Em um período inferior a 10 anos, o público de grandes empresas de cinema, como a Disney, vêm sendo bombardeado com remakes de narrativas de animação em formato ação livre (live-actions). Só pela produtora, foram mais de seis filmes produzidos entre 2014 e o primeiro trimestre de 2019, o que significa que uma produtora sozinha está lançando um filme por ano que não é uma história original. A questão toma proporções maiores ainda quando olhamos a lista de live-actions a serem lançadas pela empresa de 2019 para frente: serão cinco filmes de ação livre em um espaço temporal menor que um ano! E não é falta de sensibilidade afirmar que muitos desses filmes, apesar de seu valor simbólico para as gerações que cresceram com os desenhos, são extremamente desnecessários e não vieram da bondade da Disney de providenciar um visual fresco e mais atual para as animações dos anos 90. O objetivo aqui é capitalizar às custas da nostalgia do espectador. E como ela consegue fazer isso!
Só com as recontagens de A Bela e A Fera (Beauty and the Beast, 2017), Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 2010), Mogli: O Menino Lobo (The Jungle Book, 2016), Malévola (Maleficent, 2014) e Cinderela (Cinderella, 2015) o estúdio lucrou quase cinco bilhões de dólares.
Trazer à tona essa problemática não é desvalorizar esses filmes ou quem está por trás deles, mas pensar em como essa onda de franquias navegada pelos grandes estúdios, como a Disney, é nociva para a indústria e, principalmente, para os animadores e estúdios fora do eixo principal. Essas live-actions são produções nas quais não importa o tamanho dos gastos, vão gerar lucros muito maiores. Mas só para quem já estava ganhando. Isso significa que o live-action de Aladdin (Aladdin, 2019), por exemplo, vai gerar imensos lucros para a produtora e nada para quem participou da produção do filme animado. Ou seja, todo aquele investimento para a produção de algo original não está entrando na conta.
A adaptação em ação livre de filmes de animação, apesar de ser inofensiva em sua unidade, representa complicações para um mercado difícil e impiedoso para o cinema não-hegemônico. Além de trazer uma afirmação em si: não serão pensadas categorias dentro da indústria cinematográfica para a animação, confinada ao posto de desenho animado para crianças, de gênero infantil.
E aí quando colocamos na mesa filmes como Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019), Minions (The Minions, 2015) e Cisne Negro (Black Swan, 2010) o panorama de produção de filmes animados só se complica.
Vamos começar com Cisne Negro. O aclamado filme de Darren Aronofsky tem suas inspirações em outro drama psicológico sobre questionamentos de identidade, saúde mental e problemas da indústria artística, só que contado na forma de animação em 1997. A produção japonesa Perfect Blue, dirigida por Satoshi Kon, traz a história de Mima (Nina, oi?), ex cantora pop e atriz iniciante que enfrenta uma indústria cruel e tóxica para se consolidar no ramo: estupro, abuso de poder e manipulação psicológica são alguns dos temas que o filme toca, gatilhos para a deterioração mental da protagonista. Além das semelhanças em escolhas estéticas dos dois filmes, Cisne Negro e Perfect Blue possuem o mesmo fio condutor: são narrativas de terror psicológico que mostram a alienação das protagonistas em relação a outras personagens. Mima com sua atuação em uma série policial e Nina com a sua dança na peça Cisne Negro. São dois longas incríveis em suas particularidades, mas que trazem uma reflexão necessária sobre como a indústria desvaloriza animações e infantiliza esse meio, fechando espaços para outras narrativas.
Há quem não veja as semelhanças entre os dois filmes ou as coloque como pura coincidência. O que logo cai por terra ao investigar um pouco mais e descobrir que Aronofsky tinha comprado os direitos de Perfect Blue para outra produção sua. Quando indagado acerca da semelhança de narrativa e uso de cortes emblemáticos da animação na direção de Cisne Negro, afirmou que não tinha nenhuma relação com a outra trama. E, enquanto não tem nada propriamente errado em buscar inspiração em outras narrativas para criar a própria, afinal, o filme consegue se sustentar sozinho, ele, sendo uma cópia ou não de Perfect Blue, inegavelmente não existiria sem o segundo. Coloca na equação uma indústria xenofóbica que nega produções fora do seu padrão autorizado e que desvaloriza animações por serem animações e temos aí a cereja do bolo recheado de desastre.
Satoshi Kon estava a frente de seu tempo com uma narrativa de suspense fantasioso, diferente de tudo que já tinha sido feito, tanto no cinema de ação livre quanto na animação. É curioso pensar em como sua produção segue sendo conhecida por poucos e Cisne Negro mantém um legado desde seu lançamento.
E, bem, o problema disso tudo é que enquanto animações de ciclos fora do eixo Estados Unidos-Europa ou que trazem narrativas não-convencionais encontram um mercado cheio de muros e espinhos ou simplesmente, não chegam a entrar nele, os remakes em live-action de animações antigas, filmes de franquia e blockbusters vêm ocupando cada vez mais espaço nas salas de cinema, tanto dos próprios locais de produção quanto em países da América Latina, África e Ásia, o que é um baita baque para a produção regional e alternativa.
Aí que entra o porquê do sucesso de filmes como Vingadores: Ultimato e Minions não serem algo tão bom assim. Os dois são longas de grandes estúdios e representam franquias, um lançado agora e outro já consolidado, um live-action e outro animação. Minions, com um orçamento de 74 milhões USD (dólares), faturou 1,159 bilhão USD e isso só de bilheteria, sem contar todo o dinheiro arrecadado em merchandising e vendas paralelas. Essa intensa quantia de lucro veio do domínio de salas exercido durante a exibição do longa pela Universal Studios sendo passado em 4,301 cinemas nos Estados Unidos durante 161 dias, com uma percentagem de arrecadação de venda de ingressos considerável. Atualmente o filme não está nem no top 10 de longas com maior número de salas ocupadas! O que elimina qualquer competição saudável com outros filmes fora da produção mainstream, que são relegados a salas de cinema menores (e muitas vezes mais caras), comprometendo a possibilidade de um marketing efetivo e o número de pessoas que vão assistir a uma programação desviante. Problemática que, além de desmotivar animadores e cineastas independentes de adentrarem no mercado internacional, cria um rombo de grandes proporções para aqueles que já estão atuando na indústria.
Quando o assunto é Disney, Vingadores e Brasil, a questão se complica ainda mais. O universo do MCU é um dos maiores ganha pão da produtora e esse dinheiro todo vem da adaptação para TV de, bom, quadrinhos (desenhos, né?) já existentes. O que a Disney faz e tem tido muito sucesso com isso é pegar histórias já prontas e transformá-las em luta bombástica com direito a músicas emocionantes e muito efeito especial. Hoje, a franquia, representada pelo mais recente filme dos Vingadores, conseguiu sozinha ocupar 80% dos cinemas brasileiros! Fato longe de ser positivo, pois significa uma série de filmes desalojados no circuito exibidor, com suas estreias adiadas, afetando não só o cinema nacional, mas outras produções fora do polo hegemônico.
E quando é considerado o fim do patrocínio da Petrobras em diversos projetos culturais, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Anima Mundi, toda a produção cinematográfica e cultural brasileira é ameaçada. Daí o problema em perpetuar noções errôneas de que assistir a desenhos animados é coisa de criança e de que a produção massificada de live-actions e blockbusters dos grandes estúdios é algo positivo e legal, não uma facada no mercado e no cinema não-hegemônico.
Em momentos em que a cultura é ameaçada, se faz mais que necessário a valorização do que é nosso e do que é desvirtuado por quem tem poder. A arte é a antítese da violência e da censura, por isso, onde ela está presente é onde há força e garra para lutar. Que se faça arte, em todas as suas formas.