Em entrevista ao Arquibancada, Abdulbaset Jarour, refugiado sírio no Brasil e ativista pela defesa de pessoas em situação de refúgio, conta detalhes sobre a prática esportiva em localidades controladas pelo Estado Islâmico. Aos 20 anos, Jarour foi convocado para servir no Exército e trabalhou como motorista de um general de Bashar al-Assad. O serviço militar obrigatório trouxe experiências de violência em meio ao conflito entre soldados de al-Assad, o grupo Estado Islâmico e rebeldes.
O Estado Islâmico
A partir da Primavera Árabe e da onda de protestos em diversas nações, o grupo se beneficiou da instabilidade política. Em pouco tempo, o Estado Islâmico avançou em território sírio e entrou em combate com demais organizações rebeldes, tais como o Exército Sírio Livre (FSA) e a Frente Islâmica, grupo fundamentalista composto pela união de sete grandes facções islamitas.
Com o início da guerra civil no país, o EI passou a atuar nos dois lados da fronteira entre Síria e Iraque, expandindo para outras localidades no Oriente Médio e África.
Amparados pelo extremismo religioso, a organização wahabista compreende que a luta violenta pode ser aplicada a fim de impor a sharia (em árabe, شريعة), leis islâmicas que pregam uma união entre estado e religião.
O Estado Islâmico no Iraque e Síria (ou Levante) — sigla, em inglês, conhecida como ISIS (Islamic State in Iraq and Syria) e, em árabe, DAESH (دايش) — é autoproclamado como califado. Portanto, aborda os fundamentos do Alcorão e condena aqueles que não compartilham da mesma ideologia.
Atualmente, é considerado como organização terrorista estrangeira pelas Nações Unidas e pela União Europeia. Em 2020, Abu Bakr al-Baghdadi foi identificado como o novo líder do ISIS.
A prática esportiva
No livro sagrado muçulmano, o profeta Mohamad recomendou: “Ensinem aos filhos a natação, o tiro e a equitação”. A vida antes da chegada do Estado Islâmico era diferente. A prática de diversos esportes coletivos ocorria e outras modalidades eram permitidas.
Como o principal objetivo do DAESH é reproduzir o modo de vida de forma semelhante aos tempos do clérigo no século VI d.C., os esportes modernos são rejeitados.
Dessa forma, as regiões controladas pelo grupo devem cumprir o que determina o Alcorão. Contudo, não existe uma padronização de regras, pois a situação depende de quem está no controle local.
“Na maioria das cidades controladas pelo Estado Islâmico, natação e corrida a cavalo não estão disponíveis. A única opção dos meninos nas escolas costuma ser treinar tiro ou praticar outras técnicas de combate”, afirma.
Jarour também explica que o tiro a qual Mohamad se referiu não era com armamentos modernos, já que eles não existiam naquela época. Os muçulmanos possuíam o hábito de competir no tiro ao alvo, com arco e flecha ou dardos. Houve uma adaptação para a atualidade e o uso de armas de fogo passou a ser incentivado em meio ao terror.
Jarour ainda destaca que “há relatos de que o futebol seja proibido por este grupo e, quando alguém ousa ao menos usar camisas de times, pode levar chibatadas, ser preso ou executado”, o que já ocorreu em 2015 e 2016. Por esse motivo, jovens tentam jogar futebol de maneira escondida, “como se cometessem um crime”, diz.
Os jihadistas não concordam com a idolatria de personalidades, já que Mohamad é a maior referência existente e não deve ser desrespeitado. Jarour relembra de episódios em que pôsteres contendo imagens de atletas foram arrancados de cafeterias devido à intolerância. As regras mencionadas também são seguidas pelos integrantes do Estado Islâmico, pois são contrários a outras doutrinas.
Por fim, o ativista afirma que a prática esportiva é importante para a manutenção da saúde, mas é impossível em um cenário de guerra. “Você pensa em entrar em um buraquinho para se esconder e sobreviver”.
O estádio Raqqa
Localizada no nordeste da Síria, a capital da província de mesmo nome, Raqqa foi uma das primeiras localidades dominadas pelo Estado Islâmico. Também foi palco de vários golpes chocantes e bombardeios aéreos da coalizão internacional contra o grupo.
O estádio local teve seu subsolo transformado na principal prisão da cidade e apresenta marcas das barbáries cometidas pelos fundamentalistas. Em 2017, foram encontrados cartuchos de munição, além do registro “sala de interrogatório” na entrada de uma de suas dependências. Prisioneiros escreveram mensagens ao registrar seu desespero nas paredes: “Ajude-nos, Deus nosso”.
O jornalista Stuart Ramsay mostra a antiga prisão no estádio de Raqqa. [Vídeo: Stuart Ramsay / YouTube sky news]
Em entrevista à agência de notícias francesa Agence France-Presse (AFP), Aziz al Sajer, ex-jogador do time de futebol local, o Al Rashid, relata que buscou refúgio em sua cidade natal. Após investigações do Estado Islâmico, foi preso e permaneceu em Raqqa por um mês dentro dos muros do estádio.
Segundo ele, durante três anos sob controle do DAESH, houve privações no esporte. “Eles odiavam futebol, nós jogávamos escondido”, relembra. Al Sajer também afirma que o grupo confiscou todas as camisas e exigiu, obrigatoriamente, que a roupa deveria ir até abaixo dos tornozelos. “Não podíamos mostrar o nome do Real Madrid ou do Barça nas camisas. Podíamos ir presos por isso”.
A ex-capital do califado foi recuperada em outubro de 2017 pelas Forças Democráticas Sírias (FDS), uma coalizão antijihadista de curdos e árabes.
Aos poucos, a cidade tem se reconstruído. Os torcedores e jogadores podem ir à Raqqa: não mais como uma prisão, mas como estádio. Assim, reecontram o futebol, um dos esportes não autorizados pelo Estado Islâmico devido à interpretação rigorosa do Alcorão.