Na madrugada do dia 11 de maio, uma quarta-feira, iniciou-se uma operação conjunta das Polícias Civil e Militar na Praça Princesa Isabel, centro de São Paulo, em repressão à região que ficou conhecida nas últimas semanas como “nova cracolândia”. Sob o pretexto de combater o tráfico de drogas por meio de mandados de prisão, barracas dos moradores da praça foram destruídas, gerando uma dispersão generalizada desse grupo de pessoas pelos arredores. No dia seguinte, quinta-feira, a violência estatal continuou, culminando na morte de um homem, Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Júnior. Ele foi atingido por um tiro no peito vindo de policiais civis que, no momento do disparo, não estavam uniformizados.
Semanas antes, a questão da chamada “cracolândia” já estava repercutindo, quando do dia pra noite, e sem explicação aparente, o “fluxo” que reúne moradores de rua e usuários de drogas mudou por completo do seu endereço original, próximo à Praça Júlio Prestes, para a Praça Princesa Isabel. Na ocasião, o governo municipal, representado pelo secretário de Projetos Estratégicos, Aléxis Vargas, comemorou a mudança e disse que isso era resultado do “trabalho árduo” da prefeitura. Enquanto isso, comerciantes da Praça Princesa Isabel lamentavam, relatando queda no movimento.
Em resposta a toda essa crise, foi organizada uma manifestação por movimentos sociais que atuam na região, cobrando justiça pela morte de Raimundo e exigindo o fim da violência policial. A concentração do ato foi marcada na Praça Júlio Prestes, em frente à estação, porém o clima era de tensão entre moradores locais e os grupos, à quem eles acusavam de estar “defendendo o tráfico e a cracolândia” e de “não saber o que era viver na região”. Na própria postagem de convocação da passeata, nas redes sociais do Coletivo A Craco Resiste (movimento que atua por políticas humanizadas e pelo fim da violência estatal), ocorreram diversos comentários com críticas, incluindo alguns xingamentos e ameaças.
Desde o início da manifestação, forte aparato policial também esteve presente, com mais de uma dezena de camburões da PM e da GCM cercando os manifestantes, representando bem o Estado Policial sob o qual a região vive. Também estavam presentes, do outro lado, em menor número, grupos de moradores que se reuniam com as famílias, servindo café e lanches para comemorar a saída do fluxo da Júlio Prestes e para apoiar os polícias. Em alguns momentos os dois lados trocaram acusações.
Marcos Maia, um dos líderes do grupo Pagode na Lata, estava na manifestação e conversou com a J.Press. O coletivo que ele faz parte, o Pagode na Lata, realiza trabalhos de redução de danos por meio do acolhimento de moradores de rua e dependentes químicos. “Nós geramos trabalho e renda por meio da música”, conta Maia.
Ele relatou que a última operação foi a mais violenta que ele já viu, superando as dos anos anteriores. Quando questionado sobre o que diria para os críticos dos que manifestavam por direitos humanos, ele falou: “Ninguém quer que a ‘cracolândia’ continue, nós apenas queremos que as coisas sejam feitas do jeito certo, com respeito”. Marcos Maia contou também que já tentou diálogo diversas vezes com o grupo de moradores apoiadores das ações policiais, mas que não obteve sucesso.
Após a conversa com Marcos, ocorreram momentos de tumulto quando policiais tentaram cercar os organizadores do ato e levá-los para conversar. A situação só se acalmou quando o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) chegou para apoiar os manifestantes.
No momento de sua chegada, ele, junto com alguns ativistas, tentando buscar um diálogo, caminharam até o lado da praça onde estavam os moradores, que serviram café para o vereador e Rodrigo, um morador da região que vive em um apartamento na esquina da Rua Cleveland. Rodrigo começou a falar defendendo as ações policiais e o programa Redenção da prefeitura: “Só a polícia vai resolver o problema. Nós antes ficávamos sem conseguir dormir, nem sair com nossos filhos. Hoje, nós temos silêncio e estamos conseguindo aproveitar a praça pela primeira vez.” Ele ainda ressaltou serem frequentes cenas de sexo ao ar livre quando o “fluxo”, fixação territorial dos usuários de droga, ocupava a região.
Quando questionado sobre o fato do problema não ter se resolvido, apenas mudado de lugar, Rodrigo disse: “A polícia que vá atrás dos usuários nos outros lugares”. Ele, junto com alguns outros moradores, também duvidaram do fato do tiro que matou um homem na semana anterior ter vindo da polícia, apesar de três policiais civis terem se apresentado à corregedoria e se assumido como possíveis autores dos disparos. “A polícia só usa bala de borracha e bomba de gás, isso não faz nada”.
Alguns ativistas dos direitos humanos que acompanhavam Suplicy e ouviam Rodrigo, se manifestaram contra as falas, dizendo que elas “justificavam a limpeza social e beiravam a apologia ao fascismo”. Eles argumentaram que “apoiar o estado policial era perigoso para todos” e questionaram a quantidade de recursos públicos gastos com armas pesadas e contingentes gigantes para atacar populações que não tem nada.
Em seguida, uma senhora bastante exaltada abriu espaço entre os manifestantes se dizendo moradora das quadras próximas da rua dos Gusmões. Ela, diferente de Rodrigo, dizia, bastante indignada, que a situação estava longe de se resolver, mas também acusou os movimentos sociais de “querer perpetuar a cracolândia” por não conhecerem a realidade do local e o medo de sair na rua que ela e a família tinham.
Enquanto isso, a nossa reportagem conversou com outra senhora, a dona Tuca, que dizia ter propriedade para falar tanto como moradora (de um prédio próximo da Praça Júlio Prestes) quanto como ativista dos direitos humanos. Ela trabalha no projeto social Nhanderu, que busca reintegrar as pessoas em estado de rua e de dependência química por meio de trabalhos, com enfoque na agroecologia.
Tuca afirmou presenciar da sua janela, ao longo dos 12 anos morando na região, ações policiais cotidianas e bastante violência, mas que nada fez a situação se resolver, muito pelo contrário. A moradora também contou à J. Press que a última operação, realizada no dia 11 de maio, foi a mais violenta que ela viu, com muito barulho e tiros. Agora, na visão dela, todo o trabalho que eles faziam de apoio aos dependentes está perdido, pois eles se dispersaram por todo o centro e estão abandonados.
Promessa de diálogo e debate
Diante de todos os impasses entre moradores e manifestantes, uma mulher de nome Carol, que se dizia líder administrativa de uma das associações de moradores presentes na praça, chegou ao local pedindo para conversar com Eduardo Suplicy e com líderes do grupo Pagode na Lata. Ela disse que apoiava as causas dos direitos humanos e reconheceu que havia muito racismo e higienismo nas falas de muitos moradores, que comemoravam as ações da polícia. Porém, afirmava que todos os problemas pelos quais eles passam são reais, o que envolve toda situação de insegurança e abandono que vive a região. Ao final, propôs então um debate entre as partes, ressaltando que ambos – moradores e manifestantes – estavam preocupados com a gravidade da situação e queriam uma solução.
A ideia foi bem recebida pelos organizadores da manifestação, que pediram para Suplicy fazer um anúncio para todos sobre a proposta, bem aceita também pela maioria dos manifestantes. Portanto, antes da passeata sair em direção à Rua Helvétia e à Praça Princesa Isabel, o vereador, em reunião com os representantes da associação de moradores, acertou uma data para um debate entre as partes na semana seguinte, envolvendo as entidades de direitos humanos, os moradores e o Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a Cracolândia, ligado às Comissões Extraordinárias de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.
No artigo “Fluxos de uma territorialidade: duas décadas de ‘cracolândia’”, escrito em um capítulo do livro Pluralidade Urbana em São Paulo (Editora Fapesp, 2016), a autora Taniele Rui questiona a ideia de que a região em questão é um “mundo isolado”, fora das dinâmicas sociais que regem a cidade de São Paulo inteira. Segundo ela, principalmente nos anos 80, com a migração do centro financeiro para outras regiões urbanas e a desativação do terminal rodoviário da Luz, ocorreu uma considerável desvalorização dos imóveis e comércios nessa região, o que favoreceu a migração de populações em situação de exclusão, da periferia para essa zona do centro histórico.
Em adição a isso, Taniele destaca que a chegada do crack à cena paulistana em meados dos anos 90 ocorreu simultaneamente nas periferias (destacando-se São Mateus, na Zona Leste, um dos primeiros pontos de que se tem registro uma apreensão da droga) e na região central, atingindo sempre os mais vulneráveis socialmente. A partir disso, com um aumento expressivo da população em situação de rua ao longo dos anos, tornou-se mais fácil a criminalização e a associação desse grande contingente de pessoas morando nas ruas ao Crack, ou seja, à ilegalidade. Como parte desse processo, o termo “cracolândia” se popularizou.
Assim, foi justamente nos anos 2000 que o abandono e a invisibilidade da região, alvo de críticas pelos movimentos sociais que lá atuavam, transformou-se em ação do Estado, porém na forma de intervenção policial frequente. Em 2005, a prefeitura deu início ao projeto Nova Luz, visando a “revitalização” por meio de concessões privadas e a demolição de imóveis nos arredores da Luz. O programa foi alvo de críticas pelas organizações que atuavam junto da população de rua, que acusavam a prefeitura de tentar realizar uma limpeza social para revalorizar as propriedades locais e servir à especulação imobiliária.
Ao longo desses anos, foram diversas as tentativas dos diferentes governos de “acabar com a cracolândia”, sempre tendo a questão como uma das principais plataformas de campanha. Em 2007, sobre o programa Nova Luz, o então prefeito de São Paulo Gilberto Kassab chegou a afirmar que a cracolândia tinha acabado: “Não existe mais a Cracolândia, a velha Cracolândia. A serviço da droga, a serviço do crime. Cada vez uma página virada da história de São Paulo”.
Já, em janeiro de 2012, teve início a chamada Operação Sufoco, quando mais de 300 policiais foram levados até a área e dispersaram os usuários pelo centro, com bombas e balas de borracha. A secretária de Justiça do então governo de Geraldo Alckmin, que levava a cabo o projeto chamado Centro Legal, chegou a afirmar na ocasião que a Cracolândia tinha acabado.
Em 2013, com o início da gestão de Fernando Haddad na prefeitura, o programa Nova Luz chegou a ser oficialmente engavetado após pressões, apesar de relatos apontarem que os pilares do projeto ainda continuam sendo executados até hoje. Foi lançada à época a ação Braços Abertos, que apostava em uma proposta de não violência e de assistência social, o que não impediu que as operações violentas continuassem ocorrendo. Em 2014, uma ação da Polícia Civil com o objetivo de prender traficantes acabou em confronto e, em 2015, uma megaoperação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) com a Polícia Militar terminou em tiros e pessoas baleadas.
Posteriormente, em 2017, João Dória chegou a prefeitura, tendo como uma das principais plataforma de campanha a promessa de que iria “acabar com a cracolândia”. O programa Braços Abertos foi encerrado e substituído pelo programa Redenção e, em maio daquele ano, uma mega operação expulsou os usuários da região da Júlio Prestes com jatos d’água. Eles se dispersaram por diversas regiões da cidade, inclusive para fora do centro histórico, como para a região da Avenida Paulista. A ação foi comemorada pelo prefeito, que ainda defendeu a internação compulsória como possível “solução”.
Após um período, uma nova aglomeração voltou a se formar, ocupando o seu espaço original. Voltando à 2022, em março deste ano, o chamado “fluxo” mudou, sem explicação aparente, para a Praça Princesa Isabel, ponto que depois foi alvo das ações policiais das últimas semanas. Sobre os ocorridos recentes e sobre as perspectivas para a região, a J.Press conversou com Tião Nicomedes, liderança das pessoas em situação de rua, e dona Merabi, integrante da Pastoral Povo de Rua, organização católica de assistência.
Dona Merabi conta que foi demitida de seu emprego aos 54 anos e ficou sem ter como pagar o aluguel e sem ter onde morar. Com isso, teve a sorte de ser acolhida em um albergue para mulheres até se reerguer, sendo apresentada à causa das pessoas em situação de rua. Ela disse que chegou a integrar o Conselho de Políticas Públicas do município: “Nunca nós conseguimos integrar esse conselho por boa vontade do governo. Sempre foi com muita luta”. Tivemos até que ficar acampados para pressionar as autoridades pelas nossas demandas”. Porém, mesmo com tudo isso, o conselho acabou se dissolvendo.
“Nunca nós conseguimos integrar esse conselho por boa vontade do governo.
Sempre foi com muita luta.”
Dona Merabi, integrante da Pastoral Povo de Rua
Hoje, Merabi trabalha ao lado do Padre Júlio Lancelotti, no acolhimento da população de rua, com o oferecimento de comida, recursos básicos e oportunidades de trabalho. Ela disse, porém, que os acontecimentos das últimas semanas atrapalharam muito o trabalho deles porque houve uma dispersão enorme, afastando as pessoas dos equipamentos de tratamento e acolhida.
A integrante da Pastoral Povo de Rua ainda fez uma denúncia, na qual relatou presenciar um momento em que a polícia fez um acordo com chefes do tráfico na região para que o “fluxo” saísse das cercanias da Júlio Prestes e fosse para a Praça Princesa Isabel, contando que era interesse do governo a inauguração de um hospital nos arredores, o que seria inviabilizado pela presença dos usuários. De fato, coincidência ou não, o hospital Pérola Byington está prestes a ser inaugurado lá, e dias antes da mudança no fluxo, o então governador João Dória visitou o prédio da unidade, no cruzamento da Rio Branco com a Rua Helvétia.
Segundo o secretário-executivo de projetos estratégicos, Alexis Vargas, a migração dos usuários se deu como resultado do programa Redenção, da prefeitura, que “oferece serviços de saúde e assistência social e operações policiais que afastaram o tráfico”. Já a versão da Polícia Civil e da GCM é que a ordem de mudança partiu dos líderes do tráfico.
A pessoa não está nas ruas nem nas drogas porque quer
Tião Nicomedes, liderança das pessoas em situação de rua, já foi aprendiz de marinheiro, pedreiro, estivador, atleta e dramaturgo. Contou que já morou nas ruas e que foi graças às políticas públicas conquistadas, e ao auxílio social, que conseguiu se reerguer, conseguir um trabalho e pagar um aluguel. Quando perguntado sobre quais as possibilidades de mudança e resolução da grave situação que atinge a região conhecida como Cracolândia, disse: “A pessoa não está na rua porque quer, ela não está presa nas drogas porque quer, é preciso trabalhar ao lado dela para tirá-la dessa situação. Eu fui resultado desse apoio.”
Porém, segundo Tião, não são todos que têm as mesmas oportunidades, justamente porque tudo o que vem sendo feito nos últimos anos caminha para o contrário disso. “Desde 2005, quando se iniciaram as Operações Sufoco, a violência só vem crescendo ano após ano, enquanto os atendimentos sociais estão sendo desmontados, fechados e hoje praticamente inexistem”.
“A pessoa não está na rua porque quer, ela não está presa nas drogas porque quer, é preciso trabalhar ao lado dela para tirá-la dessa situação. Eu fui resultado desse apoio.”
Tião Nicomendes, liderança popular das pessoas em situação de rua
*Imagem de Capa: [Reprodução / Jornalismo Júnior / Gabriel Eid]