“Há duas maneiras de abrir a cabeça de uma pessoa: Ler um bom livro ou usar um machado. Recomendo o de Assis”. De autoria de Dilson de Oliveira Nunes, a frase, além de comum para os que gostam de literatura, demonstra a importância que o escritor Machado de Assis possui na literatura brasileira. Não à toa, ele continua presente entre as leituras obrigatórias dos principais vestibulares do país, como a Fuvest, da USP, e a Comvest, da Unicamp.
Apesar das homenagens àquele que é considerado o maior escritor do Brasil serem uma prática comum — como a recente entrega de uma placa feita pela Academia Brasileira de Letras (ABL) — a influência de Machado de Assis não é visível apenas nos vestibulares atuais ou em frases famosas de redes sociais; o estilo de escrita e literário machadiano, e as temáticas abordadas em suas obras ainda influenciam escritores brasileiros e a literatura contemporânea.
Morte e vida machadiana
No dia 21 de Junho de 1839, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro, nascia o chamado Bruxo do Cosme Velho: Machado de Assis. Por ironia do destino ou não, a vida do escritor fluminense, assim como a história de suas obras mais famosas, foi marcada por tragédias, como a perda precoce dos pais.
Apesar de poucos recursos financeiros e uma orfandade logo na infância, Machado de Assis começou a estudar por conta própria, aprendendo a ler e a escrever sozinho, tornando-se uma das pessoas autodidatas mais conhecidas. Com tamanho talento apresentado logo em sua juventude, começou a publicar seus primeiros textos com apenas 14 anos: o soneto À Ilma Sra. D.P.J.A., no Periódico dos Pobres em 1854, e o poema Ela, na revista Marmota Fluminenses em 1855.
Cada vez mais apaixonado pelo mundo das letras e da escrita, Machado torna-se aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional em 1856 e, posteriormente, revisor de tipografia no Correio Mercantil e Redator do Diário do Rio de Janeiro. Mas nem só de revisões e traduções vive um escritor, por isso, começa a escrever também para as revistas O Espelho, A Semana Ilustrada e o Jornal das Famílias, além de publicar seu primeiro livro de poesia, Crisálidas, em 1864.
Após a publicação de seu primeiro livro, Machado de Assis tornou a escrever poesias e contos, como Falenas e Contos Fluminenses, ambos de 1870, além de romance, com a publicação de Ressurreição, em 1872. Outros grandes clássicos do escritor foram lançados posteriormente, como A Mão e a Luva e Helena, mas foi apenas com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1881 que Machado de Assis conseguiu entrar na história ao introduzir o Realismo no Brasil e se tornar um dos maiores escritores do mundo.
A literatura de Machado não foi inspirada somente em suas tragédias, mas também em seu romance: sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais, foi, além de companheira de vida e de escrita – auxiliando na revisão dos textos do marido – a grande inspiração do escritor. Oficializado em 1869, o casamento deles durou até 1904, com o falecimento de Carolina, a quem o escritor dedicou seu mais famoso soneto: A Carolina.
Apesar de já estar debilitado por conta da idade, o escritor continuou trabalhando até os últimos momentos de sua vida, Entre seus últimos feitos, estão a criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897, com a ajuda de outros escritores, e a publicação de seu último romance, Memorial de Aires, em 1908. Dominado pelo câncer e por uma profunda depressão causada pela morte da esposa, o escritor veio a falecer no dia 29 de setembro de 1908, em sua casa de n°18 na Rua do Cosme Velho, deixando um legado e uma influência eterna na literatura brasileira.
Aos vencedores da inovação e da escrita; a fama e a glória eterna
A escrita machadiana é um dos maiores legados da literatura brasileira, caracterizada por um estilo único que une o humor e a ironia ao criticar a sociedade da época. Estes aspectos ganharam força, posteriormente, no modernismo, presente, por exemplo, na poesia de Drummond.
Provando ser um autor à frente de seu tempo, Machado inovou a relação entre narrador e leitor ao criar protagonistas que conversam com o leitor, uma prática que viria a se tornar comum na contemporaneidade, como ocorre na série britânica Fleabag, em que a protagonista “quebra a quarta parede” — expressão utilizada para designar o diálogo com o público. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, do século XIX, o personagem de Machado narra a sua história após a sua morte e ainda conversa com o leitor.
Além disso, como conta o professor Hélio de Seixas Guimarães, docente de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), a atemporalidade de Machado de Assis também se observa na sugestão da escrita, deixando aspectos de sua história subentendidos para o leitor. Dessa forma, o escritor conseguiu criar debates duradouros entre cada vez mais novas gerações de leitores que se questionam o que ele realmente queria dizer com determinado trecho ou conteúdo de suas obras.
No entanto, como aponta Hélio, o escritor não pode e tão pouco deve ser classificado como um pré-modernista, já que ele era considerado um autor muito inovador e “fora da curva” para seus contemporâneos modernistas, que demoraram a aceitar e a perceber a influência machadiana na literatura brasileira. Prova de que os modernistas ora rejeitavam completamente o Machado, ora incorporavam aspectos machadianos em suas obras modernistas é o próprio Carlos Drummond de Andrade, que começou odiando a escrita de Machado de Assis na juventude e passou a amar plenamente na sua maturidade — o poema de 1958 A um bruxo, com amor, dedicado à figura do Machado, comprova isso.
“Não me parece que Machado de Assis tenha ‘adiantado’ o modernismo ou o que quer que seja, mas sim que ele foi capaz de captar questões fundamentais e profundas do seu tempo, do mundo e do Brasil, e dar a elas forma literária, que ainda hoje têm validade e fazem sentido para quem se dispõe a ler seus escritos sem simplificações e sem julgamentos prévios ou peremptórios”, comenta o professor. Além disso, ele também alerta que a relação entre Machado de Assis e os modernistas foi um tanta tensa, já que ele foi rechaçado por vários autores dessa escola literária.
Trair ou não trair, eis a questão
Outro importante aspecto literário de Machado foi acerca dos temas, em que o autor inovou ao abordar personagens que refletiam a sociedade brasileira da época, e que denunciavam os aspectos socioeconômicos do Brasil Império, como a desigualdade social e o elitismo. Além disso, ele também inovou ao trabalhar, pela primeira vez, aspectos psicológicos e criar personagens tridimensionais e complexos em suas obras, que não tinham medo de tomar atitudes consideradas imorais e antiéticas para a época — mas que também a refletiam.
Dessa forma, o autor conseguiu criar personagens que representavam os principais comportamentos daquela sociedade, sobretudo, da burguesia carioca em ascensão. Dentre os personagens criados por Machado de Assis, os mais interessantes de se analisar são as mulheres, já que alguns comportamentos delas retratados por Machado de Assis em suas obras revelam o pensamento machista da época que criou estereótipos femininos que circulam até os dias atuais. Suas criações mais famosas são Capitu de Dom Casmurro, e Sofia Palha de Quincas Borba, que representam, respectivamente, uma mulher sedutora, supostamente infiel,e uma mulher interesseira que só se importava com o dinheiro do marido.
No entanto, como aponta o perfil do Instagram Literatura em Dobro, que oferece cursos sobre os livros de leitura obrigatória da Fuvest e da Unicamp, o leitor atual deve tomar cuidado ao ler Machado de Assis para não reproduzir pensamentos atuais como sexismo em um livro do século XIX. Muito mais do que retratar uma personagem como isso ou aquilo, o escritor se preocupava em realizar críticas e denúncias da sociedade da época, representando uma visão sobre a burguesia carioca como uma interesseira e supérflua.
Além disso, o perfil também alerta que não se deve tomar conclusões ou determinar que o autor fosse sexista ou preconceituoso com base somente em suas personagens, mas sim buscando outros documentos que comprovem isso ou aquilo. No caso do Machado, ele estava muito mais preocupado em representar a visão geral que a sociedade da época possuía acerca das mulheres burguesas, porém, em nenhum momento pode-se afirmar que essa fosse necessariamente a visão do próprio autor.
Agora e para sempre, Machado de Assis
O Bruxo de Cosme Velho introduziu estilos literários novos e temas completamente inovadores que marcariam e mudariam o rumo da literatura brasileira. Até os dias de hoje, De acordo com o estudante do curso de Letras do Mackenzie, Augusto Melchior, Machado consegue influenciar a juventude brasileira através de sua ironia e senso de humor característicos, tão presentes na sociedade atual.
Uma das principais formas de garantir o contato dos jovens com a literatura machadiana é a constância de seus livros na lista de leituras obrigatórias para o vestibular. Apesar dessa prática ser uma importante ferramenta para apresentar a leitura clássica para os jovens, ela sofre constantes críticas por forçar os jovens a lerem Machado, o que pode ser dificultado pela escrita complexa e antiga. Uma das mais famosas críticas foi realizada pelo Youtuber Felipe Neto em 2021, ao dizer no seu Twitter que Machado de Assis não deveria ser uma leitura obrigatória aos jovens, pois pode desmotivá-los a ler, no modo geral.
Como aponta Augusto, o problema da literatura para jovens não está necessariamente nas obras em si, mas, na realidade, o problema está mais na maneira como você introduz essa literatura. Caso fosse apresentado um livro de Machado de Assis instigando o leitor e gerando curiosidade no porquê aquele livro é tão falado, os jovens poderiam se interessar mais pela literatura, o que não ocorre quando você força uma pessoa a ler por obrigação e apenas para “passar em uma prova”. Mas então, traiu ou não traiu?