrativas cinematográficas, é utilizado o Teste de Bechdel. Seu objetivo é atestar se as personagens femininas de uma narrativa efetivamente contribuem para o desenvolvimento do enredo ou se aparecem lá só para serem vistas. O teste foi criado satiricamente em uma tirinha feita por Alison Bechdel em que para um filme ser aprovado ele precisa ter a presença de pelo menos duas personagens mulheres e uma conversa das duas entre si sobre um assunto que não esteja relacionado a homens ou a romance.
Estereotipação
Ao longo da história do cinema, diversos estereótipos foram criados com relação às personagens femininas e as suas aparências físicas. Dessa forma, ao ver na tela uma mulher com uma determinada cor e corte de cabelo e um certo estilo de roupas, é comum presumir toda a personalidade dela com base nesses padrões.
Entre as personagens hiper femininas, há dois estereótipos dominantes: as malvadas e as bimbos. Regina George (Rachel McAdams) de Meninas Malvadas (Mean Girls, 2004) é a materialização do primeiro tipo: a loira veste roupas cor-de-rosa e usa salto scarpin para ir à escola e maltrata qualquer um que cruze seu caminho, com exceção de seu grupo de amigas igualmente hiper femininas e maldosas. Já as bimbos, gíria pejorativa utilizada nos Estados Unidos para denominar patricinhas que são essencial e irreparavelmente burras, podem ser representadas pela figura de Karen (Amanda Seyfried) no mesmo filme.
Outro estereótipo recorrente em chick flicks é o da “patinha feia”, uma menina fora dos padrões de beleza convencionais e desajeitada socialmente. Em O Diário da Princesa (The Princess Diaries, 2001), Mia (Anne Hathaway) é a personificação perfeita da patinha até o momento em que descobre ser a herdeira do trono do pequeno reino da Genóvia. Com isso, troca seus óculos por lentes de contato, alisa seu cabelo e muda o jeito de se vestir para se adequar aos padrões esperados para uma princesa — além de receber aulas de etiqueta para saber como se portar perante a nobreza e a seus súditos.
Esses são só alguns exemplos dentre os muitos estereótipos criados na indústria cinematográfica para personagens femininas. Sobre essas padronizações, Ludmila explica: “Todo personagem é uma representação reduzida, com traços análogos aos dos seres humanos, mas, ao se reduzir tanto a complexidade humana, ficam só dois ou três traços. E essas poucas características são muito repetidas”. Essas estruturas, portanto, restringem a oferta de outras possibilidades de características e, segundo ela, a presença de autoras mulheres que produzem suas próprias histórias podem contribuir para a ampliação das representações.
A evolução das chick flicks e da representação feminina
Com a evolução dos debates acerca de gênero, raça e sexualidade, o catálogo de enredos e perfil das personagens se diversificou. As protagonistas foram ganhando características novas e variadas entre si e suas histórias passaram a se complexificar. Os romances também puderam ganhar novos ares e gradualmente se libertar das amarras da heteronormatividade.
Em Legalmente Loira (Legally Blonde, 2001), Elle (Reese Witherspoon) originalmente ingressa no curso de direito na Universidade de Harvard para recuperar o amor de seu ex-namorado Warner (Matthew Davis). Entretanto, com o passar do primeiro semestre, a protagonista, que parecia apenas uma representação do estereótipo de loira burra, acaba se dedicando intensamente ao curso de direito sem deixar de lado suas roupas cor-de-rosa e sua personalidade — atributos mal vistos pela grande maioria das pessoas ao redor de Elle. Além disso, demonstra a sororidade feminina ao invés das comuns rivalidades, esta que até existiu entre Elle e Vivian (Selma Blair), a nova namorada de Warner, mas que foi rapidamente superada.
Já em Livrando a Cara (Saving Face, 2004) é mostrado o namoro entre Vivian (Lynn Chen) e Will (Michelle Krusiec), duas sino-americanas. O relacionamento, entretanto, não é tratado livremente por Will, já que sua mãe Hwei-Lan (Joan Chen) é homofóbica. Mas a mãe também tem problemas com seus próprios pais já que foi expulsa da casa deles após ter engravidado de um homem com o qual não quer expor o relacionamento. Assim, o filme retrata como as vidas de Will e Hwei são impactadas ao transgredirem padrões tradicionalistas familiares.
Barbie (Barbie, 2023) também foi outro filme que rompeu barreiras outrora impostas às chick flicks. Ao não só fazer com que todo o mundo celebrasse a mensagem do enredo, o longa também trouxe uma grande visibilidade positiva a esses filmes produzidos por e para mulheres. Trouxe também diversidade de personagens femininas e retratou, ainda que de forma superficial, questões feministas, como as pressões impostas às mulheres no meio social e trabalhista, a estrutura patriarcal enraizada e a objetificação das mulheres.