Quando as casas de apostas calcularam suas premiações e os palpiteiros de bolão fizeram suas projeções antes da Copa do Mundo de 2022, certamente o Marrocos não estava entre os favoritos. Certamente, quem apostou no Marrocos como semifinalista ganhou uma grana. E é certo também que quem palpitou a favor do país africano, disparou na tabela do bolão. Exceção feita a Samuel Eto’o, ninguém sequer cogitou a possibilidade de os marroquinos chegarem tão longe.
Marrocos nunca chegou. Africanos nunca chegaram. Países de maioria islâmica, só um: a Turquia de 2002. Mas aconteceu. Os Leões do Atlas passaram em primeiro lugar em um grupo com duas favoritas (Bélgica e Croácia), eliminou a nova geração da Espanha nas oitavas de final e Portugal de Cristiano Ronaldo (ainda que ele tenha ficado no banco) nas quartas. Tudo isso sofrendo apenas um gol, contra, na vitória diante do Canadá, por 2 a 1, na primeira fase. Tudo isso com um estilo de jogo muito claro e jogadores conscientes de suas tarefas dentro de campo.
Tudo isso unindo talentos individuais a um excelente trabalho feito em três meses pelo treinador Walid Regragui. No dia 14 de dezembro, o Marrocos entrou em campo em Al Khor para desafiar a estatística, as probabilidades, a história! Isso porque a adversária da semifinal era nada mais, nada menos, do que a França, histórica colonizadora do país do norte da África. Logo, a vaga na final da Copa estava, sim, em jogo. Mas não só ela.
A França, por sua vez, assustou o mundo quando anunciou sete cortes de jogadores importantes da seleção, incluindo cinco titulares e o atual melhor do mundo, Karim Benzema. Contrariando a queda projetada, porém, passou em primeiro lugar em grupo que teve a Austrália como surpresa, a Dinamarca como decepção e a Tunísia vencendo a equipe reserva de Les Bleus, na última rodada. Depois, os franceses derrotaram a Polônia com autoridade e passaram pela Inglaterra nas quartas, em um dos melhores jogos do Mundial do Catar. A França era favorita, mas talvez não se pudesse imaginar tamanha confiança e consistência de uma equipe com tantos desfalques e com um fim de ciclo de resultados ruins no pré-Copa.
Primeiro tempo: Marrocos envolvente, França letal.
Se não bastassem os desfalques que a seleção francesa já tinha, Didier Deschamps perdeu mais dois atletas para o duelo com o Marrocos: o zagueiro Upamecano e o meio-campista Rabiot, com sintomas gripais, que foram substituídos por Konaté e Fofana. Walid Regragui, por sua vez, teve o retorno de Mazraoui, que ficou de fora do jogo contra Portugal por lesão. O zagueiro Aguerd não se recuperou a tempo da partida, enquanto o capitão Saïss, que sentiu dores contra a Espanha e saiu contundido do jogo das quartas, também voltou a tempo de jogar a semifinal. A única mudança tática da seleção marroquina em relação aos outros jogos se deu pela saída de Amallah, meio-campista, para a entrada de Dari, zagueiro, em uma clara intenção de aumentar o poderio defensivo da equipe e conter o ataque francês, além de dar mais liberdade aos seus jogadores de criação.
Apesar deste reforço, a melhor defesa da Copa foi vazada com menos de 5’ de jogo: Varane deu lindo passe entre três defensores adversários até que a bola chegasse a Griezmann, que girou sobre o marcador, entrou na área e rolou para Mbappé. O camisa 10 tentou finalizar por duas oportunidades, a bola bateu em Giroud e sobrou para Theo Hernández golpear para o fundo do gol. O passe de Varane e a genialidade de Griezmann foram tão inesperados que a defesa marroquina ficou perdida na jogada. Tanto Hakimi como Ounahi, que costumam marcar pelo lado direito, foram para o meio da área tentar bloquear as tentativas de Mbappé – e eram cinco nessa função. Quando a bola sobrou para Theo, não havia ninguém para incomodá-lo. 1 a 0 França e o primeiro gol sofrido por Marrocos vindo dos pés de um jogador oponente.
O que se viu daquele momento em diante, porém, foi algo diferente do que se imaginava: Marrocos tinha a posse da bola a maior parte do tempo (56% no primeiro tempo e 67% no segundo), enquanto a França, assim como tinha feito contra suas duas melhores adversárias tecnicamente até então – Dinamarca e Inglaterra – não fazia questão de ter a bola exceto quando fosse para atacar, de fato. Ainda que Didier Deschamps possa ter feito isso estrategicamente, baseado na partida entre Argentina x Croácia – em que os croatas tiveram mais posse de bola – o argumento cai por terra a partir do momento em que a equipe de Regragui, diferentemente da Croácia, sabe muito bem o que fazer com a bola no campo ofensivo. A partir dali, a defesa francesa seria testada.
Aos 10’, Ounahi arriscou de fora da área para grande defesa de Lloris. A seguir, com 16’, Boufal recebeu ótimo passe de Ounahi, girou para cima da marcação, arrancou e rolou para Ziyech, que finalizou para fora. Logo após o tiro de meta, Konaté achou um lançamento brilhante para Giroud, que ganhou de Saïss, correu e bateu forte na trave. Saïss, por sua vez, saiu, aos 21’, para a entrada de Amallah – aquele mesmo que tinha saído do time. O capitão marroquino jogava claramente no sacrifício e acabou não aguentando. A volta de Amallah à equipe trazia ainda mais obrigações defensivas a Amrabat, que no momento defensivo recuava quase como o terceiro zagueiro que era Saïss.
Hakimi é, talvez, o principal jogador do Marrocos, e faz brilhante Copa do Mundo, sendo o jogador com mais desarmes na competição (23) e se provando também valioso na parte defensiva. Quando seu time tomou um gol aos 5’ de uma semifinal de Copa, porém, ele acabou abdicando em grande parte da defesa, e tanto a jogada de Giroud como o lance de perigo seguinte aconteceram pelo lado direito da defesa marroquina – que tem como lateral o camisa dois. Aos 36’, Tchouaméni avançou com a bola pelo meio, deixou dois marcadores para trás e fez ótimo passe nas costas da defesa para Mbappé, que dominou e por pouco não marcou. El Yamiq afastou, mas a bola sobrou para Tchouaméni, que tocou para Giroud, sozinho, perder um gol incrível.
As chances francesas cessaram por aí, e aos 44’, após escanteio cobrado por Ziyech, a bola sobrou para El Yamiq virar uma linda bicicleta, que pegou na trave direita de Lloris. No lance seguinte, Boufal bateu para fora.
Segundo tempo: foi quase!
Para a segunda etapa, Regragui tirou Mazraoui, que não tinha condições de atuar os 90’, para colocar o bom Attiyat Allah. A partida recomeçou no ritmo do final do primeiro tempo: com Marrocos no ataque, conseguindo belas jogadas, principalmente pelo lado direito, com Hakimi e Ziyech. E era o jeito, já que os dois são os melhores jogadores do time e a defesa francesa tinha, pelo lado esquerdo, Theo Hernández, que é muito mais ofensivo do que Koundé, do outro lado. Além disso, Mbappé, que também joga pela esquerda, não contribui tanto na defesa.
A França não teve vida fácil! O ataque dos Leões do Atlas se mostrou tão organizado quanto a defesa, e deu trabalho para Les Bleus. Com 53’, após jogada de ultrapassagem pela direita, Boufal (que é ponta esquerda mas apareceu bastante pelo outro lado) cruzou para a área e a bola sobrou para Attiyat Allah, que bateu mal. No lance seguinte, Attiyat Allah, novamente, foi acionado, agora por Ounahi. Ele foi até a linha de fundo, cruzou e a defesa francesa impediu que o gol saísse. Na sobra, Amrabat disparou para fora. Era pressão marroquina!
Nos minutos seguintes, o Marrocos seguiu tendo a bola e tocando em torno da área, mas sem ameaçar o gol de Lloris. Isso piorou aos 66’, quando Regragui tirou Boufal e En-Nesyri para as entradas de Hamdallah e Aboukhlal. A busca era por renovar seu ataque fisicamente, mas em qualidade o time perdeu. Enquanto isso, Deschamps tirou Giroud, centralizou Mbappé e colocou Marcus Thuram pela esquerda do ataque. Thuram chamou faltas importantes para a manutenção da posse por Les Bleus. Em uma dessas faltas, Griezmann – o melhor em campo – cruzou e a bola sobrou para Koundé. O camisa 5 encontrou Mbappé, que fez jogada individual e bateu, mais uma vez, travado.
Com 71’, Thuram cabeceou para fora após cobrança de falta de Griezmann. Logo depois, Fofana escapou e abriu para Thuram, que devolveu para o camisa 13 chutar para fora. Com 78’, Amallah, que entrara no primeiro tempo, deu lugar a Ezzalzouli, do lado marroquino. O jovem barcelonista de apenas 20 anos tinha entrado bem nos jogos da primeira fase e não foi diferente na partida de ontem. Ele trouxe o refino técnico e a velocidade que tinham sido perdidos nas saídas de Boufal e En Nesyri. Do lado europeu, Dembélé foi substituído por Kolo Muani. E foi ele o responsável por dar números finais à partida: após jogada individual de Mbappé, a bola sobrou para o camisa 12 guardar, em seu primeiro toque na bola: 2 a 0! Foi o terceiro gol mais rápido de um substituto em Copas do Mundo: 44’’! O recorde pertence a Morales, do Uruguai, que marcou após 16’’ em campo contra Senegal, na Copa de 2002. Outro detalhe interessante é que Kolo Muani sequer iria para a Copa do Mundo. Sua convocação ocorreu após a lesão de Nkunku, já no período de preparação.
O cenário do primeiro gol se repetiu: Mbappé, cercado, não conseguiu finalizar a gol. Sorte dele, e azar do Marrocos, que Theo Hernández e Kolo Muani estavam lá para conferir.
O Marrocos não desistiu e seguiu no ataque. Aos 92’, Ounahi finalizou para fora. Dois minutos depois, Ezzalzouli fez linda jogada individual pela esquerda, deixou Griezmann e Koundé para trás e rolou na área. A bola sobrou para Ounahi, que pegou de primeira e acertou a marcação. Hamdallah ainda desviou e a defesa afastou. Final de jogo, 2 a 0 e, como bem descreveu Jorge Iggor, da TNT Sports: “França na final, Marrocos na história!”.
Para a França, fica a esperança pelo tricampeonato. Será a quarta final francesa nas últimas sete Copas. Além disso, pela quarta vez uma seleção chega à final duas vezes seguidas. Dentre as campeãs, a Itália (1934 e 1938) e o Brasil (1958 e 1962), foram bicampeões, e a Argentina (1986 e 1990) não conseguiu o feito. Já o Brasil de 1998 e 2002, fez o caminho oposto, perdendo a primeira final e vencendo a segunda. Ao final da partida, Blaise Matuidi, campeão em 2018, foi ao vestiário comemorar com os jogadores, bem como o presidente Emmanuel Macron.
Já o Marrocos tem muito do que se orgulhar. Contra todos os prognósticos e preconceitos possíveis, soube defender quando tinha que defender e atacar quando tinha que atacar. Quebrou recordes, revelou ótimos jogadores e um brilhante treinador a um mundo que talvez não quisesse vê-los – a seleção da Copa e a próxima janela de transferências devem refletir tudo isso. Mostrou que não é preciso ter medo de jogar futebol e que é possível aliar técnica, tática e mental mesmo sem os melhores atletas. Encantou com sua torcida e ainda agregou apoio do mundo inteiro. A caminhada não acabou, e ainda tem mais um confronto por vir, contra outra seleção que se provou muito capaz mesmo sem o melhor time: a Croácia.
Próximos passos:
A grande final da Copa do Mundo do Catar 2022 será disputada no Estádio Lusail, em Lusail, no domingo (18), ao meio-dia, entre Argentina (que derrotou a Croácia por 3 a 0) e França. A Argentina vai em busca do tricampeonato, após ter vencido em 1978 (na Argentina) e em 1986 (no México), assim como a França, campeã em 1998 (na França) e em 2018 (na Rússia). O Marrocos ainda não finalizou sua participação, e enfrenta a Croácia na decisão do terceiro lugar, no sábado, ao meio-dia, no Estádio Internacional Khalifa, em Doha. Se alguém acha disputas de terceiro lugar sem graça, basta perguntar a marroquinos e croatas e descobrir o quanto isso vale para eles.
Ficha técnica:
França (4-3-3): Lloris; Koundé, Varane, Konaté, Theo Hernández; Tchouaméni, Fofana; Dembélé (Kolo Muani, 79’), Griezmann, Mbappé; Giroud (Thuram, 65’). [Arte: Ricardo Thomé]
Marrocos (5-4-1): Bono; Hakimi, Dari, Saïss (Amallah, 21’ (Ezzalzouli, 78’)), El Yamiq, Mazraoui (Attiyat Allah, 46’); Ziyech, Ounahi, Amrabat, Boufal (Aboukhlal, 67’); En-Nesyri (Hamdallah, 66’). [Arte: Ricardo Thomé]
Gols: Theo Hernández (5’) e Randal Kolo Muani (79’) – FRA
Cartões amarelos: Sofiane Boufal (27’) – MAR