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Esporte e desenvolvimento social na América Latina: seria uma via única?

Esporte e desenvolvimento social são palavras que costumam andar juntas. No continente latino-americano, marcado por pluralidades sociais e históricas distintas —  mas com traços por vezes semelhantes —, existem muitos projetos sociais movidos pela ideia de cultivar, por meio das práticas esportivas, espaços de desenvolvimento social. É o caso, por exemplo, da Associação Pequeno Mestre, …

Esporte e desenvolvimento social na América Latina: seria uma via única? Leia mais »

Esporte e desenvolvimento social são palavras que costumam andar juntas. No continente latino-americano, marcado por pluralidades sociais e históricas distintas —  mas com traços por vezes semelhantes —, existem muitos projetos sociais movidos pela ideia de cultivar, por meio das práticas esportivas, espaços de desenvolvimento social. É o caso, por exemplo, da Associação Pequeno Mestre, no Brasil, do Fútbol Más, no Chile, e do Goal2Soul e Chocó Unido, na Colômbia.

Mas teria o esporte, por si só, a capacidade de promover mudanças significativas na vida das pessoas, ou de introjetar valores positivos na mentalidade de quem passa por ele? Nessa reportagem do Arquibancada, as práticas esportivas serão analisadas como um dos meios de socialização possíveis dentro da dinâmica de realidades não totalmente distintas. 

O parentesco que há nelas está relacionado ao acesso a direitos sociais que não se esgotam no âmbito do lazer. Em uma tentativa de escape a essas condições, o esporte ganha protagonismo e diversas significações.


No Chile, Fútbol Más

Com sua sede localizada em Santiago, capital do país, o projeto surgiu em 2008 a partir da iniciativa de um grupo de profissionais chilenos fanáticos por futebol. Segundo Juan Araya, diretor de operações internacionais da Fútbol Más, eles acreditavam que era possível recuperar espaços públicos e criar áreas de lazer seguras para as crianças: “O sonho era poder mesclar a imensa força transformadora do futebol e o potencial de cada comunidade, pondo o esporte, o jogo, o afeto e os vínculos em uma metodologia socioesportiva que juntasse tudo isso”, conta.

Atualmente, a ONG atua em outros nove países fora o Chile, sendo seis deles na América Latina. Todas as atividades desenvolvidas têm o mesmo objetivo: impactar no bem-estar social das crianças que moram nas regiões de foco. Para isso, ela conta com parcerias de entidades públicas, privadas e acadêmicas para que seja possível instalar novas políticas locais que visem a expansão de sua metodologia.

Em seus mais de dez anos, sua força influenciou a vida de muitas pessoas em todos os locais que foram atingidos por sua força. Perguntado sobre o que as histórias que passaram pela Fútbol Más têm em comum, Juan afirma ser a experiência de comunidade: “A pessoas se sentem parte de um programa em que sabem que sua presença é chave para a sustentabilidade do projeto”, explica. 

Duas crianças observam um jogo de futebol em um campo de terra [Imagem: Reprodução/Instagram]
Em relação a escolha do futebol como nicho do projeto, Juan conta que seu viés coletivo faz com que as relações sociais e as atividades comunitárias aplicadas a partir dele tenham sua performance mais fortalecida. A respeito de suas peculiaridades, o diretor diz que “ele se transforma em um ímã social que cria uma plataforma base para desenvolver habilidades e competências emocionais e sociais”. Além disso, destaca também o caráter prioritário desse esporte na sociedade, uma vez que não depende de idade, gênero, religião ou classe social para ser jogado.

Juan também conta que sua relação com o futebol antes e depois de seu trabalho na Fútbol Más já não é mais a mesma. Quando criança, seu contato com o esporte lhe permitiu o desenvolvimento físico e técnico de modo mais aprofundado e auxiliou na compreensão de dinâmicas coletivas, como uma espécie de escola de conhecimento pessoal. Hoje, ele vê que o potencial do esporte, somado a uma boa metodologia e com o benefício da experiência internacional do projeto, produzem resultados muito mais amplos e visíveis do que em sua infância. 

Diante disso, o diretor diz acreditar no potencial do esporte para mudar a América Latina em vista da criação de um cenário atrativo, uma vez que é possível criar inúmeras analogias entre o futebol e os latino-americanos. “Com o esporte, podemos fortalecer a expressão de emoções, a resolução de conflitos, a autoestima, a confiança, o trabalho em equipe, a autonomia e muitos outros fatores que são, sem dúvida, passos importantes para construir, em conjunto, melhores sociedades”, relata.


Na Colômbia, Chocó Unido e Goal2Soul

Chocó é o nome de um dos estados colombianos. Fica ao noroeste do país, margeado pelo oceano pacífico. Em sua capital, Quibdó, uma equipe de futebol chamada Chocó Unido tem trabalhado, em seus quase três anos de existência, para conquistar seu espaço na cidade. 

O objetivo deles em se tornar a primeira equipe de futebol profissional do estado tem sua origem em uma narrativa comum: prestar orientação a quem teve oportunidades negadas e reivindicar uma possibilidade de mudança social. “[Chocó] é um lugar que precisa de muita ajuda, em todos os aspectos sociais”, opina um dos fundadores do time, Mateo Pedraza, em referência a essa região marcada pela violência interna do país, mas que nem por isso deixa de ser rica em sociabilidade. 

Essa iniciativa partiu do reconhecimento de uma potência adormecida existente em uma região que não fornecia oportunidades esportivas e era “esquecida pelo Estado”, segundo Pedraza. Ele diz que esse time de futebol funcionaria como um empurrão para chocoanos entre 15 a 17 anos seguirem seus objetivos educativos, não exclusivamente em uma carreira no futebol. A ideia deles é unir o esporte e a educação, assegurando a efetividade dessas duas práticas.

O Didier Portocarrero, técnico do time —  ou da família, como se refere ao Chocó Unido F.C — conta que esse projeto seria importante para buscar uma certa reparação social e cultivar uma base sustentável para se desenvolver e atuar em qualquer atividade. O que procuramos é alargar o espectro, atingir tanto os jovens que têm condições desportivas, quanto aqueles que não têm condições econômicas de pertencer a um clube”. 

O Chocó Unido F. C. foi campeão categoria sub-17 Liga de Chocó, em dezembro de 2019. Na primeira fileira, à esquerda, o técnico Didier Portocarrero
O Chocó Unido F. C. foi campeão categoria sub-17 Liga de Chocó, em dezembro de 2019. Na primeira fileira, à esquerda, o técnico Didier Portocarrero [Imagem: Arquivo Pessoal/Chocó Unido]
Essas significações e reivindicação por um certo tipo de cidadania da Chocó Unido também estão presentes na Goal2Soul, uma startup social planejada pelo colombiano Julián López. Como espectador da Copa do Brasil de 2014, onde esteve presente, ele diz ter percebido um certo poder significativo no futebol. 

“Não é só um esporte, é uma religião, uma linguagem. Algo maior que o esporte”, diz. Isso teria sido um dos motivos que o levou a criar um projeto para, assim como a Chocó Unido, dar vazão à potência criativa de crianças e adultos, pela atribuição de um significado ao futebol. Algo que viria no próprio nome, “um gol para a alma”. 


No Brasil, Associação Pequeno Mestre

Os projetos comunitários direcionados ao esporte também marcam presença no Brasil. Em um país que é uma potência futebolística, muitas crianças sonham em ser jogadores profissionais do futebol e se inspiram em muitos ídolos nacionais para isso.

A Associação Pequeno Mestre, localizada na região do Capão Redondo, em São Paulo, faz do esporte um atrativo em seu trabalho, o qual é destinado a contribuir com a vida de muitas crianças e jovens carentes do bairro, dando-lhes novas oportunidades e visões do futuro.

“Nosso bairro é exótico. Tem faculdades, grandes mercados, grandes projetos, metrô, mas existem muitas favelas, muitas ocupações, e muitos núcleos pobres aqui dentro”, conta Cezar Snyper, diretor da Associação. Ele também ressalta que os problemas estruturais são comuns na área, como transporte público e principalmente saneamento básico e moradia. 

“Nós estamos falando de comunidades em que muitas famílias de cinco ou seis crianças vivem em barracos erguidos por colunas de madeira. As paredes são de lençóis que são colocados em volta desses barracos por fora para serem chamado de ‘casa’, muitas vezes sem nenhum banheiro”, explica. Snyper, inclusive, acredita que essa situação é responsável por causar forte violência psicológica nas crianças, uma das questões contra as quais ele luta.

O diretor já foi atleta profissional de basquete e também conquistou inúmeros prêmios em campeonatos de artes marciais não só no Brasil, mas também na América Latina. Ele, que viveu toda sua infância no bairro onde hoje está localizado o projeto – considerado um dos bairros mais violentos pela ONU na década de 1990 – afirma que as políticas públicas são extremamente escassas. “Assim como os outros bairros carentes por São Paulo, só somos procurado pelos políticos ou pelo poder público em época de eleição, ou seja, um ano sim e outro não”, lamenta.

No entanto, ele viu o cenário em que vive como palco para dar vida a Associação Pequeno Mestre. Hoje, oferecendo aulas de balé, artes marciais, futsal, handebol, natação e outras modalidades, o projeto permite que as crianças e jovens locais tenham um contato saudável com o esporte. Ao mesmo tempo, a equipe se aprofunda nas inúmeras dificuldades de suas famílias, com o objetivo de entender seus problemas e ajudá-los de forma direta.

A natação e hidroginástica são duas das atividades oferecidas pela associação aos jovens, crianças e até mesmo adultos
A natação e hidroginástica são duas das atividades oferecidas pela associação aos jovens, crianças e até mesmo adultos [Imagem: Divulgação/Associação Pequeno Mestre]
“Nós começamos a visitar a casa dessas crianças, conversar com seus pais e, em muitos casos, vimos que o pai não tinha um emprego há mais de dois anos, por exemplo. Quando verificamos mais a fundo, o problema era o alcoolismo”, relata. 

Cezar também conta que em uma das primeiras aulas de kung fu da associação, conheceu um aluno que não tomava café da manhã antes dos treinos, pois sua família não tinha condições. “Esse foi um baque que nós tomamos. Como que pode uma criança não ter um café da manhã em um país tão rico como o Brasil?“

Outro problema lidado pela associação é a captação de recursos. Ela recebe doações e incentivos fiscais para seu funcionamento, mas são poucas empresas que contribuem com a causa. Assim, é muito difícil garantir a estrutura e o orçamento adequado para receber novos alunos e prestar auxílio às dificuldades familiares comuns no projeto. Muitos deles, a partir dos 16 anos, deixam de frequentar os treinos devido à necessidade de emprego, e uma das aplicações financeiras da ONG é voltada para a permanência desses jovens no projeto, sem que suas preocupações financeiras sejam obstáculos.

Atualmente, as atividades da Associação Pequeno Mestre estão espalhadas por toda a Grande São Paulo e existem mais unidades a serem abertas. Uma delas, é a de Aracruz, cidade do Espírito Santo, que já está em funcionamento. Cezar vê tudo isso como uma vingança positiva contra a sociedade que não lhe abriu portas na infância e, hoje, é justamente esse o foco de seu trabalho  — cada vez mais requisitado nas regiões em que atua.

“Sabemos que a procura é grande. São várias crianças e adolescentes que precisam de ajuda, mas se nós conseguimos resgatar um, já é motivo de orgulho e com certeza mudaremos a vida dessa família”, conclui.


Esporte serve para…

O esporte pode ser por vezes interpretado como uma ferramenta utilitária. Ele seria capaz de promover a ascensão social de uma parcela da população, resolver problemas estruturais de determinadas regiões e, até mesmo, a partir de um discurso salvacionista, contribuir para transformar positivamente os rumos na vida das pessoas. Há exemplos para todos esses casos, e muitos projetos sociais partem desse discurso.

Mas a atividade esportiva é conduzida por seres humanos em contextos específicos. Para Marco Stigger, ex-diretor do grupo de políticas públicas esportivas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um discurso hiper positivo do esporte poderia ser motivo de desconfiança.

O professor, que estudou diversos projetos sociais esportivos em comunidades periféricas, tem uma visão crítica sobre a ideia de que o esporte fundamentalmente serve para determinados fins: “Há uma parcela de pessoas que encontram no esporte tudo de positivo. Acreditam que ele teria elementos próprios. Existe alguma coisa na vida social que pode ter elementos internos? Isso não existe. Essas coisas são sempre vividas pelas pessoas que as presenciam”.

Para além de ser algo positivo ou negativo, a prática esportiva e os projetos que se baseiam nela podem favorecer diferentes tipos de socialização. “A circulação por inúmeros ambientes diferentes pode oferecer uma carga educacional heterogênea”, comenta o professor. Com isso, as possibilidades de significado social no esporte são muitas, e não emanam necessariamente de sua prática. Vivido de maneiras particulares, os indivíduos se relacionam uns os outros e vão, assim, se educando.

O paralelo entre esporte e desenvolvimento social pode, então, ser pensado a partir dessas diferentes significações estabelecidas. Alguns projetos sociais voltados ao esporte, por exemplo, mesmo que apresentem limitações na tentativa de oferecer uma socialização positiva, podem contribuir para a construção de significados em espaços onde o acesso ao esporte não é realidade palpável.


A falta de acesso

Juan Araya, Julián López, Mateo Pedraza, Cezar Snyper. Todos eles foram movidos pela ausência. A falta de oportunidades de acesso ao esporte em determinadas regiões fez com que várias iniciativas fossem criadas, escancarando ainda uma série de outros problemas. 

Talvez por isso sejam tantos os projetos que concebem o esporte como uma suposta ferramenta para o desenvolvimento social: quando há uma lacuna, esforços são reunidos para contorná-la. E muitos desses projetos são uma grande oportunidade para pessoas terem acesso a esse mundo esportivo.

“[Os projetos sociais] atuam muitas vezes onde o Estado não está presente. O Estado não vai, e eles estão presentes, fazem suas práticas e inserem isso em demandas coletivas para o Estado. E vão, inclusive, transgredir para ocupar esses lugares”, comenta Marco Stigger, reivindicando uma discussão sobre a intervenção social pela ideia do acesso e não simplesmente pela dimensão utilitária do esporte.

Cada projeto tem uma abordagem diferente sobre conceitos como cidadania e inclusão. É a partir disso que vão atribuindo significação ao esporte e revelando um plano de fundo maior, referente a reivindicações por demandas de lazer — o que pode, por vezes, ficar como última necessidade.

“Tem uma fala de um líder comunitário que é perfeita: ‘nós estamos disputando jovem a jovem’. O que é disputar? Ele está disputando com quem? Está disputando o processo de socialização”, acrescenta Stigger. No Capão, em Quibdó ou em Santiago, o que esses projetos propõem é uma disputa de espaço, de oportunidades e, sobretudo, de direitos.

 

Especial América Latina | Jornalismo Júnior

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