*Capa: Jovens nigerianos reunidos em manifestação contra o SARS [Imagem: Reprodução/Twitter – @SaharaReporters]
No início de outubro, a Nigéria, país mais populoso do continente africano, começou a enfrentar uma forte onda de protestos relacionada às denúncias de violência policial. Enquanto a hashtag #EndSARS era difundida por personalidades como Beyoncé e Lewis Hamilton nas redes sociais, o “soro soke”, canto popular na língua Yorubá, que em português significa “fale alto”, tomou as ruas das cidades nigerianas como um brado da juventude, que não mais se cala diante da repressão e do autoritarismo.
O movimento #EndSARS
No início de outubro, o vídeo de um jovem sendo espancado pelo que pareciam oficiais do Special Anti-Robbery Squad (SARS) — em português Esquadrão Anti-Roubo — repercutiu nas redes sociais. Desde então, a hashtag #EndSARS, que foi criada em 2017 para pedir o fim da unidade policial, foi utilizada em aproximadamente 1,5 milhões de postagens apenas no Instagram. Ao mesmo tempo, milhares de jovens nigerianos saiam às ruas para protestar ativamente contra a violência do esquadrão.
As manifestações, que começaram em cidades ao sul da Nigéria, logo ganharam adesão nacional. Em resposta, o presidente Muhammadu Buhari anunciou a dissolução da unidade policial. Porém, a declaração não acalentou o clima de tensão no país, já que desde 2015, o SARS foi desintegrado pelo menos três vezes, sendo reestruturado e tendo voltado às ruas com o mesmo teor de violência. As demandas iniciais dos protestos acabaram se expandindo e os manifestantes passaram a brigar pela reforma total da polícia e pelo fim da má governança no país.
Jonathan Phillips, Professor Doutor do Departamento de Ciência Política da USP, entretanto, destaca: “Dadas essas complexidades, é muito difícil pensar em uma reforma profunda. Se algo mudar no futuro, terá mais a ver com coalizões políticas. É um pouco pessimista, mas acho importante destacar”.
Em Lagos, a maior cidade nigeriana, quase todas as ruas foram tomadas pelos jovens manifestantes. Os protestos, que começaram liderados por cidadãos pacíficos, tomaram outra forma após o envio de tropas armadas do governo ao local. Prédios foram incendiados e motoristas foram impedidos de circular nas ruas da metrópole. Testemunhas relatam que oficiais atiraram e mataram inocentes durante as manifestações. Em seu último discurso, no dia 22 de outubro, Buhari afirma que 18 policiais e 51 civis perderam a vida nos protestos. Segundo a Anistia Internacional, pelo menos 12 desses teriam sido mortos por armas da polícia.
Surgimento do SARS
O SARS surgiu em 1984, durante a ditadura nigeriana, e foi implantado com o objetivo de conter furtos e roubos no país. Mesmo com o retorno da democracia a partir de 1999, esse esquadrão é mantido até os dias de hoje. Segundo Phillips, o SARS permanece porque existe uma demanda grande por esse tipo de segurança que os policiais menos treinados, menos pagos e menos armados, não podem fornecer. Porém, o professor explica que, como em vários outros países, esse aumento de violência gera impacto sobre a sociedade civil.
Desde os anos 1990, grupos de defesa dos Direitos Humanos já denunciavam e relatavam abusos por parte deste esquadrão. Phillips afirma que quando morou na Nigéria já vivenciou algum tipo de violência: “Quem mora lá às vezes enfrenta esse uso de violência para fazer cumprir com as leis. É meio institucional, parte da vida. Não é uma surpresa que há uso de violência, é comum”.
De 2017 a 2020, 82 casos de tortura e execução pelo SARS foram registrados, segundo dados da Anistia Internacional. Em entrevista ao Observatório, a nigeriana Olufunke Barawa, oficial do programa Gênero, Justiça Racial e Étnica na Ford Foundation, conta que os oficiais do SARS tinham como alvo jovens principalmente do sexo masculino. “Eles traçavam o perfil de jovens com tatuagens, dreadlocks, telefones chamativos e carros como hackers e traficantes de drogas”, explica, acrescentando que os jovens são presos arbitrariamente, sem que existam evidências, extorquidos e muitas vezes assassinados. “As vítimas relatam ter sido eletrocutadas, afogadas, atingidas por armas afiadas e contundentes ou espancadas até a morte”, conta Olufunke.
Em 2019, 1.007 civis foram mortos pela polícia na Nigéria. 142 deles morreram de feridas causadas por “disparos acidentais”, segundo os dados oficiais. 29 eram estudantes, 47 eram pedestres. “O SARS é apenas uma parte do problema. A polícia da Nigéria, e de fato toda a arquitetura de segurança, precisa ser desmontada e redesenhada”, afirma a nigeriana.
Nigeria will not end me
— Oke (@O_Okee) October 21, 2020
Último post de manifestante, baleado horas depois por policiais em Lagos. Em tradução livre, a mensagem do jovem diz “A Nigéria não vai acabar comigo”.
A democracia jovem e a instabilidade política
A Nigéria vive em democracia há apenas 20 anos. Isso faz com que a política do país seja instável e conturbada. Nesse período, houve muito desenvolvimento econômico e social, porém alguns setores, como o SARS, ainda conservam a ideologia militar. Phillips expõe: “Nos últimos 20 anos teve crescimento econômico, uma expansão enorme de serviços públicos como a educação básica, o acesso a saúde pública, mesmo que não seja de qualidade. Porém, por causa de baixa escolaridade, a falta de recursos humanos e a pobreza em geral, sempre tem maiores expectativas do que é possível atender”.
Além disso, o professor explica que a Nigéria tem um alto grau de competição política. “Tem países da África que têm os mesmos problemas de violência e falta de responsabilidade policial, mas sem uma competição política. Porém na Nigéria sempre tem políticos que estão se mobilizando para mostrar as falhas de governo e espalhar essas críticas”, conta.
O presidente Buhari teve seu governo reprovado por uma parcela da população. Segundo Jonathan, ele não realizou parte da agenda prometida e essas faltas e falhas não foram bem recebidas. O professor acrescenta que no final desses mandatos existe um posicionamento político para criticar e mobilizar novas plataformas.
Um chamado da juventude
Segundo o World Factbook da CIA, cerca de 60% da população total da Nigéria tem menos de 24 anos. Mais de 40% desses jovens estão desempregados ou subempregados. “Os jovens atingiram a maioridade e estão prontos para enfrentar líderes ruins e má governança. Os nigerianos não podem mais ser ignorados e os cargos públicos não são mais uma ameaça. Eles querem a reforma total da polícia”, diz Olufunke, acrescentando que a maior parte da infraestrutura pública do país está degradada ou é inexistente.
As redes sociais servem como porta-voz para a juventude insatisfeita. Para Phillips, a adesão da população aos protestos e as demandas atendidas pelo governo são, em parte, resultado da pressão social que as redes oferecem. “Hoje, não somente nas cidades grandes, mas todo mundo nas aldeias do norte, por exemplo, tem acesso a um celular com as notícias. Isso permite que essas ações coletivas, como os protestos, ganhem mais amplitude”, finaliza o professor.