De acordo com cartilha informativa do Ministério da Saúde, métodos contraceptivos ou anticoncepcionais são maneiras, medicamentos, objetos e cirurgias usados pelas pessoas para evitarem a gravidez. Esses métodos são divididos entre femininos e masculinos, e reversíveis e irreversíveis. Os métodos irreversíveis, como a ligadura de trompas uterinas para mulheres e a vasectomia para homens, tornam difícil a recuperação da capacidade de concepção após sua realização. Por isso, para optarem por esses métodos anticoncepcionais, as pessoas precisam estar seguras de que não querem mais ter filhos.
Ainda de acordo com a mesma cartilha, a escolha do método contraceptivo deve ser livre e bem informada. Essa informação deixa implícito que as pessoas que escolhem esses métodos sabem da irreversibilidade do processo e têm acesso a outras formas de proteção. Entretanto, não foi isso que aconteceu no Brasil durante os anos de 1980 e 1990 — nem o que acontece agora.
O portal O Globo mostra que a laqueadura, também conhecida como ligadura de trompas, impede a chegada dos espermatozoides até o ovário, local no qual ocorre a fecundação do óvulo, gerando a gravidez. Nessa cirurgia, as trompas de Falópio são obstruídas, processo que pode ocorrer de três formas: por meio de um corte, amarração ou colocação de um anel. No procedimento, considerado simples e que pode ser realizado dentro do consultório do ginecologista, o profissional realiza um corte nas trompas e depois amarra as suas extremidades, ou só amarra o canal, ou, ainda, apenas coloca um anel nas trompas.
De acordo com Erciliene Moraes Martins Yamaguti, médica assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRP) e docente do Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto, a cirurgia de laqueadura não traz riscos próprios para a saúde da mulher. “Os riscos da laqueadura tubária se associam ao de qualquer procedimento cirúrgico: há o risco da anestesia e o risco do próprio ato cirúrgico”.
Isabel Cristina Esposito Sorpreso, professora associada de Ginecologia do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP, conta que os riscos da laqueadura são referentes à própria cirurgia. Possíveis complicações envolvem a possibilidade de sangramento (hemorragia) intra e pós-operatório, lesão de órgãos adjacentes como intestino e bexiga, complicações tardias como falha do próprio método, dor pélvica e gravidez ectópica.
Para realizar uma laqueadura, uma mulher pode buscar ajuda no Sistema Único de Saúde (SUS). O procedimento, entretanto, não será realizado assim que possível. Segundo a Lei do Planejamento Familiar, aprovada em 1996, antes da cirurgia de contracepção permanente, a mulher é encaminhada para reuniões sobre planejamento familiar, quando também é orientada sobre outros métodos contraceptivos.
Em seguida, a mulher é encaminhada à uma equipe de profissionais como psicólogos, médicos e assistentes sociais, que a informam sobre o procedimento e conversam sobre o seu desejo de realizá-lo, explicando seu caráter permanente. Após o aval da cirurgia, a mulher ainda deve aguardar um período de sessenta dias, chamado de “tempo de reflexão”, para assinar os papéis e ser encaminhada para o procedimento.
O processo não é simples nem rápido, principalmente com as longas filas de espera do SUS. Entretanto, todo esse cuidado não é recente. Segundo a pesquisadora Elizabeth Vieira, no livro A medicalização do corpo feminino, a esterilização feminina começou a ser realizada no século 19, mas somente a partir dos anos 1960 a técnica foi aperfeiçoada e difundida, sobretudo após a introdução da penicilina, que evitou infecções por bactérias durante o procedimento. No Brasil, segundo o pesquisador Aurelio Molina, a realização do procedimento cresceu nessa mesma época acompanhado por uma preocupação governamental de controle populacional.
De acordo com o pesquisador Delcidio Sobrinho, nas décadas de 1970 e 1980, período que contempla a ditadura militar brasileira, muitas mulheres passaram a aderir à esterilização como forma de evitar filhos, ainda que os governos militares tratassem o tema de forma ambígua. Por um lado, havia uma preocupação com o crescimento populacional visando a ocupação de territórios. Por outro, a influência de organizações e outros países preocupados com o controle populacional. O segundo grupo era bem representado pela Sociedade Civil do Bem Estar Familiar (Bemfam) que disseminava o uso de métodos contraceptivos no país e pregava a redução da população de países periféricos como instrumento de combate à pobreza e à violência urbana.
Outro defensor do controle de natalidade da época era o Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Saúde da Mulher e da Criança (CPAIMC), criado em 1974 com fundos das Nações Unidas e de organizações governamentais de países como os Estados Unidos. De acordo com estudo publicado no portal da Revista Fapesp, “o grande debate internacional sobre controle da natalidade tinha como motor a preocupação com a então chamada ‘bomba populacional’ — a ideia, de que o crescimento do número de habitantes do planeta superaria a capacidade de geração de alimentos para todos”.
Assim, a presença estrangeira na forma de apoio a órgãos como o CPAIMC tinha como principal motivação o “desarme da bomba populacional” nos países em desenvolvimento, onde parecia mais perigosa. O objetivo declarado dessas doações era humanitário, o de favorecer a qualidade de vida da população. Entretanto, o objetivo real era outro: os países periféricos, categoria na qual o Brasil se encaixava, poderiam sustentar movimentos de orientação comunista e deveriam ser controlados.
Nesse sentido, matéria publicada pelo The Intercept Brasil denuncia que programas como o CPAIMC “seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger”, produzido em 1975 por encomenda do então presidente americano Gerald Ford. O Relatório, sigiloso na época da publicação, defendia que o crescimento populacional dos países periféricos era uma ameaça para a segurança nacional americana, pois geraria riscos de distúrbios civis e instabilidade política. Para conter o crescimento demográfico desses países, o texto defendia a promoção da contracepção na Índia, Paquistão, Indonésia, Tailândia, Filipinas, Turquia, Nigéria, Egito, Etiópia, México, Colômbia e Brasil.
Outro estudo, publicado pelo portal da Universidade Federal de Goiás (UFG), mostra que as ideias do Bemfam e do CPAIMC foram disseminadas principalmente no Nordeste brasileiro, já que “o aumento populacional destes [estados] seria um entrave ao crescimento econômico mundial”. Essas entidades, financiadas por capital estrangeiro, promoveram o controle populacional e atuaram na promoção de planejamento familiar controlista. O planejamento familiar era majoritariamente embasado na esterilização, o que afetou principalmente mulheres pobres, negras e em situação de vulnerabilidade social.
Nos anos 1990, o governo brasileiro instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os casos de laqueadura durante esse período. A CPI apontou que as atividades do CPAIMC eram orientadas por propósitos eugenistas, dados os indícios de que a “esterilização em massa” visava prioritariamente às mulheres negras, recomendando a abertura de inquérito em âmbito federal, que, entretanto, nunca foi realizado.
Segundo o estudo “Esterilização feminina: liberdade e opressão” que comparou dados de São Paulo de 1965 a 1978, o número de esterilização aumentou 100% nesse período. No Piauí, constatou-se que 93% das laqueaduras foram realizadas após 1970. No Rio Grande do Norte, das mulheres esterilizadas até 1980, 71% o haviam sido na segunda metade da década. O mesmo estudo aponta um fato interessante: há diferenças regionais nos números. Em São Paulo, o ritmo de expansão da esterilização foi mais rápido entre as mulheres de nível mais baixo de instrução e em diversos estados do Nordeste os hospitais estaduais e municipais foram os maiores responsáveis pelos procedimentos.
Dados levantados pelo estudo da UFG mostram que a laqueadura era o método contraceptivo mais utilizado em 1988 (44%), seguido pela pílula anticoncepcional (41%). A esterilização de quase metade das mulheres em idade reprodutiva nessa época, seguida de várias denúncias acerca do tema, levaram à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o uso deste método contraceptivo no que ficou conhecido como o período de esterilização em massa das mulheres brasileiras.
A CPI revelou que a ausência de informações e acesso a outros métodos, bem como a situação econômica da população, foram os fatores que levaram mulheres negras, indígenas e pobres, em sua maioria, a escolherem a esterilização como método contraceptivo. O estudo complementa que “os procedimentos, mesmo sendo proibidos, eram realizados em sua maioria durante o parto, pelo desejo de mulheres que não desejavam outras gestações e não possuíam acesso a métodos contraceptivos diferentes”.
De acordo com estudo publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a CPMI documentou os riscos para a saúde das mulheres que passaram pelo processo da laqueadura de forma indiscriminada e clandestina. O relatório final da comissão, a fim de regular o procedimento no Brasil, cria o Projeto de Lei, posteriormente aprovado no Congresso Nacional e sancionado na forma da Lei nº. 9.263/96. A Lei do Planejamento Familiar, como ficou conhecida, hoje regulamenta o exercício do direito reprodutivo dentro de uma visão de atendimento integral à saúde, proibindo a utilização de ações políticas para qualquer tipo de controle demográfico. A Lei hoje está inserida em um quadro de uma política mais abrangente de educação sexual e planejamento familiar.
Hoje, a laqueadura ainda é um dos métodos anticoncepcionais mais utilizados no Brasil e no mundo. Segundo dados do relatório de métodos contraceptivos das Nações Unidas de 2019, último levantamento disponível, a esterilização feminina é o método contraceptivo mais utilizado no mundo, representando 24% do total. A camisinha masculina, segundo método mais utilizado, representa 21%. No Brasil, a pílula aparece como método mais utilizado (30%), seguido pela esterilização feminina (14%) e camisinha masculina (10%).
A médica Erciliene indaga os motivos que levam a parcela de mulheres de 35 a 49 anos serem as que mais utilizam o método no Brasil, com 38% no total, número em consonância com os do relatório das Nações Unidas. Para ela, muitas mulheres possuem a falsa informação de que a laqueadura não falha e também não têm acesso a outros métodos contraceptivos. Mesmo quando possuem informação sobre outros métodos, a utilização deles esbarra em seus altos custos: “Às vezes, na Unidade Básica de Saúde, a paciente não consegue ter acesso a métodos que possuem uma taxa de falha parecida à da laqueadura, que seriam os DIUs hormonais e de cobre, e o implante subdérmico contraceptivo”.
Para Erciliene, as mulheres atendidas por Unidades Básicas de Saúde também enfrentam dificuldades em marcar consultas e em obter acompanhamento frequente, fatores essenciais para a saúde. Assim, optam por “um método definitivo, em que elas não vão precisar se preocupar mais com aquilo e que, muitas vezes, têm a falsa ideia de que não vai ter falha nenhuma. Então, essas mulheres precisam ser informadas sobre os métodos disponíveis e que existem métodos que são mais eficazes que a própria laqueadura”.
A Lei do Planejamento Familiar proibiu a esterilização feminina no momento do parto, a fim de evitar procedimentos desnecessários. Uma reportagem publicada pelo The Intercept Brasil em 2018, no entanto, mostra que, na última década, as laqueaduras de emergência, realizadas no momento do parto e sem planejamento prévio, foram mais comuns que as planejadas. Esse dado demonstra que, após 20 anos da promulgação da Lei, as mulheres podem ainda não ter acesso nem informação sobre outros métodos, recorrendo à laqueadura como último recurso para não terem mais filhos.
Ainda de acordo com a reportagem, nos anos 2000 aproximadamente 60% das laqueaduras de urgência aconteciam no parto. Em 2018, o valor era de quase 90%, sendo a maioria em mulheres negras. Em 2017, as mulheres negras foram submetidas ao procedimento 2,5 mais vezes do que em 2008, e 43,5% dos procedimentos foram realizados em negras, contra 29,9% em brancas.
Em 2018, o tema da esterilização feminina voltou ao debate público com a laqueadura compulsória de uma moradora de rua após o parto de seu oitavo filho, que ocorreu a mando do estado. Em 2022, outra reportagem noticiou o mesmo fato: um casal que tentava engravidar foi surpreendido com a notícia de que a mulher passou por uma laqueadura não autorizada no parto do primeiro filho.
Por outro lado, mulheres que querem passar pelo procedimento dentro da Lei ainda encontram dificuldades burocráticas e informacionais, sendo desencorajadas a realizar o procedimento durante as conversas com os profissionais de saúde. Em 2020 e 2021, segundo dados do Ministério da Saúde, as autorizações de laqueaduras feitas pelo SUS caíram para metade das de 2018 e 2019.
Em outubro de 2022, foi sancionado um Projeto de Lei que alterou a Lei de Planejamento Familiar e reduziu de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização da cirurgia de laqueadura em mulheres. A nova norma permite que a mulher realize o procedimento no parto e sem a necessidade de autorização do marido. O Projeto manteve o intervalo mínimo de 60 dias entre a solicitação e a cirurgia e a realização de encontros com psicólogos e assistentes sociais.
Para Isabel, a diminuição da idade de 25 para 21 anos é libertadora. “O planejamento reprodutivo é uma questão de escolha, é um direito humano e está em nossas leis desde 1996”. Entretanto, ela complementa que o arrependimento das mulheres após realização de métodos contraceptivos definitivos é maior entre as mais jovens. Por isso, o aconselhamento reprodutivo é fundamental.
Ainda segundo Isabel, outro aspecto importante é se a busca por métodos contraceptivos definitivos está associada à falta de oferta de métodos contraceptivos eficazes, reversíveis e modernos. “Assim, a desvinculação da autorização do cônjuge é uma conquista, porém não podemos perder o norteamento de que a coparticipação de todos é fundamental”. Ela complementa que o aconselhamento reprodutivo deve ser incentivado, bem como a revisão dos medicamentos disponíveis no registro nacional de medicamentos no SUS, devendo incluir métodos contraceptivos reversíveis, efetivos e que possam prover verdadeiramente autonomia decisória para a mulher.