Uma prática antes tão incompreendida, agora o grafite caminha para os vieses da arte.
Por William Luz (willnunes94@gmail.com)
Apesar de fincar suas raízes mais profundas na Roma Antiga, o grafite contemporâneo eclodiu no mundo durante a década de 70. Nesta época, a história passava por grandes adversidades que colaboravam para maximizar uma mentalidade revolucionária: a primeira seria a bipolarização entre o capitalismo e o socialismo, em um cenário de tensão entre EUA e União Soviética. Outras problemáticas foram as crises do petróleo e, é claro, a ditadura militar no Brasil. Por último, foi nesta década em que surgiu a cultura hip-hop. Este movimento artístico exteriorizou os dramas protagonizados pela periferia dos Estados Unidos e rapidamente a ideia de expressar-se, presente no próprio grafite, afixou-se como uma espécie de “pilar” representativo.
Desde sua etimologia, o termo grafite carrega definições controversas. No seu artigo em inglês da Wikipédia, é possível encontrar uma referência à atividade como uma inscrição gravada em locais públicos sem autorização. É esta a definição que abre um questionamento acerca de toda uma ideologia por detrás das obras atuais. Antes, a prática ilícita do grafite era inseparável do movimento. Hoje, na maioria dos casos, os muros e paredes são espaços concedidos pelo governo e, portanto, legalizados. Para alguns, esta é a saída para que este exercício seja desatrelado do cunho marginalizado que ganhou, enquanto, para outros, tal aplicação dentro das rédeas da lei não condiz com o verdadeiro espírito presente no grafite.
Grafite versus pichação
Uma das razões para que a visão popular sobre o grafite seja deturpada é a falta de conhecimento sobre ele. Já foi comum confundir o grafite com a pichação. Apesar de ambos possuírem um contexto social e político praticamente idêntico, a diferença entre os dois tem se tornado cada vez mais clara para a população.
A pichação diverge do grafite por dois motivos: às vezes o seu objetivo é a demarcacão de território de alguns grupos, levando até à disputa de quem alcança os lugares mais altos da cidade. O outro aspecto está ligado com a estética dos pichadores. Ela utiliza, em sua maioria, tipografias, enquanto os grafiteiros tomam como base figuras mais trabalhadas. A exceção da pichação concerne às tags, um tipo de marcação bem próxima do grafite e que fica na ponte entre os dois estilos.
Dos muros aos projetos sociais
Para ratificar a mais recente aceitação do grafite no Brasil, em 2011 foi sancionada lei que reconhece a legalidade dos sprays nos muros em alguns casos. Vale ressaltar que essa aprovação foi, na verdade, para alterar a redação de uma lei de 12 de fevereiro de 1998 e foi adicionado um segundo parágrafo ao artigo. Veja como é agora:
“(…) § 2º Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional”.
Em relação às alterações benéficas na lei, Binho Ribeiro, grafiteiro e curador de eventos como o Graffiti Fine Art, comentou sobre os motivos da boa difusão dessa arte. “O motivo é o amadurecimento dos artistas e das pessoas, a alta qualidade das obras, a degradação da cidade quase abandonada e também os projetos sociais que resgatam centenas de jovens. Assim a cidade ganha e os artistas também”.
Os projetos sociais aos quais Binho se refere são, comumente, responsáveis por incluir moradores da periferia no mercado de trabalho. Um exemplo vinculado ao grafite é o Projeto Quixote, onde jovens em situações difíceis podem participar de cursos e workshops para técnicas de pintura e desenho. Depois, eles vão para a Agência Quixote Spray Arte, onde produzem material com aquilo que aprenderam e comercializam-no. Neste material podem incluir-se desde grafitagem de fachadas até camisetas e móveis. E, além de tudo isso, os jovens são remunerados.
Bem como os planos sociais atrelados a esta arte, eventos indoor e colaborativos também têm dado maior visibilidade para a nobreza que o grafite carrega. O projeto Color+City, desenvolvido pela empresa Google, visa unir e colocar em contato aqueles que desejam ter suas paredes grafitadas e aqueles que desejam deixar nelas suas respectivas obras de arte. Desse modo, os artistas também podem garantir a autorização legal para que certos muros sejam preenchidos, minimizando o estigma de marginalização devido à sua elevação a crime ambiental.
Como representante dos eventos, está o Graffiti Fine Art, que traz grandes nomes da cultura urbana nacional e internacional. Além da temática, o interessante é que o próprio nome do evento já traz em si um paradoxo benéfico. A mistura da palavra “graffiti” (que, em alguns, remete um sentido subversivo) com “fine art” eleva a prática ao patamar artístico. Ao mesmo tempo, o fato de ser desenvolvida uma exposição aos moldes das artes consideras sofisticadas ratifica que o grafite também possui tanta nobreza quanto elas.
Apesar de eventos indoor e autorizações para grafitar abrirem questionamentos acerca da essência frenética da arte de rua, o Fine Art, Color+City e Quixote possuem um objetivo em comum no que diz respeito ao spray no Brasil. “Grandes projetos, exposições e campanhas publicitárias, isso tudo somado ajuda bastante”, disse o grafiteiro Binho Ribeiro quando questionado sobre o que o motiva a continuar nesta mudança de imagem.
A relação inconsistente entre arte urbana e poder público
A política também não fica fora desta esfera artística. Sendo o grafite uma arte que acontece inseparadamente do funcionamento da cidade, as parcerias e intervenções governamentais tornaram-se inevitáveis. Para Binho, a relação do grafite com o governo é confusa. “O grafite ora é agressivo e outrora suave e agradável, então é difícil definir isso. No geral, se apóia o agradável e educacional e se reprime o protesto e o vandalismo”. Não é raro encontrar casos ilustrativos para o que o artista disse. A cidade de São Paulo, maior foco de arte urbana do Brasil, carrega inúmeros deles em seu histórico.
Um exemplo é o caso da fachada da (futura) estação Adolfo Pinheiro do Metrô. Grafiteiros foram convidados a preencher o tapume com suas obras e foi fornecido até o material necessário. No entanto, um dos desenhos dos artistas consistia em uma crítica à Polícia Militar paulistana: uma coxinha uniformizada como policial, com um cacetete na mão, correndo atrás de um punhado de pessoas. A obra foi censurada pela prefeitura passando-se tinta verde somente por cima da “coxinha militar”.
Outra obra que estava presente na fachada representava a seguinite frase: “Todo vagão tem um pouco de navio negreiro”, criticando a situação precária do transporte público na cidade e comparando-a com os navios lotados e em péssimas condições que traziam escravos para o Brasil. Hoje não há mais grafitagens na fachada da Estação Adolfo Pinheiro, ainda em construção.
Em contrapartida à censura, há projetos de parceria com empresários e prefeituras para que os artistas da rua mostrem seu talento. Ainda na cidade de São Paulo, encontramos os casos do Museu Aberto de Arte Urbana (MAAU-SP). As composições desse museu são feitas nas colunas de sustentação do metrô, entre as estações Santana e Portuguesa-Tietê. Além desse caso, são exemplos também as frentes do Edifício Regina, com 36 metros de mural, e de outro prédio na praça Oswaldo Cruz, preenchido com a imagem do rosto de Oscar Niemeyer.
Estes e os casos acima servem para elucidar as contradições às quais o grafite e a cultura urbana, artes antes tão incompreendidas, estão submetidas.