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Sônia Braga: alma, corpo e voz de força

Ela para sempre será celebrada; Sônia possui trajetória marcante, assim como sua essência

“Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar

Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar

Onde a gente e a natureza feliz vivam sempre em comunhão

E a tigresa possa mais do que o leão”

Sônia Braga, a Tigresa de Caetano Veloso. Uma das letras consideradas mais belas pelos admiradores da música popular brasileira foi dedicada, em 1977, a essa atriz que fascinou não somente os olhares do cantor, mas também a população do Brasil e outras pessoas ao redor do mundo. O posto de musa das artes é inteiramente dela; sua força, sensualidade e sofisticação, unidas ao seu notável desempenho como atriz, tornam Sônia uma personalidade celestial, quase um patrimônio da cultura do Brasil. 

Sônia Braga. [Imagem: Reprodução/Instagram/Acervo Sônia Braga]


As auroras dessa força sublime

Ela diz ser movida pela intuição; respira e inspira liberdade, mesmo tendo vivido contextos em que as mulheres não desfrutavam nem um pouco desse princípio. Nasceu em 1950, em Maringá, no Paraná, onde não ficou por muito tempo. Sujeita às migrações características da profissão de seu pai, que trabalhava com venda de terras, com apenas um ano já se mudou para Curitiba, depois para Campinas, e posteriormente para São Paulo — a maior cidade da América Latina, ainda assim, sem tamanho suficiente para abranger a grandeza de Sônia. 

De acordo com a própria, sua consciência política veio já aos oito anos. Nessa idade, um acidente no trabalho levou o seu pai à morte, que detinha e administrava todos os bens da família. Foi assim que Sônia, sua mãe e seus sete irmãos tiveram que abandonar a vida de classe média alta e ir morar no Belenzinho, bairro industrial da capital de São Paulo. Na entrevista que deu ao Roda Viva em 1997, a atriz explica que essa mudança lhe mostrou um mundo que ela nunca havia visto na bolha social em que antes estava inserida; conheceu o Brasil da fome e da miséria. Saiu do colégio particular de freiras e passou a estudar na escola estadual, o que lhe abriu os olhos para diferentes realidades. Mais tarde, consegue bolsa de estudos para retornar a sua antiga instituição de ensino e a pedido da mãe volta para o colégio católico, mas já com seu senso crítico aflorado. 

Seu primeiro passo nas artes foi aos 14 anos, quando Vicente Sesso, que já trabalhava com o irmão de Sônia, a convidou para participar de um programa infantil, o Jardim Encantado. Foi seu primeiro contato com o universo artístico e, felizmente, não parou por aí. Com 16, Vicente colocou Sônia em seus teleteatros — os quais ela adorava. Depois disso, ela se distanciou um pouco das produções culturais e foi trabalhar como recepcionista em um escritório no centro da cidade. Mas logo voltou para sua profissão claramente predestinada, quando José Rubens Siqueira de Madureira apareceu para chamá-la para o curta-metragem que produzia na época. Nesse momento, Sônia começa a firmar suas relações sociais dentro do mercado da cultura. 

Uma figura importante na trajetória artística e política de Sônia é Heleny Guariba, teatróloga e guerrilheira brasileira que a convidou para integrar seu grupo teatral com ideais revolucionários, em um centro operário no ABC Paulista. Sônia — que, como cantou Caetano Veloso, “gostava de política em 1966” — morou na região por um ano; realizou arte de protesto em um dos contextos mais tensos da Ditadura Militar. Participava de atos e passeatas, além de auxiliar na proteção das peças, evitando que essas fossem censuradas. Ela relata que nunca teve formação acadêmica para entender por completo aquele cenário, diferente da intelectual Heleny, mas agia intuitivamente. 

Ainda em 1968, fez sua primeira participação em um longa-metragem, no clássico O Bandido da Luz Vermelha, um dos principais do Cinema Marginal. Atua também no espetáculo Hair, de Ademar Guerra — e falou isso para Caetano: “[…] ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair […]”. Mas é nos anos 1970 que se consolida como uma das mais relevantes figuras artísticas do cinema nacional: após trabalhar em três telenovelas, Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1972) e Fogo Sobre Terra (1974) e se destacar na série infantil Vila Sésamo (1972), conquista o público brasileiro o suficiente para estrelar como a oficial protagonista das adaptações dos romances de Jorge Amado.

Sônia Braga na série infantil Vila Sésamo. [Imagem: Reprodução/Folha de São Paulo]


Gabriela, Dona Flor e Tieta: a protagonista de Jorge Amado

Jorge Amado, o autor mais adaptado no cinema, teatro e televisão, não escondia que Sônia era a materialização ideal de suas musas. “Esta é três vezes minha filha, porque já foi Gabriela, já foi Dona Flor e também porque nós temos uma ligação de candomblé”, disse ele, com Sônia ao seu lado, em uma entrevista durante a elaboração do longa-metragem baseado em seu romance, Tieta do Agreste (1996).

Sônia Braga e Jorge Amado em 1995. [Imagem: Reprodução/Estadão]

Gabriela da Silva foi o primeiro sucesso sólido da atriz  — a primeira personagem de Jorge que Sônia corporificou, na telenovela da Rede Globo, Gabriela (1975), que oito anos depois ganharia um filme. Gabriela e Sônia se completaram; uma tornou a outra rememorável no imaginário popular brasileiro. Ao dar vida a sensualidade e encantamento de Gabriela, a performance de Sônia a consagrou como musa brasileira, e ela deu continuação a esse título em todos os seus outros futuros papéis.

Em seguida, Sônia interpretou Dona Flor na quarta maior bilheteria do cinema nacional, Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), representando a força dos desejos sexuais das mulheres enclausuradas pelo matrimônio. Três décadas depois, a produção cinematográfica Tieta do Agreste seria o sucesso do momento, em que Sônia encarna uma das mais fortes figuras femininas da literatura, a livre e aventureira Antonieta Esteves Cantarelli, apelidada de Tieta. 

Respectivamente, Sônia em Dona Flor e Seus Dois Maridos, ao lado de José Wilker, e em Tieta do Agreste. [Imagem: Reprodução/Instagram/Acervo Sônia Braga]

Onde essas três grandes realizações de Sônia se conectam? Por meio de sua célebre atuação como Gabriela, Dona Flor e Tieta, Sônia evocou a sexualidade feminina e engrandeceu o semblante da “mulher brasileira”.  Com elas, cimentou sua aura de sex symbol do país; e, em 1997, opinou sobre essa fama: “Na realidade, eu nunca vivi isso, quem viveu isso foram as personagens […] eu acho super importante discutir a sexualidade no cinema. Por exemplo, o cinema americano se recusa a discutir o assunto, a não ser que seja de uma maneira brutal. A gente [Brasil] sempre procurou, através do cinema, discutir a sexualidade de uma maneira sadia. Eu sempre tive curiosidade de saber o que é isso, o prazer, o sexo, o orgasmo, a relação humana, tudo isso. Nas minhas personagens, a minha própria curiosidade vai para a tela”.

Sônia Braga como Gabriela. [Imagem: Reprodução/UOL]

Além disso, sua estética foi a mais popular em todo o país. Seus cabelos compridos, cacheados, volumosos, seu corpo com curvas e sua pele morena eram admirados no cenário cultural mundial. Para Sônia, isso ia além de uma fetichização. No programa Gente de Expressão, da década de 1990, a apresentadora Bruna Lombardi, durante entrevista, perguntou à Sônia: “Quando você descobriu que era bonita e gostosa?”. Sônia respondeu: “Eu não descobri nada. Quem falou isso foi o Jorge Amado, através da novela Gabriela, porque antes da Gabriela eu só fazia neurótica, feia, caipira […] foi com a Gabriela e eu achei o máximo, porque veja bem, você [Bruna] é loira dos olhos azuis. Por muitos anos, a mulher brasileira teve essa coisa de achar que a beleza internacional era mais importante que a beleza local, só o Jorge ficou ali insistindo. E a moda é sempre uma ditadura. Então, com Gabriela, não fui eu que mudei, foi a mulher brasileira. A mulher brasileira se vendo na televisão — baixinha, com uma bunda, peitinho — é que era legal”. 


Longe, mas ainda perto

Suas performances cativantes, seu jeito de ser a frente de seu próprio tempo e sua estética sedutora levou Sônia longe. Tão longe que, após seus três papéis no genialíssimo O Beijo da Mulher Aranha (Kiss of the Spider Woman, 1985), partiu para os Estados Unidos da América e se fixou em Nova York, onde reside até hoje. No longa de Hector Babenco, ela interpretou a própria Mulher Aranha, a espiã Leni projetada por Molina (William Hurt) e Marta, o amor da vida de Valentin (Raul Julia). Em todas as versões, sua presença domina; uma sutileza e beleza incontestáveis são planificadas na tela. O filme américo-brasileiro recebeu quatro indicações ao Oscar e proporcionou a Sônia um ano de publicidades nos EUA. 

Sônia Braga como a Mulher Aranha. [Imagem: Reprodução/Rede Globo]

Ela diz, em depoimento para Marcelo Bernardes, que “o filme [O Beijo da Mulher Aranha] não só resultou em uma virada em minha carreira, como também consolidou meu nome internacionalmente”. Mas a ida para o país de Hollywood não foi uma decisão premeditada especificamente relacionada ao seu sucesso no longa; foi mais para uma obra do acaso: “eu nunca resolvi ir pros Estados Unidos”, afirma

Sônia explica que, após o término das gravações do filme, ela estava de viagem marcada para Los Angeles para fazer fotos para a Playboy e visitar uma amiga, mas já com um compromisso agendado com Arnaldo Jabor no Brasil: o Eu Sei que Vou Te Amar (1986). Todavia, o diretor optou por mudar a linha do filme e acabou convidando Fernanda Torres, em vez de Sônia. Sem trabalhos, ela decidiu tirar férias nos EUA e fazer um curso de inglês para dar suas entrevistas fora do Brasil. Nesse mesmo momento, ocorria a estreia de O Beijo da Mulher Aranha e Sônia era a única disponível para a divulgação do filme — promoveu o filme por doze meses; fez fotos para Vogue, Elle, Vanity Fair e outras revistas. 

E assim, ela foi ficando por lá: “Todas as vezes que eu resolvi vir para o Brasil, me chamavam de volta”, relata. Bill Cosby a convidou para dois de seus programas e a introduziu na televisão americana. A partir daí, fez mais de 40 participações nas produções estadunidenses, como em Sex in The City (1998 – 2004), a mulher que seduz Samantha Jones (Kim Cattrall). Fez seu nome como uma das mais glamourosas artistas na indústria cinematográfica americana e foi a primeira atriz brasileira a apresentar uma categoria do Oscar.

Sônia Braga no Oscar 1987. [Imagem: Reprodução/Instagram/Acervo Sônia Braga]

Ao mesmo tempo, é como se nunca tivesse deixado o Brasil: “Meu coração sempre estava lá [Brasil], minha cabeça sempre estava lá, o meu assunto, a minha curiosidade, querer que o Brasil desse certo”, expressou em entrevista para Jana Nascimento Nagase. Mesmo residindo até hoje em Nova York, sempre volta ao Brasil para visitar amigos, se posiciona acerca da conjuntura política do país e continuou fazendo trabalhos por aqui. Dentre eles, participou de dez capítulos da novela de Gilberto Braga, Força de Um Desejo (1999) e atuou em Páginas da Vida (2006), de Manoel Carlos. Recentemente, marcou forte presença no cinema brasileiro, em Bacurau (2019), como a coadjuvante Domingas, e em Aquarius (2015), em que estrelou a protagonista Clara.

Sônia Braga em Bacurau. [Imagem: Reprodução/UOL]


Sônia e Clara: duas em uma

Clara é uma mulher que está em torno dos 65 anos; uma jornalista intelectual, especialista em música. Sábia, livre e independente, Clara é a única moradora do prédio em que reside e luta contra as forças empresariais que tentam retirá-la de seu lar. Mesmo após uma série de assédios e intimidações, ela permanece na batalha contra a construtora, usando sua voz para se defender dos ataques e proteger seus direitos como cidadã. Trata-se de uma das melhores construções de personagem do cinema nacional, e como disse o próprio Kleber Mendonça Filho, diretor do filme, não teria ninguém melhor para representá-la do que a “maior e a melhor, que é a Sônia Braga”.

Sônia Braga e Kleber Mendonça Filho em coletiva de imprensa em Cannes. [Imagem: Reprodução/Vogue]

Na entrevista para Jana, Sônia não só afirmou que Clara é sua melhor personagem como relatou que, desde o primeiro contato com o roteiro, sentiu que a história das duas estavam conectadas. “Eu tinha me preparado de alguma maneira, ou de certa maneira, para ser a Clara, não sei muito bem como isso se explica, mas as nossas vidas já estavam entrelaçadas”, ela manifesta, ao lado de Kleber. 

Sônia Braga como Clara. [Imagem: Reprodução/UOL]

Sônia reconhece que elas vêm de origens diferentes: “[…] Clara vem de um certo lugar, de uma formação mais acadêmica, e eu venho de um lugar muito mais intuitivo”, mas o ponto onde elas se interligam não é exatamente físico ou concreto, e sim, político. “Era um sentimento muito grande que eu tinha, de dizer essas coisas que a Clara diz. Então eu acho que na realidade, no fundo, eu e ela somos a mesma cidadã. Acho que a base da gente é isso, é a cidadania”, revela. O corpo político de Clara, carregado de marcas da vida, sua personalidade imperfeita, sua recusa aos rótulos e seu jeito de ser, sobretudo, humana, é representativo para inúmeras mulheres e Sônia foi a porta voz ideal para a mensagem que essa personagem se propôs a passar. 

Cena de Aquarius. [Imagem: Reprodução/365 Filmes]

A personagem delineia também a performance de Sônia na vida, fora das telas ou dos holofotes. Seu espírito liberto e contestador está presente em Clara; sua formação humana foi crucial para a execução impecável da atriz, algo que ela constata: “Eu acho que ela [Clara] vem de um resultado, de uma vida como atriz, como mulher, como cidadã, muito franca, muito aberta e muito honesta com as pessoas”. Mais do que uma atriz que faz seus trabalhos adequadamente, Sônia é uma persona de voz e de força: uma figura artística e política, não é atoa que diz que prefere ganhar um Nobel da Paz a um Oscar.

Sônia protesta no Tapete Vermelho contra o golpe de Estado que retirou Dilma Rousseff da presidência, junto ao elenco de Aquarius. [Imagem: Reprodução/Partido dos Trabalhadores]

Como compôs Caetano, Sônia Braga, a Tigresa, foi o que quis, mantendo seu ódio no coração para lutar por sua utopia, espalhando prazer e dor, marcando corações e falando besteiras de menina. Mulher fatal, força sublime, imortal no imaginário popular e imperatriz do cinema nacional. 

“Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor

E espalhado muito prazer e muita dor

[…]

As garras da felina me marcaram o coração

Mas as besteiras de menina que ela disse, não”

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