O primeiro carro que eu tive foi um fusca. Me lembro muito claramente dele, e talvez por isso esse mundo de veículos antigos esteja tão próximo de mim — meu pai, desde aquele primeiro fusca em 2002, tem uma paixão pelo carro. Comprado parcelado no cheque, pouco depois do casamento, o fusquinha bege com caramelo que cheirava a gasolina representou o primeiro passo como família ao construir nosso futuro.
Com os tradicionais problemas mecânicos, o fusca marcou uma época da minha infância assim como fez com meu pai, que ia criança no fusca do avô para a praia acompanhado dos primos. E como a Adriana, que lembra claramente de viajar com os tios no fusca café com leite deles, e voltar dormindo amontoada no banco de trás. E como os pais do Anderson, que foram para o Rio de Janeiro com 13 pessoas dentro do fusca quando eram jovens. Williams tem esse nome graças à coleção de Aero Willys do pai, que também contava com fuscas. As diferentes histórias constroem uma única narrativa: a presença e a importância do fusca na memória afetiva dos brasileiros.
Essa história, que começou na infância para muitos, é carregada de significados e pode ser considerada uma das motivações para a ligação afetiva que faz tantos se apaixonarem pelo fusca. Adquirem o veículo como hobbie, participam de clubes e encontros de carros e dedicam tempo e dinheiro a eles. A Adriana, comerciante do Guarujá, ganhou seu fusca, o primeiro e único, de presente do pai. Recebido como pagamento de uma dívida, o veículo foi dado a ela de aniversário. Adriana gostava tanto do carro que chegou até a sonhar que tinha um.
Quando a questionei sobre a origem desse amor, Adriana percebeu que não sabia bem de onde vinha, mas que era parte dela desde criança, com os tios. “Essas são cenas muito marcantes da minha infância, foi uma fase muito boa. Eu não sei se foi daí, porque é uma coisa que eu me lembro muito, é o fusca deles, né, e eu simplesmente gosto.” Além disso, ela afirma que gosta muito de coisas antigas, e pensar em todas as histórias das quais os fuscas fizeram parte é emocionante para ela. “As vezes eu vejo a exposição de carros antigos, olho para eles e fico pensando: quanta história, quantas pessoas, sabe? Eu gostaria muito de poder colocar a mão neles e enxergar tudo o que aqueles veículos viveram. Para mim, são coisas muito especiais.” Além disso, ela relembra a história do fusca em si, que é muito particular e se mistura com a história do mundo.
Encomendado por Hitler para Ferdinand Porsche no início da década de 1930, o famoso “beetle” recebeu o nome de “volkswagem”, que significa “carro do povo” em alemão. Depois de chegar ao Brasil, o então chamado “volkswagem sedan” se tornou oficialmente o fusca em 1983, a partir de um apelido popular. Ainda na Alemanha nazista, o volkswagem foi usado pelos militares na Segunda Guerra Mundial, chegando a ganhar até modelos anfíbios. Com o final da guerra, o veículo foi redescoberto pelos ingleses, que retomaram sua fabricação. Em 1946, já existiam mais de 10 mil em circulação.
Como um projeto mecânico de sucesso, o volkswagem não tinha mudado quase nada até 1956, mesmo que tenha passado por alterações de design. Com as primeiras 1500 unidades desembarcando no porto de Santos em 1950, o fusca virou o queridinho do país, tendo todos os primeiros veículos vendidos quase que imediatamente. Em 1959, o fusca começou a ser fabricado no Brasil. Quinze anos depois, as vendas do carro nacionalmente estavam mais altas que nunca — foram produzidos 239.393 veículos somente em 1974. Em 1984, uma nova versão do carro é introduzida no mercado, com mudanças notáveis na mecânica e design. Porém, dois anos depois, as linhas de montagem brasileiras encerraram suas atividades, voltando a produzir só em 1993, a pedido do então presidente Itamar Franco.
Funcionando por mais quatro anos, até 1996, a produção brasileira do fusca resolveu marcar a última série de carros fabricados batizando as 1500 unidades de “fusca Série Ouro”, esteticamente equipados em especial pela montadora e cujos proprietários estão registrados no chamado “Livro de Ouro da VW”.
Como parte da história do Brasil, o fusca é quase tradição, estando muito intimamente associado à família. O Anderson, instalador de acessórios automotivos de São Paulo, inclusive, diz que o amor pelo fusca é “mal de família”. Seu pai teve uns três antes dele, cujo primeiro carro foi também um fusca, comprado por três mil reais parcelado em dez vezes. O carro estava com o motor travado, a pintura feia e todo destruído, segundo Anderson. “Deu ‘uns cinco minutos’ em mim, eu fui lá e o desmontei. Eu que fiz o carro inteiro, funilaria, pintura… Aí fui para Aparecida para agradecer, quando eu cheguei lá o motor travou, voltei de lá com o motor ruim”, lembra ele. E até hoje é isso que ele segue fazendo com seus carros, o próprio Anderson cuidando da manutenção toda não só do fusca mas de outros automóveis.
Quando o Halan, proprietário da oficina Select 64, que trabalha com fuscas, tinha 12 anos, sua história com o carro começou. Seu pai tinha um fusca 1975 e ele aprendeu a dirigir só o olhando. Com 17 anos, ele comprou seu primeiro fusca, um 1971, que precisou ser vendido depois. De volta ao Brasil após um tempo fora, Halan resolveu abrir uma oficina voltada para carros antigos. Para ele, “o fusca tem algo mágico. É uma peça que une as pessoas. É uma coisa que só quem tem, sabe. Cada fusca, cada carro antigo tem o ‘RG’ de seu próprio dono.”
O Wanderson, fusqueiro de São José do Rio Preto, precisou se desfazer de seu fusca, o primeiro carro que teve, depois de ficar com ele por muito tempo. Agora, tem o fusca que era de seu pai, que faleceu há dois anos. “O carro estava parado na casa de minha mãe, aí tive a oportunidade de ficar com ele, o que me alegrou muito, pois além da história do fusca em si, ele traz também a da família.” Wanderson se considera um apreciador de carros exatamente pela história que carregam, não apenas da tecnologia automotiva como também das pessoas que passaram por eles através dos anos.
Os pais do Williams tiveram diversos fuscas, a ponto de sua própria história se confundir com a do carro na família. Desde viagens dentro de “chiqueirinho”, passando por fotos com o veículo nos álbuns de recordações até um acidente no fusca envolvendo um caminhão — “sem gravidade”, segundo ele. Para Williams, que considera o fusca sua maior paixão, o carro é um ícone mundial: “O único carro do planeta 100% customizável, não existe nenhum fusca igual ao outro. Cada um tem sua história, suas marcas e suas paixões.”
A comunidade dos carros antigos também acaba construindo uma família, como aconteceu com o Seu Joaquim. Ao ter o Abacatão, seu fusca, roubado na frente de casa, o clube de carros do Otávio, de Barueri, se mobilizou e fez até festa beneficente para dar um novo para ele. Seu Joaquim, que utilizava o carro para vender seu artesanato em Carapicuíba, ganhou um fusca novo e teve a história viralizada no Facebook, aparecendo até mesmo na Record para contar o drama do fusca roubado.
Otávio conta que um amigo do clube tinha um fusca parado e resolveu doar o carro ao senhor que foi roubado. Porém, o veículo precisava refazer os documentos, a pintura, a funilaria e a tapeçaria, além de cuidar do motor parado há muito, pois aquele fusca tinha até pegado fogo. Então, o clube se uniu e resolveu ajudar o amigo a arrumar o carro. Surgiu a ideia do evento para conseguir peças e fundos para o novo fusca do seu Joaquim, que funcionou muito bem, segundo Otávio: muita gente foi no evento, muita gente doou e ele recebeu ligação até do Paraná de pessoas querendo ajudar. Contando a história, Otávio define: “foi um projeto muito louco, né! Foi bem emocionante, legal e é uma história bonita até.”
link vídeo evento
E esse não é o único exemplo. Para o Anderson, a comunidade dos fusqueiros é uma das partes mais legais desse universo. Ele conta que a colaboração é um fator chave na relação: mesmo que você não conheça a pessoa, quando você vê um fusca quebrado na rua, parado, você vai lá ajudar. E um fusqueiro sempre tem história para contar, o assunto sobre o carro pode durar o dia todo. Adriana concorda: “ Às vezes precisa de alguma coisa, todo mundo está pronto para ajudar, para correr atrás. O carro parou em algum canto e você liga, você berra, você grita, você chama, e eles estão lá, todos.”
“Quantas vezes já chegaram no meu comércio pessoas que eu não conhecia com camisetas de clube, falando ‘ah, você gosta de fusca também’, aí a gente fica às vezes horas conversando, trocando ideias sobre os carros, sobre os clubes deles”, lembra a comerciante sobre o fato de a comunidade ser unida e aberta. Ela ainda comenta que não faz parte de clubes, porém tem vontade, o que falta é tempo. Segundo Adriana, como mulher, a dupla jornada de trabalho ocupa muito do seu dia, deixando pouco tempo para se dedicar ao hobbie.
Embora não seja membro oficial de um clube, Adriana participa de eventos de carros antigos e convive com a comunidade dos fusqueiros. Para ela, conversar sobre os carros, as peças, trocar histórias e dicas, comentar sobre o amor que compartilham é um momento muito bom, principalmente porque o assunto nunca acaba, passando por temas variados, mas sempre girando em torno do gosto em comum: o fusca. Adriana conta acreditar que as pessoas que gostam de carros antigos são as que conseguem enxergar a história neles. Ela acha fascinante quando a galera desse meio sabe identificar exatamente as peças, os modelos, o ano de cada detalhe, o que é original do carro ou não, cada acessório — “quem tem carro antigo, quem cultua isso, parece que é um manual ambulante.”
O Williams conta que os clubes de fusqueiros são o que mais anima ele a ter o carro. Logo que ele comprou o fusca, foi convidado para entrar no Volks Guarujá Aircooled.Segundo ele: “é muito bom estar no meio de pessoas com as mesmas afinidades que você, é um ambiente muito alto astral. A gente se ajuda e também fazemos eventos com renda revertida a instituições carentes. É maravilhoso unir o útil ao agradável”, conclui.
Fusca do Williams exposto em um encontro de carros [Imagem: acervo pessoal]
Os encontros são os principais eventos da comunidade de carros antigos, tanto por parte dos clubes quanto dos curiosos. E o evento em si é um acontecimento do começo ao fim, uma imersão ao passado que não para nos carros. As barraquinhas de acessórios, adesivos, comidas, cerveja, miniaturas colecionáveis, camisetas personalizadas… Tem de tudo! A música também é um elemento comum desse universo, muitas vezes representada por uma banda de rock clássico, bem no clima do evento. Quando lembro das minhas experiências nos encontros de carros, os Beatles já começam a tocar na minha mente, acompanhados por um lanche de pernil no pão francês e uma camiseta do fusca Herbie.
Um dos fatores principais dos encontros está representado no próprio nome: os proprietários de fuscas de diversos lugares diferentes tiram seus automóveis da garagem e dirigem até o local do evento. Nas redondezas do encontro, a concentração de carros antigos nas ruas faz as pessoas questionarem se voltaram no tempo. A combinação domingo ensolarado, fuscas personalizados e um bom rock and roll com uma bebida gelada é imbatível, conquistando corações não apenas dos colecionadores, mas de suas famílias também, que nesse momento compartilham o amor que muitas vezes vem dos pais.
Adriana revela que o caminho até o evento é, na verdade, sua parte favorita: desde o cheiro de gasolina — que muitos não gostam mas ela afirma adorar — até o comboio de fuscas coloridos. Cada um de um jeito, refletindo a personalidade do proprietário, preenchem a Serra do Mar, vindos do litoral, onde ela mora, para os encontros na capital. “Às vezes eu conseguia ver, do outro lado da estrada, na outra curva, aqueles carrinhos redondinhos, todos coloridinhos. É essa a parte do encontro que mais me fascina, é a ida e a vinda. É pegar a estrada, estar com os amigos rodando, a gente parar e conversar e depois seguir viagem. Para mim, o fascínio é a estrada, muito mais do que o encontro, é pilotar, dirigir, sentir o carro, ouvir o barulho dele.”
O Otávio contou que o clube de carros antigos do qual fazia parte surgiu a partir dos encontros. Ele e os amigos, também proprietários de carros antigos, se uniam para ir juntos a eventos, até que eles tiveram a ideia de começar um clube. Eram uns cinco ou seis na época, e começaram a comprar umas coisas e fazer os próprios eventos. Entraram em contato com o dono de um posto de gasolina nas redondezas do seu bairro e pediram para sediar o encontro lá. A ideia foi abraçada de tal forma que o posto até fechou para o evento, deixando apenas uma das bombas aberta e contratando pessoas para fazer sorteios.
O jovem de 22 anos acha que “o carro antigo é legal por causa disso, a união entre as pessoas. Tem bastante rivalidade também, porque todo clube tem né, mas a gente releva isso e toca para frente. A gente fazia bastante evento, era super unido, super unido mesmo, não foi a toa que a ideia de dar o fusca para o Seu Joaquim surgiu daí.”
Os encontros também têm o poder de reunir a galera mais antiga do mundo dos carros com quem está começando agora, é mais jovem. Quem coloca isso é o Halan, e é um fato: como a restauração e o fusca em si são um projeto para a vida, muitas pessoas dedicam toda ela ao carro, inspirando aqueles que acabaram de entrar nesse meio.
O Wanderson acredita que os eventos são muito importantes porque vão além da exposição de automóveis. Para ele, é nesses momentos que os fusqueiros têm a oportunidade de conhecer pessoas com os mesmos gostos e interesses, além de trocar informações e dicas, rendendo sempre boas histórias. Também é nesses eventos que acontecem várias relações de compra e venda, pois são um espaço muito propício para esse ramo.
O mercado dos carros de coleção é grande e movimenta muito dinheiro. Williams, que se considera novo no meio, enxerga todo esse universo de uma forma comercial. Para ele, devido à procura, tudo que envolve o fusca se tornou muito caro, impedindo vários de realizarem seus sonhos em relação ao carro. Ao mesmo tempo, o número de jovens entrando nesse meio é grande, e eles estão cada dia mais entusiasmados com a cultura dos carros antigos. Williams aponta que, apesar de pelo lado negativo tudo o que envolve esse mundo ser caro, o mercado movimenta uma grande quantidade de dinheiro e gera diversos empregos.
É uma unanimidade entre os fusqueiros que o hobbie gasta muito dinheiro. Entre a manutenção de rotina e a personalização do veículo, as despesas não param nunca. Adriana diz que não sabe quanto já investiu no carro. Segundo ela, você gasta um pouquinho aqui, um pouquinho ali, e quando vai ver já foi tudo o que tinha e se endividou com o que não tinha. Troca de óleo, motor, pneu, roda, funilaria, pintura, mão de obra especializada e muito mais. E nada disso é barato. “Quando meu pai me deu o carro, ele disse: ‘Eu estou te dando, fica de presente mas com uma dor no coração, porque esse carro gasta para caramba, então você vai gastar como se você tivesse um filho”, completa ela.
Williams lembra que ter um fusca do jeito que você quer leva tempo e dinheiro, demandando paciência, e ainda cita as “cabeçadas” atrás de peças e acessórios, os famosos imprevistos que os carros antigos reservam. “Eu gastei 12 mil para comprar meu fusca, mas para deixá-lo do meu gosto já foram quase 20 mil. Acredito que ainda vou investir mais uns 10 mil até finalizar. No final, terei gasto 40 mil. Mas ele sempre valerá os 12 mil iniciais.”
Depois de pegar o fusca que pertencia ao seu pai, Wanderson começou as reformas, pois o veículo estava bem precário, segundo ele. Até agora, já gastou R$8 mil, mas o carro “ainda está em processo de melhorias. Isso é algo que só os apaixonados entendem, porque os gastos nunca acabam, a gente sempre acha que tem algo a fazer e melhorar. O mais legal é que essas melhorias não descaracterizam a originalidade do veículo.”
Já o Anderson acredita que gastou aproximadamente R$30 mil com seu fusca até agora, graças ao alto preço das peças específicas para deixar o carro “mais bonito”. Segundo ele, quem gosta de fusca sabe disso e não pensa no valor, pensa no prazer e no benefício que aquilo vai proporcionar. “É uma cultura mesmo, vamos dizer assim.”
Halan lembra que existem diversos estilos de fuscas, e hoje em dia é muito mais difícil ver carros antigos abandonados nas ruas — as pessoas vendem e restauram. Refletindo o gosto do proprietário, há os fuscas com reformas muito bem feitas, impecáveis, mais voltados para o original, outros rebaixados, com rodas caras, outros com o chamado Rat Look, desgastado porém todo estruturado, os temáticos e personalizados e infinitas possibilidades e estilos.
Durante a produção dessa matéria, ouvi histórias de pessoas que se divorciaram por causa de fusca, de fuscas que já passaram para a terceira geração dentro da família, de fuscas fazendo 50 anos e ganhando festa de aniversário — para a qual eu fui, inclusive, convidada — , de fusca adaptado para deficiente físico e de pessoas que afirmaram amar o fusca e a esposa no mesmo nível. Mas, sobretudo, ouvi muitas histórias de amor entre proprietário e fusca, o qual representa muito mais do que um carro.
Aquele fusca de 2002 saiu da minha garagem há muito tempo, mas meu pai e seu amor pelo carro conseguiram comprar outro, mais recentemente. Não mais como meio de transporte principal da família, mas como o passeio de domingo e o hobbie de garagem — e, por que não, a tradição de família se estendendo a mais uma geração: quando fui a outro encontro de carros, no final de julho, para essa reportagem, meu irmão de seis anos estava super empolgado com os fuscas.